Lava tripas
Marco Albertim, no Vermelho
O fustão furta-cor do
vestido da velha absorveu o cinzento cambiante das paredes da casa. Sentada ao
lado de uma mesa, não quis se dar conta de que a cor escura da garrafa de
cerveja, não tinha uma semelhança casual com sua pele; a secura de ambas, com riscos
curvos de cima a baixo, mostrava a sorte inevitável do fim próximo.
- Eu vim morar aqui há quarenta anos - disse a
velha, sem evitar a umidade espumosa na comissura dos beiços.
Às nove horas, o sol há muito se acumpliciara com a
infertilidade do chão de areia granulada, cinza, na frente da casa; da casa e
de todo quarteirão sem atalhos, inda que sinuoso, na margem do rio Lava Tripas.
A velha sentara-se de modo a exibir, sem afetação, familiaridade com o canto de
sua escolha. O rancor natural do sol, irrompera porta adentro, acentuando a cor
indecisa das quatro paredes.
A velha, sem sinais de incômodo no couro calcinado,
mantinha uma conversa chocha com outra de sua idade. Dona Cema sentara-se em
frente, junto a uma mesa no lado contrário, vizinha à porta de acesso às
prateleiras da bodega. Nos fundos, um quarto e a cozinha com as paredes
chamuscadas de fumaça e de tisna nos lados e nos fundos das panelas.
Dona Cema conservava a palidez do couro; fora
branca sem nervuras de doença no rosto, quando moça. Agora, mesmo com o rosto
encardido de quem pena com o impaludismo, esconde-se do sol. Acomodara-se na
desordem dos fios grossos de borracha na cadeira com braços, pés e espaldar de
ferro; distinguia-se, assim, da pobreza nos casebres tão juntos
quanto ostras nos juncos.
- Também cheguei aqui há quarenta anos. - respondeu
- Dilermando foi meu marido nos dez primeiros anos. Não aguentou a força da
enchente de 83. Entrou no rio para salvar os móveis que a enchente tinha
levado. Não sentiu febre. Mas na semana seguinte, foi picado pelo mosquito.
Morreu de malária.
Na quarta-feira de uma semana arrastada, a velha do
fustão sem cor movia-se com a memória nos anos em que se cria tão fértil quanto
as águas então limpas do rio Lava Tripas. Quando montara casa, o rio não tinha
nome, era um riacho afluente do rio Beberibe; não tinha nome nem o bodum dos
detritos jogados pelo hospital a sua margem. O hospital mudou-se para outro
endereço. O rio manteve o nome que lhe dá fama. Os moradores, tangidos pelas
plantações de cana, e ali jungidos, fungaram o vapor da lama; devolvem-no ao
rio nos trapos imundos, no que fora o madeirame inteiriço de uma
cama patente.
Dona Cema não se queixa do lixo que se amontoa na
superfície e nas margens do canal das Tripas - o rio se encolhera; o nome,
seguindo-lhe o rasto, deixara-se desfalcar na pronúncia. Mesmo porque, também
ela se despoja do lixo doméstico na crosta dura da água sem correnteza.
As duas, tão sós quanto o oco da bodega, não se
olhavam; tinham na fundura das órbitas o cansaço sem queixas de uma solidão
velha. O bodum do canal, entranhado nas paredes da casa, não era de todo
sorvido por causa do cheiro do charque gorduroso na panela sobre o lume chiante
do fogo no fogão.
A negra, com um olho na memória e outro na segunda
garrafa de cerveja, já sente a demência sobre o que ainda
lhe reserva a escassa fortuna. Vê o negro vistoso com quem dividira
a estreiteza das molas da cama patente.
- Dilermando bebe sem ter medo de doença. Só se
queixa do cheiro podre que vem do rio. Mas não tem medo de se banhar da cintura
pra baixo, quando vai arrancar ostra. Traz ostra e aratu pra comer ensopado.
O negro vistoso tem uma cor indistinta nos trajes
de porteiro do hospital. O sol que dá luz à sala da bodega, não
alumia sua silhueta. O bodum do canal, entrando na porta da frente, restaura o
cheiro de éter sorvido no hospital. Do lado do crioulo, Dilermando, sem traços
no rosto da mesma cor de dona Cema, não diz uma palavra; só a queixa que
resiste à febre da malária.
As duas não têm fome. A memória não lhes
dá fome.
Nenhum comentário:
Postar um comentário