Nilson Vellazquez,
no blog Verbalize
Em vários momentos da história, a música cumpriu seu papel de afirmar e
expor os conflitos existentes na sociedade. Chico Buarque cantou, em versos
muitas vezes disfarçados, a opressão do Regime Militar, subverteu símbolos,
como o “Cálice”, para dizer o que pensava e precisava ser dito. Victor Hugo já
afirmara: “a música é o barulho que pensa”. Em plena década de 90, em que os
inimigos daquele momento estavam muito mais difusos que no período de “Cálice”,
numa cidade que, segundo pesquisas (TELES, 2012 p. 258), era a quarta pior
cidade do mundo para se morar, surge um movimento musical, inspirado na mistura
de linguagens musicais, sonoras e visuais para afirmar a identidade cultural de
uma população e expor contradições e conflitos intrínsecos da formação do povo
recifense e pernambucano. O Manguebeat, movimento liderado por Chico Science e
sua banda Nação Zumbi e Mundo Livre S/A, desnudou problemas e características
da formação de nossa cidade de forma irreverente e plenamente crítica. Se
levarmos em consideração outros movimentos musicais da cultura pernambucana que
têm lugar cativo no coração da população do estado, como o Maracatu e o Frevo,
sendo este último patrimônio imaterial do estado e da humanidade, é ao lado
dessas manifestações artísticas que o manguebeat deve estar, não só
no carnaval, mas recebendo o devido incentivo e divulgação para todas as
gerações, inclusive nas escolas, visto que o movimento tratou e trata de
questões pertinentes à vida da periferia e das nossas cidades como um todo.
O Manguebeat, movimento primordialmente musical, utiliza-se da
língua(gem) escrita, mas com uma importante dimensão oral, para dizer aquilo
que os seus idealizadores pensavam. E no uso da linguagem, o movimento teve
como um dos principais recursos a forma como seus autores lidavam com os
símbolos/signos linguísticos. O Manguebeat utilizou-se de símbolos que, antes,
não caracterizavam a posição na luta de classes que passou a ter em suas
canções. Palavras como “lama”, “mangue”, “caranguejos” passaram a ganhar um
novo enfoque; pois segundo Bakhtin (1997) “Todo signo é ideológico; a ideologia
é um reflexo das estruturas sociais; assim, toda modificação da ideologia
encadeia uma modificação da língua”.
Essa modificação da ideologia é, justamente, o essencial no que se
refere ao discurso veiculado pelo Manguebeat, pois ao mexer com os signos
linguísticos, ao revirá-los e remoldá-los, o sujeito está afirmando sua
ideologia, dizendo aquilo que pode e deve ser dito diante da posição que ele
ocupa na luta de classes. As músicas do Manguebeat afirmam, a todo tempo, um
posicionamento ideológico, do cidadão que reconhece a cultura local, as belezas
de sua cidade, mas não se esquece de denunciar as mazelas, contradições e
desigualdades que surgem desde sua fundação.
Para Bakhtin (1997), faz-se de total importância lembrar que a ideologia
e os signos estão intimamente ligados, pois, segundo ele, “tudo que é
ideológico possui um significado e remete a algo situado fora de si mesmo. Em
outros termos, tudo que é ideológico é um signo”.
Entretanto, para além disso, Bakhtin (1997) avalia que mesmo um corpo
físico, que normalmente vale por si próprio, pode ser percebido como símbolo. E
essa relação foi algo que o movimento Manguebeat executou de maneira exitosa.
Chico Science e companhia trabalhou com símbolos físicos remoldados a fim de
representar uma ideologia, ou o que Chauí (2001) chama de “contra-ideologia”. A
subversão de termos como “caranguejo”, “mangue”, “lama”, “cidade” corrobora com
a ideia do valor que a palavra exerce a depender da posição em que ela é
enunciada diante da luta de classes.
Segundo Bakhtin (1997 p. 35), “A consciência adquire forma e existência
nos signos criados por um grupo organizado no curso de suas relações sociais.
Os signos são o alimento da consciência individual, a matéria de seu
desenvolvimento”. O autor ainda se refere aos signos como algo indissociável da
luta de classes, haja vista que signos isolados perdem o sentido e tendem a ser
objeto de estudos da filologia, tornam-se algo sem vida e sem racionalidade.
Há, ainda, na relação com os signos, a mais que feliz escolha do
movimento, visto que, de acordo com José Teles, “A capital pernambucana
foi erguida em cima de manguezais, ela é com efeito um imenso aterro, cruzada
por rios. A relação da população pobre com o mangue, sua flora e fauna, é de
grande intimidade. O primeiro, senão o mais importante, estudioso desse
relacionamento foi o médico Josué de Castro (...)”.
Além disso, a intertextualidade buscada nas referências de Josué de
Castro - médico, geógrafo, sociólogo e político - cujo estudo sobre a fome e
sobre a relação dos famintos recifenses com o mangue permearam sua obra e
permeiam a do manguebeat desde Chico vivo até os tempos da Nação Zumbi sem ele,
como na música "Fome de Tudo", que diz "a fome tem uma saúde de
ferro..."
Por isso, conhecer, estudar e promover esse movimento que em muito
ultrapassou a questão da estética musical, passando pelo cinema, moda e
comportamento, faz parte de uma maneira cada vez melhor de entender as nossas
raízes e os heróis modernos que a música nos proporcionou, pois como dizia
Chico, "modernizar o passado é uma evolução musical".
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