Luciano Siqueira, no Blog da Folha*
Diante do balcão do cartório de Campina Grande, na Paraíba,
com a discrição recomendada aos perseguidos pela ditadura militar, esperávamos
a nossa vez. Íamos registrar Luci como se fora empregada doméstica, com nome e
endereço falsos.
Na fila, nos antecedia uma mulher ainda jovem, trinta anos
talvez, trajes simples, sandália de rabicho, rosto ossudo e pálido. Tirando da
bolsa um pedaço de papel cuidadosamente dobrado, anunciou o nome do filho:
- Cassius Clay, por favor.
- Como, minha senhora? Que nome esquisito! – as duas
funcionárias, a presunção contida em suas fardas cor-de-rosa, riam em tom
zombeteiro e com evidente má vontade para com a pobre mulher.
- Cassius Clay! Ora, já se viu batizar um filho com um nome
desses!
- Me admira as senhoritas, assim bem-vestidas e tão instruídas,
não conhecerem o campeão mundial de pugilismo, categoria peso pesado, Cassius
Marcelus Clay, hoje chamado Muhammad Ali porque se converteu ao islamismo! –
retrucou a mulher com firmeza e perfeita dicção. Sabia do que estava falando. E
se impôs em sua altivez.
Recolhidas à sua ignorância, as “senhoritas instruídas”
cuidaram dos procedimentos de praxe e nada mais disseram. Concluído o registro
do paraibaninho Cassius Clay, a mãe orgulhosa, de fronte erguida, despediu-se:
- Passem bem. Muito obrigada.
As funcionárias nos atenderam em seguida visivelmente constrangidas.
Haviam subestimado aquela mulher certamente pelo modo simples de trajar e pela
face precocemente enrugada pelas dificuldades da vida. Deram-se mal.
Cuidamos então de nossa parte. O registro de nascimento de
Luci (o meu eu já obtivera, na falsa condição de camponês, em Mecejana, no
Ceará) era necessário para o nosso casamento civil – que celebramos dias depois
em Maceió, Alagoas.
A partir daí, certidão de casamento em punho e destruídos os
respectivos registros de nascimento que davam na vista (um ex-estudante de
medicina feito camponês e uma ex-aluna do curso clássico do Colégio Estadual do
Recife travestida de empregada doméstica), fomos à Secretaria de Segurança e obtivemos
a carteira de identidade.
Na verdade, cuidamos depois de toda a documentação que
normalmente se exige de pessoas que têm vida normal. Até impostos nós recolhíamos,
como vendedores ambulantes de confecções. E assim pudemos realizar o trabalho
partidário clandestino, relativamente a salvo da perseguição policial. Até sermos
presos em abril de 1974.
Das nossas boas lembranças daquele tempo difícil ficou a
imagem da pobre mãe de Cassius Clay e do modo como reagiu aos chistes
preconceituosos das duas funcionárias do cartório.
*Crônica
publicada originariamente no portal Vermelho em 30/03/2006 e incluída no livro “Como
o lírio que brotou no telhado – outras crônicas escolhidas” – Editora Anita
Garibaldi, São Paulo, 2006
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