06 novembro 2014

Conturbada transição

A modernização prosseguirá
Walter Sorrentino, no Vermelho

Na longa jornada pela modernização do país acumulam-se novas tensões e contradições no projeto modernizante, entre Estado, desenvolvimento, soberania nacional, democracia e menor desigualdade social e regional. Pode-se acrescentar a isso o lugar do Brasil no mundo, a integração regional, o papel geo-político do Brasil como uma reserva estratégica indireta para todos os países que buscam maior autodeterminação. Não é pouco, como se vê, o que está em jogo no Brasil.
Nas recém-findas eleições, as tensões se manifestaram fortemente, de alguns modos novos e outros, bem velhos. Expressou-se um cadinho de contradições latentes em uma sociedade vibrante, complexa, rica sociedade civil e movimento social organizado, com mediações imperfeitas entre o povo e seus representantes, onde a comunicação de massas joga um papel decisivo semeando basicamente a ojeriza aos partidos políticos.

A aderência ao real na campanha oposicionista era basicamente a corrupção e a economia. Há sim projeto da oposição, claro como o dia, que encontra suas bandeiras e sustentação no main stream dominante no mundo, malgrado a crise capitalista. Mas não foi com sua própria feição que a oposição debateu e disputou a presidência.

Fê-lo com as armas possíveis, agiornando a velha ideologia conservadora no país, nesta ocasião em torno da corrupção. Fudamentou-a como anti-petismo, versão moderna da anti-esquerda, como o anticomunismo outrora. Versões extremadas liberaram miasmas preocupantes de sectarismo, intolerâncias, golpismo; até a “divisão do país” proclamaram. Velhos liberais ou mesmo gente da ex-esquerda democrática, deram passo em falso: sustentam a casca da democracia desligada não apenas da cidadania – que pressupõe uma sociedade de iguais em direitos e oportunidades, não uma “sociedade dos 30%” bem aquinhoados, mas de 100% dos brasileiros – e até da afirmação nacional.

Dilma sustentou o projeto histórico das forças progressistas, democráticas e de esquerda no país. Em vários momentos da modernização do país, essas forças as sustentaram, com bandeiras históricas. Mas, sem nenhum baluartismo, é a primeira vez nessa longa jornada que se logrou a coexistência de democracia, desenvolvimento, distribuição de renda e afirmação nacional. Repito: primeira vez na história.

Essa é uma lição a tirar: não se pode separar cidadania de igualdade de oportunidades, o Estado garantindo-as para dar ensejo à iniciativa dos cidadãos em progredir; não se pode separar nada disso do desenvolvimento soberano, sem o que não há progresso social nem o que redistribuir; e não há como falar em democracia, nem sequer liberal atente-se, se não se incorpora todo o povo à nação.

Essa a obra que está em curso neste ciclo progressista, imperfeita, cheia de contradições, mas promissora. Essa a proposta que, de modos diferentes, ganhou quatro eleições consecutivas à Presidência da República. No modo consequente de esquerda de ver as coisas, a proposta chama-se novo projeto nacional de desenvolvimento, caminho para voos mais altos.

Mas há outra lição: é preciso conquistar hegemonia na sociedade, não apenas vencer eleições. Somos uma “democracia eleitoral de massas”, onde a comunicação, nas eleições-espetáculo, tem papel desproporcional, embora válido, e os partidos políticos são reduzidos a máquinas eleitorais. Não basta ser a contraparte da “sociedade dos 30%” com a contraparte de outros 30%, dos alcançados pelos movimentos sociais organizados – em que pese seu papel estratégico.

O que é preciso é entender a gramática social e política bastante modificada por uma experiência de ascensão social de milhões de pessoas, provocando novos anseios e, ao mesmo tempo, de novas reações daqueles acostumados ao “você sabe com quem está falando?”. Novas contradições, novos anseios, novas tensões.

Parcelas extensas da sociedade, por diferentes caminhos e razões, votaram na proposta conservadora nestas eleições. Nos tradicionais estratos médios, muito ressentimento, Sul e Sudeste à frente. Mas há os novos estratos médios, mais numerosos hoje no “losango social” da população brasileira, especialmente nos grandes centros urbanos, que foram promovidos pelas políticas de redistribuição de Lula e Dilma. Neste caso, imbricam-se seus anseios/intenções e as manipulações de que foram alvo. Entre o receio de arrefecer o ritmo de progressão social ou decair nas conquistas, imbuídos de um ideário meritocrático, em alguma medida envolvidos com fundamentalismos religiosos e outros valores conservadores (não necessariamente reacionários), e sem a mesma experiência política do movimento social organizado, essas camadas foram o alvo privilegiado de medonha disputa política e midiática e foram capturadas no voto contra o projeto que lhe permitiu chegar onde chegou.

Assim segue a luta pela modernização. O Brasil deu grandes passos, até inimagináveis para apenas doze anos. Fez-se mais integral como nação e mais complexo. Não vai haver “divisão do país”, como já comentei em artigo anterior. Deve, sim, instalar-se um combate superior. Essa a terceira lição, a mais velha de todas: é mais fácil mudar a economia do que a política. E é disso que se trata: a obra econômica e social que progrediu neste ciclo progressista está em contradição com a superestrutura política em que ocorre. Há uma disfuncionalidade política que trava a modernização.

Se cumpríssemos a Constituição de 1988, o país já seria maduramente moderno. A melhor parte da Constituição-cidadã, porém, nem sequer foi regulamentada, e já lá se vão 26 anos. Que dizer que nem sequer direito de resposta está regulamentado? Fazê-lo seria um programa simplesmente reformista mas revolucionário. O Estado brasileiro é essencialmente conservador e trava o avanço da modernização.

Para isso, essencialmente, é que se necessita de uma hegemonia alargada na sociedade, para dar sustentação ao governo e promover as reformas estruturais, entre as quais uma reforma política que permita espelhar a nova sociedade brasileira. Ou se avança nisso ou o próprio ritmo de mudança arrefecido pela trava política vai, mais dia, menos dia, engolir a experiência.

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