Conheça a história da invenção dos 'securities,' pacotes de dívidas
vendidos como títulos nos mercados internacionais e que levaram à crise de
2008.
Max Seitz, no portal da Fundação
Maurício Grabois
“Existe uma
ansiedade no sistema financeiro global”, admite em seu site o Fórum Econômico
Mundial, que esta semana reúne em Davos, Suíça, líderes políticos, econômicos e
de negócios em todo o planeta para discutir o estado da economia global.
Que o preço do
petróleo despenca, mas o do gás natural evitou o abismo. Que o euro se
desvaloriza, mas o dólar se fortalece. Que o crescimento estancou em muitos
países emergentes, como a China, mas não em outros que sofreram um desastre
financeiro, como os EUA.
Que a riqueza
do mundo aumenta, mas a desigualdade também. Que o nível de emprego se
incrementa, mas as condições trabalhistas pioram. Que o consumo se intensifica,
mas o endividamento se aprofunda.
Enfim, parece
haver muitas realidades díspares ao mesmo tempo, e neste panorama é muito
difícil encontrar um sentido para o que acontece, traçar um fio condutor que
esclareça tudo.
Quando assim
acontece, os guias do jornalismo – incluídos os da BBC – recomendam analisar os
antecedentes.
E uma das
coisas que ajudam muito na compreensão do que acontece é a mesmíssima História.
Sim, a História com inicial maiúscula: o estudo dos eventos, seus
protagonistas, suas causas e suas consequências sob uma perspectiva temporal
mais ampla.
Gênese de uma
crise
Este é
justamente um dos aspectos explorados por um novo documentário da BBC
intitulado The Super-Rich and Us (“Os super-ricos e nós”).
Ali se coloca
que a origem da atual instabilidade econômica nos mercados e, especialmente, em
nossas vidas remonta à invenção, em 1977, de um instrumento financeiro poderoso
que abriu passagem de forma inescrupulosa, a “securitização”, cujo criador,
Robert Dall, naquele momento um operador de Wall Street, é hoje um idoso frágil
e com alguns remorsos.
Brevemente, a
“securitização” consiste em formar pacotes com dívidas contraídas pelas pessoas
– sejam hipotecas, créditos para comprar um carro ou balanços de cartões de
crédito – para logo vendê-los a investidores nos mercados internacionais na
forma de títulos conhecidos como “securities”.
Em outras
palavras, empacota-se o risco – que, no entanto, é atrativo porque o
endividamento pressupõe um pagamento mensal regular – para transformá-lo em um
ativo financeiro que paga bons juros.
“A ideia tinha
potencial, mas nunca poderia imaginar que se propagaria tão rapidamente”,
confessa Dall à BBC.
Esse esquema
engendrou, nos anos 80 e 90, um grupo de financistas ricos com salários e bônus
descomunais, muito alheios ao resto dos mortais.
“No ato, havia
gente que se aproximava de mim nos restaurantes e me dizia coisas como
'obrigado pela ideia'”, lembra-se Dall.
Créditos de má
qualidade
Contudo, o
conceito começou a degenerar no princípio dos anos 2000, quando começaram a
misturar, num mesmo pacote, empréstimos cobráveis com incobráveis.
Nossas dívidas
haviam sido usadas para transformar os mercados em uma enorme maquinaria de
fazer dinheiro e, em determinado momento, essa maquinaria precisou se alimentar
de novas fontes de endividamento.
Isso é
precisamente o que levou à crise do subprime (créditos de “segunda oportunidade”)
nos EUA.
Os pacotes
acabaram por conter elementos demasiadamente tóxicos: hipotecas concedidas de
forma irresponsável, sem muito controle, a pessoas que poderiam se ver em
dificuldade de manter os pagamentos.
A bolha dos
empréstimos hipotecários nos EUA estourou em 2007-2008, quando uma grande
quantidade de indivíduos não pôde cumprir com suas obrigações, e desembocou na
crise internacional da qual ainda hoje falamos.
“O problema é
que as pessoas que faziam as hipotecas ignoravam que esses créditos eram
diferentes”, lamenta Dall.
“Não sabiam
que havia hipotecas que eram reais e outras que eram falsas”.
Insegurança
como modo de vida
Seria possível
afirmar que a “securitização” conduziu à “insecuritização” da nossa existência.
A revolução
financeira iniciada por Dall, na qual assumir riscos era não apenas bem visto,
mas também era feito com as nossas dívidas, teve profundas consequências na
vida cotidiana de muitíssimas pessoas, conforme se afirma em The Super-Rich and
Us.
O reinado do
risco, com seus tropeços, não apenas contribuiu para aumentar a brecha entre os
super-ricos e o resto da humanidade, como também – e fundamentalmente – injetou
uma sensação constante de insegurança, incerteza e precariedade em nossas
vidas.
Assim foi como
se criou um mundo que se encontra em permanente desequilíbrio e não consegue
sair da crise. Um mundo com um nível de imprevisibilidade econômica que causa
ansiedade em todos nós.
Por exemplo, é
quase impossível saber o que acontecerá com nosso emprego, com nosso país, ou
com o mundo no futuro imediato.
Esse é
precisamente o fio condutor do que ocorre hoje: a economia se tornou vacilante,
inconsistente, não parece ter um rumo claro. No momento, não nos resta outra
opção senão entendê-la como tal e conviver com ela, conclui o documentário da
BBC.
E não podemos
repetir a velha frase de que o resto é história, pois a história da crise
global continua sendo escrita.
Nem sequer os
economistas mais lúcidos vislumbram um fim e isso é algo que “os mantém
acordados à noite”, segundo reconhece o próprio Fórum Econômico Mundial.
Tradução de
Daniella Cambaúva da BBC para Carta Maior
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