24 dezembro 2013

Uma crônica minha para descontrair

Márcia Maracajá
A Missa do Galo e a absolvição dos meus pecados
Luciano Siqueira

Meu pai Renato, dono da Mercearia Natalense, esquina das ruas Alberto Silva e São João, na Lagoa Seca, Natal, exercia certo rigor no controle do consumo em casa de produtos industrializados, sobretudo sobre nós, os filhos menores. Enlatados e engarrafados, só em último caso. Daí o fascínio que experimentávamos diante das latas de salsichas Wilson, das sardinhas Coqueiro e das garrafas de guaraná das duas marcas locais, Jade e Dore. Como se fossem muito superiores em sabor e valor nutritivo do que a comida caseira.

Mas eis que chega o Natal e os meninos da casa, Airton e eu, aí por volta de nove e dez anos de idade, ganhamos o privilégio de andar pelo quadrilátero delimitado pelas quatro esquinas, três delas ocupadas por mercearias, como a do meu pai, e uma pela Igreja de São João Batista. Bem vestidos, ao gosto de dona Oneide, e com alguns trocados no bolso com a liberdade de gastá-los como bem entendêssemos. Sinal verde para o consumo de guaraná e biscoitos, ali no balcão das mercearias próximas.

Como quem nunca comeu mel se lambuza, nos excedemos a ponto de voltarmos para casa de papo cheio e um tanto nauseados. Mas ainda com o dever de compartilhar a ceia abundante, ritual familiar sagrado. Encerramos a noite vomitando copiosamente – e a culpa, proferida solenemente, após breve investigação, coube às garrafas de Jade e Dore e aos biscoitos Maria!

E tinha a Missa do Galo, rezada em latim pelo padre Jacob, um holandês avermelhado de quase dois metros. Durava uma eternidade! Isso à meia-noite, quando a meninada já não tinha fôlego para nada: o sono pesado, o medo de adormecer em plena missa, um pecado grave. Tudo a ver com a lassidão que até hoje se abate sobre mim após alguns minutos de permanência em igrejas.

Ainda bem que fui absolvido para sempre desse pecado certamente capital. Em 1977, ao sair da cadeia, fui ao Mosteiro de São Bento, em Olinda, para agradecer a solidariedade de Dom Basílio Penido, então Prior da Ordem dos Beneditinos, que visitava presídios e integrava o movimento pela Anistia. Ao final de nossa conversa, o santo homem sentenciou:

- Saibam você e seus companheiros que ainda continuam presos que, crendo ou não em Deus, estaremos juntos na Vida Eterna.

- Como assim, Dom Penido, estou salvo mesmo sem frequentar a missa?

- Por quê?

- Porque padeço da “síndrome da Missa do Galo” e não consigo acompanhar a cerimônia até o fim...

- Não precisa ir à missa, basta prosseguir sua militância, a prática do Evangelho mais despojada que conheço. Continue lutando e esteja em paz.

Minha mãe, Oneide, de sólida formação católica, jamais concordou com esse modo generoso de remissão dos meus erros. Mas aceitou.

E assim pude seguir vida afora sem o dever de frequentar igrejas e em silenciosa homenagem ao bom e corajoso Dom Basílio Penido.

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