26 setembro 2015

Face cruel da opressão racial

Morte de jovens negros, quem liga?

Olívia Santa, no portal Vermelho
Nunca é demais repisar números tão conhecidos, alertando que expressam vidas, muito sofrimento e vergonha para quem se liga. No Brasil, a chance de um jovem negro morrer de "morte matada", como se diz aqui no Nordeste, é 3,7 vezes maior do que a de um jovem branco, segundo dados do IPEA-2013. Esta é apenas uma das inúmeras estatísticas que subsidiaram o Relatório Final da Comissão Parlamentar de Inquérito sobre os Homicídios de Jovens Negros e Pobres no Brasil.
A CPI expôs no âmbito da Câmara dos Deputados, expressão maior do Poder Legislativo do país - e onde a presença de negros é residual -, aquilo que as favelas sempre vivenciaram, sofreram, testemunharam, mas que sempre repousou sob o manto da invisibilidade estatal.
Mas, a mesma Câmara que instituiu essa importante CPI também aprovou a redução da maioridade penal. A chamada bancada da bala avança sobre o Estatuto do Desarmamento, com o objetivo de reduzir para 21 anos a idade mínima permitida para a compra de armas no país, que está estabelecida em 25 anos, e tornar mais flexível a aquisição de armamento para as pessoas que têm antecedentes criminais, além de ampliar para nove o número de armas que cada pessoa pode comprar, atualmente limitado em seis.
É uma difícil equação querer estancar a violência tentando aprovar mecanismos que favorecem o armamento da juventude e reduzindo a maioridade penal. A consequência pode ser o aumento das taxas de mortes violentas e o encarceramento de mais jovens, sobretudo os negros e pobres. Se o projeto de lei 3722/12, da bancada da bala, vingar, a indústria de armamento fará a festa monetária, enquanto caberá às famílias contabilizar e chorar seus mortos.
Há que se indignar com a maneira como as instâncias formais do poder público vêm lidando com as mortes de jovens negros. A forma como ligam para a violência de balas não perdidas, mas direcionadas à parcela negra da população, revela uma maneira de se desligar, por normas absurdas, do que historicamente não é novo.
Sim, não é de hoje que a juventude negra é alvo sistemático da violência letal e de encarceramento no país. Na era escravista, o negro, destituído de poder sobre a sua força de trabalho, era tratado pelo Estado como um inimigo potencial. Tudo era feito para que aquela gente de cor fosse contida nos limites da vocação que o Estado escravocrata, estruturado em paradigmas racistas, destinara a ela.
Tal grupo social sempre foi duramente combatido ao riscar fora dos limites traçados. Toda a legislação, o sistema jurídico e o aparato policial foram forjados tendo o negro como presa preferencial e com evidentes mecanismos de instituição de castigos horrendos para desestimular ou desmontar possibilidades de insurgências contra a injusta e brutal ordem estabelecida.
Vale destacar que o tráfico e a comercialização de africanos, majoritariamente, e de africanas para servir ao regime escravista, se servia, sobretudo, de jovens em pleno vigor, que gozavam de maior capacidade produtiva. Não por acaso, historiadores resgatam lideranças jovens insurgentes. Na Revolta de Búzios, ocorrida na Bahia, por exemplo, em que negros e brancos participaram, foram os jovens negros que pagaram a pena mais dura. Quatro homens negros foram decapitados pelas mãos do Estado. Três deles tinham menos de 25 anos: Manuel Faustino, de 23 anos, Lucas Dantas e João de Deus, ambos com 24 anos.
A marginalização da Capoeira e a perseguição tenaz aos seus praticantes justificou o encarceramento, o castigo e até a morte de muitos jovens negros. Em 1822, um decreto determinava que quem fosse pego praticando capoeira poderia ser condenado a sofrer até 200 chibatadas. Os símbolos da cultura de resistência negra continuam sendo alvo da ação policial nos dias atuais. Comumente nas blitz policiais jovens negros são tratados como se marginais fossem, pelo simples fato de usarem bonés, cabelo Black Power, dreadlock, estética hip hop.
Como não lembrar da chamada Lei da Vadiagem, instituída em 1940, que penalizava negros pegos sem ocupação, especialmente jovens, analfabetos, jogados à margem do mercado de trabalho livre, marcadamente ocupado por uma classe trabalhadora formada por imigrantes e brancos pobres. Ou seja, além de não dar emprego decente para a grande massa negra, o Estado encarcerava as vítimas do seu próprio sistema de exclusão.
Atualmente, convivemos com a silenciosa tragédia dos deserdados, cujas mortes não causam espanto. Sejam os autos de resistência, seja o argumento das drogas e do tráfico. Fato é que, em relação às mortes de jovens negros, o velho hábito é o da banalização de uma larga parcela da sociedade e da elite política.
De acordo com o Mapa da Violência de 2015, organizado por Júlio Jacobo Waiselfiz, publicado em maio último, "as taxas de homicídios de brancos por armas de fogo caem de 14,5 para 11,8 em 100 mil habitantes, entre 2003 e 2012, enquanto as taxas de homicídios de negros aumentam de 24,9 para 28,5 no mesmo período". Ou seja, as taxas dos brancos caíram 18,7% e as dos negros aumentaram 14,1%. "Com esse ritmo marcadamente diferencial, a vitimização negra, que em 2003 era de 72,5%, em poucos anos duplica: em 2012 já é 142%”.
Como não se estarrecer com tais dados e o fato de que, em 2011, 53,3% dos 52.198 mortos por homicídio eram jovens e que 71,44% dessas vítimas tinham pele negra, e ainda que 93,03% eram do sexo masculino (também dados do SIM/DATASUS)? Jovens homens negros que deixam também vitimizadas por suas mortes muitas mulheres, mães, filhas e esposas. Famílias negras destruídas.
É, sem dúvida, altamente arriscado nascer negro no Brasil. Há aqui os privilégios da cor, na vida e na morte. Brancos hegemonizando o topo da cadeia social e a massa negra, à margem dos direitos proclamados como iguais, sendo contida ou simplesmente eliminada prematuramente - o que é mais terrível -, muitas vezes pelo próprio aparato de segurança pública.
Quem liga? As vozes dos movimentos sociais de juventude, especialmente a meninada do movimento negro, têm sido cada vez mais tenazes, mais indignadas, gestando uma reação de baixo pra cima, que começa a repercutir até mesmo fora do Brasil. O assunto 'mortes de jovens negros' tem tomado uma dimensão de urgência para muitos que querem virar a mesa e ver estancada a perda prematura de tantos que deveriam ser dignamente integrados a um novo projeto de nação.
O trabalho da CPI da Câmara Federal deve ir mais longe do que a comprovação do extermínio silencioso de tenras vidas negras. É preciso saltar do plano da denúncia para o plano da projeção de medidas que alterem esse quadro caótico. Cabe ao Congresso mudar a pauta conservadora de votações, que vem fazendo e bancar projetos que possam efetivamente alterar a rota da mortandade, elevando os horizontes da juventude negra e a sua expectativa de vida.
É urgente o fim dos autos de resistência, a desmilitarização da polícia e a manutenção do regime de partilha do Pré-Sal, para que haja dinheiro novo para investir na escola pública, que precisa ser refundada em outras bases. Se tais medidas fossem tomadas, já seria um bom começo, uma forma efetiva de demonstrar preocupação com o extermínio de jovens negros e o esfacelamento de suas famílias.
Cabe aos que ligam, aos que se importam, o exercício do poder da pressão. Escrever, gritar, impedir a "banalização do mal", repetindo o grito de Castro Alves, em Vozes da África: "Deus, oh Deus, onde estás, que não respondes? Há dois mil anos eu lhe mando meu grito que embalde, desde então, corre o infinito...".
* Olívia Santana, secretária Nacional de Combate ao Racismo do PCdoB
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