22 janeiro 2015

Usura desmedida na base da crise

O homem que inventou a atual instabilidade econômica
Conheça a história da invenção dos 'securities,' pacotes de dívidas vendidos como títulos nos mercados internacionais e que levaram à crise de 2008.
Max Seitz, no portal da Fundação Maurício Grabois

“Existe uma ansiedade no sistema financeiro global”, admite em seu site o Fórum Econômico Mundial, que esta semana reúne em Davos, Suíça, líderes políticos, econômicos e de negócios em todo o planeta para discutir o estado da economia global.
Que o preço do petróleo despenca, mas o do gás natural evitou o abismo. Que o euro se desvaloriza, mas o dólar se fortalece. Que o crescimento estancou em muitos países emergentes, como a China, mas não em outros que sofreram um desastre financeiro, como os EUA.
Que a riqueza do mundo aumenta, mas a desigualdade também. Que o nível de emprego se incrementa, mas as condições trabalhistas pioram. Que o consumo se intensifica, mas o endividamento se aprofunda.
Enfim, parece haver muitas realidades díspares ao mesmo tempo, e neste panorama é muito difícil encontrar um sentido para o que acontece, traçar um fio condutor que esclareça tudo.
Quando assim acontece, os guias do jornalismo – incluídos os da BBC – recomendam analisar os antecedentes.
E uma das coisas que ajudam muito na compreensão do que acontece é a mesmíssima História. Sim, a História com inicial maiúscula: o estudo dos eventos, seus protagonistas, suas causas e suas consequências sob uma perspectiva temporal mais ampla.
Gênese de uma crise
Este é justamente um dos aspectos explorados por um novo documentário da BBC intitulado The Super-Rich and Us (“Os super-ricos e nós”).
Ali se coloca que a origem da atual instabilidade econômica nos mercados e, especialmente, em nossas vidas remonta à invenção, em 1977, de um instrumento financeiro poderoso que abriu passagem de forma inescrupulosa, a “securitização”, cujo criador, Robert Dall, naquele momento um operador de Wall Street, é hoje um idoso frágil e com alguns remorsos.
Brevemente, a “securitização” consiste em formar pacotes com dívidas contraídas pelas pessoas – sejam hipotecas, créditos para comprar um carro ou balanços de cartões de crédito – para logo vendê-los a investidores nos mercados internacionais na forma de títulos conhecidos como “securities”.
Em outras palavras, empacota-se o risco – que, no entanto, é atrativo porque o endividamento pressupõe um pagamento mensal regular – para transformá-lo em um ativo financeiro que paga bons juros.
“A ideia tinha potencial, mas nunca poderia imaginar que se propagaria tão rapidamente”, confessa Dall à BBC.
Esse esquema engendrou, nos anos 80 e 90, um grupo de financistas ricos com salários e bônus descomunais, muito alheios ao resto dos mortais.
“No ato, havia gente que se aproximava de mim nos restaurantes e me dizia coisas como 'obrigado pela ideia'”, lembra-se Dall.
Créditos de má qualidade
Contudo, o conceito começou a degenerar no princípio dos anos 2000, quando começaram a misturar, num mesmo pacote, empréstimos cobráveis com incobráveis.
Nossas dívidas haviam sido usadas para transformar os mercados em uma enorme maquinaria de fazer dinheiro e, em determinado momento, essa maquinaria precisou se alimentar de novas fontes de endividamento.
Isso é precisamente o que levou à crise do subprime (créditos de “segunda oportunidade”) nos EUA.
Os pacotes acabaram por conter elementos demasiadamente tóxicos: hipotecas concedidas de forma irresponsável, sem muito controle, a pessoas que poderiam se ver em dificuldade de manter os pagamentos.
A bolha dos empréstimos hipotecários nos EUA estourou em 2007-2008, quando uma grande quantidade de indivíduos não pôde cumprir com suas obrigações, e desembocou na crise internacional da qual ainda hoje falamos.
“O problema é que as pessoas que faziam as hipotecas ignoravam que esses créditos eram diferentes”, lamenta Dall.
“Não sabiam que havia hipotecas que eram reais e outras que eram falsas”.
Insegurança como modo de vida
Seria possível afirmar que a “securitização” conduziu à “insecuritização” da nossa existência.
A revolução financeira iniciada por Dall, na qual assumir riscos era não apenas bem visto, mas também era feito com as nossas dívidas, teve profundas consequências na vida cotidiana de muitíssimas pessoas, conforme se afirma em The Super-Rich and Us.
O reinado do risco, com seus tropeços, não apenas contribuiu para aumentar a brecha entre os super-ricos e o resto da humanidade, como também – e fundamentalmente – injetou uma sensação constante de insegurança, incerteza e precariedade em nossas vidas.
Assim foi como se criou um mundo que se encontra em permanente desequilíbrio e não consegue sair da crise. Um mundo com um nível de imprevisibilidade econômica que causa ansiedade em todos nós.
Por exemplo, é quase impossível saber o que acontecerá com nosso emprego, com nosso país, ou com o mundo no futuro imediato.
Esse é precisamente o fio condutor do que ocorre hoje: a economia se tornou vacilante, inconsistente, não parece ter um rumo claro. No momento, não nos resta outra opção senão entendê-la como tal e conviver com ela, conclui o documentário da BBC.
E não podemos repetir a velha frase de que o resto é história, pois a história da crise global continua sendo escrita.
Nem sequer os economistas mais lúcidos vislumbram um fim e isso é algo que “os mantém acordados à noite”, segundo reconhece o próprio Fórum Econômico Mundial.

Tradução de Daniella Cambaúva da BBC para Carta Maior

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