Morte de jovens negros, quem liga?
Olívia
Santa, no portal Vermelho
Nunca é demais repisar
números tão conhecidos, alertando que expressam vidas, muito sofrimento e
vergonha para quem se liga. No Brasil, a chance de um jovem negro morrer de
"morte matada", como se diz aqui no Nordeste, é 3,7 vezes maior do
que a de um jovem branco, segundo dados do IPEA-2013. Esta é apenas uma das
inúmeras estatísticas que subsidiaram o Relatório Final da Comissão Parlamentar
de Inquérito sobre os Homicídios de Jovens Negros e Pobres no Brasil.
A CPI expôs no âmbito da Câmara dos
Deputados, expressão maior do Poder Legislativo do país - e onde a presença de
negros é residual -, aquilo que as favelas sempre vivenciaram, sofreram,
testemunharam, mas que sempre repousou sob o manto da invisibilidade estatal.
Mas, a mesma Câmara que instituiu essa
importante CPI também aprovou a redução da maioridade penal. A chamada bancada
da bala avança sobre o Estatuto do Desarmamento, com o objetivo de reduzir para
21 anos a idade mínima permitida para a compra de armas no país, que está
estabelecida em 25 anos, e tornar mais flexível a aquisição de armamento para
as pessoas que têm antecedentes criminais, além de ampliar para nove o número
de armas que cada pessoa pode comprar, atualmente limitado em seis.
É uma difícil equação querer estancar a
violência tentando aprovar mecanismos que favorecem o armamento da juventude e
reduzindo a maioridade penal. A consequência pode ser o aumento das taxas de
mortes violentas e o encarceramento de mais jovens, sobretudo os negros e
pobres. Se o projeto de lei 3722/12, da bancada da bala, vingar, a indústria de
armamento fará a festa monetária, enquanto caberá às famílias contabilizar e
chorar seus mortos.
Há que se indignar com a maneira como as
instâncias formais do poder público vêm lidando com as mortes de jovens negros.
A forma como ligam para a violência de balas não perdidas, mas direcionadas à
parcela negra da população, revela uma maneira de se desligar, por normas
absurdas, do que historicamente não é novo.
Sim, não é de hoje que a juventude negra é
alvo sistemático da violência letal e de encarceramento no país. Na era
escravista, o negro, destituído de poder sobre a sua força de trabalho, era
tratado pelo Estado como um inimigo potencial. Tudo era feito para que aquela
gente de cor fosse contida nos limites da vocação que o Estado escravocrata,
estruturado em paradigmas racistas, destinara a ela.
Tal grupo social sempre foi duramente
combatido ao riscar fora dos limites traçados. Toda a legislação, o sistema
jurídico e o aparato policial foram forjados tendo o negro como presa
preferencial e com evidentes mecanismos de instituição de castigos horrendos
para desestimular ou desmontar possibilidades de insurgências contra a injusta
e brutal ordem estabelecida.
Vale destacar que o tráfico e a comercialização
de africanos, majoritariamente, e de africanas para servir ao regime
escravista, se servia, sobretudo, de jovens em pleno vigor, que gozavam de
maior capacidade produtiva. Não por acaso, historiadores resgatam lideranças
jovens insurgentes. Na Revolta de Búzios, ocorrida na Bahia, por exemplo, em
que negros e brancos participaram, foram os jovens negros que pagaram a pena
mais dura. Quatro homens negros foram decapitados pelas mãos do Estado. Três
deles tinham menos de 25 anos: Manuel Faustino, de 23 anos, Lucas Dantas e João
de Deus, ambos com 24 anos.
A marginalização da Capoeira e a perseguição
tenaz aos seus praticantes justificou o encarceramento, o castigo e até a morte
de muitos jovens negros. Em 1822, um decreto determinava que quem fosse pego
praticando capoeira poderia ser condenado a sofrer até 200 chibatadas. Os
símbolos da cultura de resistência negra continuam sendo alvo da ação policial
nos dias atuais. Comumente nas blitz policiais jovens negros são tratados como
se marginais fossem, pelo simples fato de usarem bonés, cabelo Black Power,
dreadlock, estética hip hop.
Como não lembrar da chamada Lei da Vadiagem,
instituída em 1940, que penalizava negros pegos sem ocupação, especialmente
jovens, analfabetos, jogados à margem do mercado de trabalho livre,
marcadamente ocupado por uma classe trabalhadora formada por imigrantes e
brancos pobres. Ou seja, além de não dar emprego decente para a grande massa
negra, o Estado encarcerava as vítimas do seu próprio sistema de exclusão.
Atualmente, convivemos com a silenciosa
tragédia dos deserdados, cujas mortes não causam espanto. Sejam os autos de
resistência, seja o argumento das drogas e do tráfico. Fato é que, em relação
às mortes de jovens negros, o velho hábito é o da banalização de uma larga
parcela da sociedade e da elite política.
De acordo com o Mapa da Violência de 2015,
organizado por Júlio Jacobo Waiselfiz, publicado em maio último, "as taxas
de homicídios de brancos por armas de fogo caem de 14,5 para 11,8 em 100 mil
habitantes, entre 2003 e 2012, enquanto as taxas de homicídios de negros
aumentam de 24,9 para 28,5 no mesmo período". Ou seja, as taxas dos
brancos caíram 18,7% e as dos negros aumentaram 14,1%. "Com esse ritmo
marcadamente diferencial, a vitimização negra, que em 2003 era de 72,5%, em
poucos anos duplica: em 2012 já é 142%”.
Como não se estarrecer com tais dados e o
fato de que, em 2011, 53,3% dos 52.198 mortos por homicídio eram jovens e que
71,44% dessas vítimas tinham pele negra, e ainda que 93,03% eram do sexo masculino
(também dados do SIM/DATASUS)? Jovens homens negros que deixam também
vitimizadas por suas mortes muitas mulheres, mães, filhas e esposas. Famílias
negras destruídas.
É, sem dúvida, altamente arriscado nascer
negro no Brasil. Há aqui os privilégios da cor, na vida e na morte. Brancos
hegemonizando o topo da cadeia social e a massa negra, à margem dos direitos
proclamados como iguais, sendo contida ou simplesmente eliminada prematuramente
- o que é mais terrível -, muitas vezes pelo próprio aparato de segurança
pública.
Quem liga? As vozes dos movimentos sociais
de juventude, especialmente a meninada do movimento negro, têm sido cada vez
mais tenazes, mais indignadas, gestando uma reação de baixo pra cima, que
começa a repercutir até mesmo fora do Brasil. O assunto 'mortes de jovens
negros' tem tomado uma dimensão de urgência para muitos que querem virar a mesa
e ver estancada a perda prematura de tantos que deveriam ser dignamente
integrados a um novo projeto de nação.
O trabalho da CPI da Câmara Federal deve ir
mais longe do que a comprovação do extermínio silencioso de tenras vidas
negras. É preciso saltar do plano da denúncia para o plano da projeção de
medidas que alterem esse quadro caótico. Cabe ao Congresso mudar a pauta
conservadora de votações, que vem fazendo e bancar projetos que possam
efetivamente alterar a rota da mortandade, elevando os horizontes da juventude
negra e a sua expectativa de vida.
É urgente o fim dos autos de resistência, a
desmilitarização da polícia e a manutenção do regime de partilha do Pré-Sal,
para que haja dinheiro novo para investir na escola pública, que precisa ser
refundada em outras bases. Se tais medidas fossem tomadas, já seria um bom
começo, uma forma efetiva de demonstrar preocupação com o extermínio de jovens
negros e o esfacelamento de suas famílias.
Cabe aos que ligam, aos que se importam, o
exercício do poder da pressão. Escrever, gritar, impedir a "banalização do
mal", repetindo o grito de Castro Alves, em Vozes da África: "Deus,
oh Deus, onde estás, que não respondes? Há dois mil anos eu lhe mando meu grito
que embalde, desde então, corre o infinito...".
* Olívia Santana, secretária Nacional de
Combate ao Racismo do PCdoB
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