07 junho 2016

Uma crônica para descontrair

O registro de nascimento de Cassius Clay
Luciano Siqueira, no Blog da Folha*

Diante do balcão do cartório de Campina Grande, na Paraíba, com a discrição recomendada aos perseguidos pela ditadura militar, esperávamos a nossa vez. Íamos registrar Luci como se fora empregada doméstica, com nome e endereço falsos.
Na fila, nos antecedia uma mulher ainda jovem, trinta anos talvez, trajes simples, sandália de rabicho, rosto ossudo e pálido. Tirando da bolsa um pedaço de papel cuidadosamente dobrado, anunciou o nome do filho:
- Cassius Clay, por favor.
- Como, minha senhora? Que nome esquisito! – as duas funcionárias, a presunção contida em suas fardas cor-de-rosa, riam em tom zombeteiro e com evidente má vontade para com a pobre mulher.
- Cassius Clay! Ora, já se viu batizar um filho com um nome desses!
- Me admira as senhoritas, assim bem-vestidas e tão instruídas, não conhecerem o campeão mundial de pugilismo, categoria peso pesado, Cassius Marcelus Clay, hoje chamado Muhammad Ali porque se converteu ao islamismo! – retrucou a mulher com firmeza e perfeita dicção. Sabia do que estava falando. E se impôs em sua altivez.
Recolhidas à sua ignorância, as “senhoritas instruídas” cuidaram dos procedimentos de praxe e nada mais disseram. Concluído o registro do paraibaninho Cassius Clay, a mãe orgulhosa, de fronte erguida, despediu-se:
- Passem bem. Muito obrigada.
As funcionárias nos atenderam em seguida visivelmente constrangidas. Haviam subestimado aquela mulher certamente pelo modo simples de trajar e pela face precocemente enrugada pelas dificuldades da vida. Deram-se mal.
Cuidamos então de nossa parte. O registro de nascimento de Luci (o meu eu já obtivera, na falsa condição de camponês, em Mecejana, no Ceará) era necessário para o nosso casamento civil – que celebramos dias depois em Maceió, Alagoas.
A partir daí, certidão de casamento em punho e destruídos os respectivos registros de nascimento que davam na vista (um ex-estudante de medicina feito camponês e uma ex-aluna do curso clássico do Colégio Estadual do Recife travestida de empregada doméstica), fomos à Secretaria de Segurança e obtivemos a carteira de identidade.
Na verdade, cuidamos depois de toda a documentação que normalmente se exige de pessoas que têm vida normal. Até impostos nós recolhíamos, como vendedores ambulantes de confecções. E assim pudemos realizar o trabalho partidário clandestino, relativamente a salvo da perseguição policial. Até sermos presos em abril de 1974.
Das nossas boas lembranças daquele tempo difícil ficou a imagem da pobre mãe de Cassius Clay e do modo como reagiu aos chistes preconceituosos das duas funcionárias do cartório.
*Crônica publicada originariamente no portal Vermelho em 30/03/2006 e incluída no livro “Como o lírio que brotou no telhado – outras crônicas escolhidas” – Editora Anita Garibaldi, São Paulo, 2006

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