Márcia Maracajá
A Missa do Galo e a absolvição dos meus pecadosLuciano Siqueira
Meu pai Renato, dono da Mercearia Natalense, esquina das
ruas Alberto Silva e São João, na Lagoa Seca, Natal, exercia certo rigor no
controle do consumo em casa de produtos industrializados, sobretudo sobre nós,
os filhos menores. Enlatados e engarrafados, só em último caso. Daí o fascínio
que experimentávamos diante das latas de salsichas Wilson, das sardinhas
Coqueiro e das garrafas de guaraná das duas marcas locais, Jade e Dore. Como se
fossem muito superiores em sabor e valor nutritivo do que a comida caseira.
Mas eis que chega o Natal e os meninos da casa, Airton e eu,
aí por volta de nove e dez anos de idade, ganhamos o privilégio de andar pelo
quadrilátero delimitado pelas quatro esquinas, três delas ocupadas por mercearias,
como a do meu pai, e uma pela Igreja de São João Batista. Bem vestidos, ao
gosto de dona Oneide, e com alguns trocados no bolso com a liberdade de
gastá-los como bem entendêssemos. Sinal verde para o consumo de guaraná e
biscoitos, ali no balcão das mercearias próximas.
Como quem nunca comeu mel se lambuza, nos excedemos a ponto
de voltarmos para casa de papo cheio e um tanto nauseados. Mas ainda com o
dever de compartilhar a ceia abundante, ritual familiar sagrado. Encerramos a
noite vomitando copiosamente – e a culpa, proferida solenemente, após breve
investigação, coube às garrafas de Jade e Dore e aos biscoitos Maria!
E tinha a Missa do Galo, rezada em latim pelo padre Jacob,
um holandês avermelhado de quase dois metros. Durava uma eternidade! Isso à
meia-noite, quando a meninada já não tinha fôlego para nada: o sono pesado, o
medo de adormecer em plena missa, um pecado grave. Tudo a ver com a lassidão
que até hoje se abate sobre mim após alguns minutos de permanência em igrejas.
Ainda bem que fui absolvido para sempre desse pecado
certamente capital. Em 1977, ao sair da cadeia, fui ao Mosteiro de São Bento,
em Olinda, para agradecer a solidariedade de Dom Basílio Penido, então Prior da
Ordem dos Beneditinos, que visitava presídios e integrava o movimento pela
Anistia. Ao final de nossa conversa, o santo homem sentenciou:
- Saibam você e seus companheiros que ainda continuam presos
que, crendo ou não em Deus, estaremos juntos na Vida Eterna.
- Como assim, Dom Penido, estou salvo mesmo sem frequentar a
missa?
- Por quê?
- Porque padeço da “síndrome da Missa do Galo” e não consigo
acompanhar a cerimônia até o fim...
- Não precisa ir à missa, basta prosseguir sua militância, a
prática do Evangelho mais despojada que conheço. Continue lutando e esteja em
paz.
Minha mãe, Oneide, de sólida formação católica, jamais
concordou com esse modo generoso de remissão dos meus erros. Mas aceitou.
E assim pude seguir vida afora sem o dever de frequentar
igrejas e em silenciosa homenagem ao bom e corajoso Dom Basílio Penido.
Nenhum comentário:
Postar um comentário