Xadrez do Hommer Simpson e do desmonte nacional
Luis
Nassif, Jornal GGN
Nos
últimos dias tive dois contatos marcantes. Um deles, com um autêntico
representante da ultradireita delirante. Outro, com um representante típico do
Homer Simpson.
Vamos
por parte.
Fomos
apresentados à direita delirante por um amigo gozador, que juntou os três
casais em uma feijoada. O sujeito era oftalmologista, estudara nos Estados
Unidos, em uma universidade da qual não me recordo o nome, mas, segundo ele,
muito mais afamada que Harvard, tinha sido convidado a trabalhar em um
órgão do governo norte-americano, muito importante, e do qual não me recordo o
nome, e cometeu outros feitos expressivos, dos quais não me recordo a
relevância.
Ele
se informa em sites de ultra-direita, não confia em nada do que sai na imprensa
e acredita em tudo o que lhe dizem seus pares.
Quando
elogiou minha origem libanesa, por ser uma raça pura, percebi que a conversa ia
ser marcante.
Ele
é contra todas as raças impuras, diz que Donald Trump vai colocar as coisas nos
eixos (sem jogo de palavras). Garantiu, sem pestanejar, que Michele Obama é
transexual; que Barack Obama não é Barack Obama, mas um sujeito que se faz
passar por Barack Obama. Trata os negros como macacos. E me passou a mais
retumbante das revelações que, segundo ele, tem sido sonegada por toda a imprensa
ocidental. Aliás, apostou comigo como não conseguiria publicar nem no meu blog
a relevante informação de que não há mais peixes no Oceano Pacífico.E não
adiantou argumentar que desastre desse tamanho não seria sonegado nem pelo
Estadão, mesmo se fosse de responsabilidade do PSDB.
Pulemos
para o simpático Homer Simpson, que me aborda no boteco de Poços.
Diz
que os problemas no Brasil surgiram com o porto de Mariel, em Cuba. Levaram
para lá todos nossos empregos e nossas divisas.
Tento
explicar que a construção do porto envolve inúmeros materiais e equipamentos
fabricados no Brasil, contratos com indústria mecânica, siderúrgica e muitas
outras. Portanto, gerou muitos empregos no Brasil.
E
ele: mas o dinheiro foi para fora.
Explico
que não, que a obra será paga e os lucros reverterão para o Brasil, através da
empresa construtora.
E
ele: não sei não.
Pacientemente
explico que se trata de exportação de serviço praticada por todas as nações,
pela China, pelos Estados Unidos. Se não fosse bom, porque os grandes países
disputariam mercado?
E
ele, com a segurança de um procurador da Lava Jato: “Pode ser bom para a China
e Estados Unidos, mas não para o Brasil”.
Aí
desisto e, como no começo da conversa ele se apresentou como astrólogo amador,
interrompo a conversa com minha saída favorita:
-
Eu não ouso discutir astrologia com você.
Ele
entendeu, se despediu e foi embora. Educadamente, saliento.
O
fenômeno da desinformação
Nos
dois casos, a conversa – embora surreal – foi em bases relativamente educadas.
No caso do direitoso, um conteúdo de uma violência extrema, mas dito
socialmente em uma “conversa de brancos”. No Hommer Simpson, um senhor
simpático, boa gente mesmo.
Mas
o novo normal é a grosseria, o sujeito tratar sua opinião como um bem de raiz,
dedicando a ela o mesmo cuidado obsessivo com que cuida das suas posses, seja o
carro velho ou a casa a beira-mar. E reagindo agressivamente contra qualquer tentativa
de tirá-lo da comodidade das suas verdades estabelecidas.
Na
convivência social, um dos primeiros fatores de contenção é o conjunto de
regras sociais consolidadas que impõe um padrão de sociabilidade do
restaurante granfino, ao boteco de família, da missa ao estatuto da gafieira.
Cada
ambiente tem seu conjunto de regras e seus limites. O machismo e a homofobia
estão restritos a ambientes machistas, onde é de mau tom defender transexuais.
Mas, se saíssem fora da jaula, seriam coibidos por olhares de reprovação. Nos
botecos, as mesas separavam os grupos por afinidade de opinião. Mas não havia
interferência nas conversas, mesmo por parte de quem ouvisse e reprovasse.
Nos
ambientes públicos, não era de bom tom o preconceito, a intolerância. Uma pitada
de esquerda social dava até status intelectual. E havia um respeito (muitas
vezes excessivo) pelo conhecimento técnico.
Todas
essas barreiras caíram. Hoje em dia, a norma é a grosseria, a opinião fechada,
intransponível como a muralha chinesa, em torno do senso comum mais primário ou
da piração mais louca, como comprovaram meus dois interlocutores.
Quais
os fatores que levaram o mundo a essa balbúrdia?
Os
fatores de confusão
Há
um conjunto de fatores muito similar ao que conduziu o Ocidente de fins do
século 19 até a 2a Guerra:
•
Uma fase de grandes avanços científicos e tecnológicos que não resultaram em
melhoria da condição de vida das populações, levando à descrença em relação ao
pensamento científico, especialmente dos economistas.
•
Um financismo desvairado impedindo a consolidação das economias periféricas.
•
Dissolução de estados nacionais, guerras internas, promovendo gigantescos
movimentos migratórios.
•
Os imigrantes promovendo terremotos nas estruturas sociais estratificadas das
nações hospedeiras, com novos valores, novas informações, novas maneiras de
encarar a vida.
•
O aparecimento de novos meios de comunicação, implodindo a ordem que repousava
nos sistemas tradicionais de mídia.
•
A falência dos sistemas tradicionais arcaicos de política.
A
crise atual decorre de uma soma similar de fatores:
Fator
1 – a falência do conhecimento científico
A
crise de 2008 não apenas matou a ilusão do neoliberalismo como fator de
promoção de desenvolvimento e bem estar. Levou junto a respeitabilidade do
conhecimento científico junto ao público leigo, da mesma maneira que o atual
estado de exceção está desmoralizando o conhecimento jurídico.
A
expansão do neoliberalismo, da ampla desregulação financeira, foi fundada na
adesão acrítica e interessada de vastos setores da academia, especialmente dos
economistas – conforme atestam documentários produzidos depois da crise nos
Estados Unidos. Literalmente, o mercado comprou a opinião da Academia.
O
padrão de atuação do mercado, de braços dados com a mídia, sempre foi a de
construir reputações de seus vendedores. Alçados à condição de celebridades,
ajudavam na venda de produtos ou de ideias de seus empregadores.
Nas
discussões sobre a desregulação da economia, por exemplo, economistas medíocres,
repetidores de slogans, eram alçados pela mídia à condição de grandes gurus da
economia. Para o universo dos Hommers Simpsons, um Mailson valia mais que um
Paul Krugman.
Do
mesmo modo, no apogeu da Nasdaq (a bolsa das empresas de tecnologia) os bancos
de investimento fabricavam gurus a torto e a direito, fornecendo palpites para
a manada.
O
auge foi quando a Goldman Sachs recomendou a compra de ações da Microsoft logo
após a União Europeia tê-la condenado por práticas monopolistas. O ganho do
investidor não está em investir no tamanho da empresa, mas em sua expectativa
de crescimento. Aquele episódio, mais a estabilização do mercado de desktops,
decretava o fim do crescimento exponencial histórico da empresa, registrado em
um período de amplo domínio do Windows.
Para
manter o mesmo ritmo de crescimento, teria que competir com os japoneses em
games, com a Oracle em bancos de dados, com as novíssimas redes sociais que
surgiam.
Era
apenas uma jogada do banco. Ao perceber que as ações da empresa não tinham mais
atração, preparou o mercado para poder desovar seus estoques de ações a um bom
preço. E os gurus fabricados pela mídia norte-americana ajudaram no jogo.
Para
tudo isso serviam os gurus. E toda essa catedral de papelão veio abaixo
com a crise de 2008. Menos em países intelectualmente subdesenvolvidos, onde um
economista pode virar gênio sem publicar um trabalho acadêmico que preste..
Fator
2 – a implosão das regras sociais
No
início das redes sociais, perdi uma aposta para o neurologista Danielle de
Riva. Eu acreditava que a Internet e as redes sociais permitiriam a construção
coletiva do conhecimento, com a informação libertando. Cético, De Riva apostava
que liberaria todas as taras, com a formação de grupos de doenças sociais
variadas, de pedófilos a terroristas.
Ganhou.
As
redes sociais aboliram as barreiras naturais dos ambientes sociais presenciais.
Agora, o sujeito pode entrar em qualquer ambiente virtual sem ser apresentado,
sem os constrangimentos naturais, as regras sociais consolidadas nos
contatos presenciais, dando vazão aos seus instintos mais primários. Liberou
geral.
Mais
que isso, o espírito animalesco passou a encontrar assemelhados e a se
organizar em alcateias, compartilhando as piores intenções e os piores
sentimentos. Saíram do armário, nus e peludos como os homens da caverna,
despidos de todo o verniz social e todos os princípios civilizatórios
acumulados em séculos de civilização.
Do
virtual para a contaminação do presencial foi um pulo.
Fator
3 – a opinião leiga
Essas
hordas partiram para a guerra armados de slogans primários, mas de alta
eficiência.
No
trabalho seminal de 1962, em que previu todos os passos do golpe, Wanderley
Guilherme dos Santos analisou o discurso da direita, na época praticado por
Carlos Lacerda. Apesar do primarismo da análise, ironizada pelos acadêmicos,
Wanderley anotava sua enorme eficácia junto às massas leigas. As massas – à
esquerda ou à direita – são sensibilizadas por frases simples, slogans falsos
como são as verdades definitivas que cabem em uma frase.
Lembro,
com 13 anos de idade, influenciado pelo meu avô udenista, enfrentando frei
Josaphat, do jornal Brasil Urgente, em um debate em Poços de Caldas:
-
Que governo é esse que impede a greve dos bagrinhos em Santos, em defesa da sua
sindicalização?, bradei, com uma frase retirada diretamente da revista Ação
Democrática.
E
o frei, com a mesma impaciência que eu tive com o Hommer Simpsons:
-
Meu anjinho, você é muito novo para entender dessas questões.
O
slogan disseminado pela revista armava de um menino de 13 anos a um adulto para
participar de um debate ideológico – mesmo não tendo o menor conhecimento sobre
o contexto discutido.
Dia
desses, um conhecido, cientista social, contava o que se passou nos seus
encontros familiares. De repente parentes que nunca se pronunciavam, por seu
escasso conhecimento de temas políticos, passaram a entrar vigorosamente na
discussão com argumentos similares ao do meu amigo Hommer Simpson. Construiu-se
um verdadeiro manual da idiotia, conferindo a cada Hommer um tacape para
utilizar em qualquer discussão.
A
utilização da pós-verdade
Nesse
ambiente intelectualmente rarefeito, o discurso político da direita passou a
visar o órgão mais sensível do Hommer Simpson: o fígado.
É
o ambiente ideal para o uso do preconceito, a disseminação da vingança, as
bandeiras moralistas, o atropelo de todo o avanço jurídico, retomando os princípios
da Lei de Talião e do estado de exceção – sob a aprovação dos humanistas de
butique, como o Ministro Luís Roberto Barroso e o jurista Oscar Vilhena, agora
convertidos em arautos do direito penal do inimigo.
Quando
esse desastre recai sobre nações institucionalmente pobres, em que os valores
civilizatórios dependem de uma mídia venal, da erudição vazia e
descompromissada de juristas, de um parlamento vergonhoso, de partidos
políticos não-programáticos, dá no que deu.
Não
se imagine que o fundo do poço está à vista. A fragilidade institucional
brasileira, a mediocridade de suas elites pensantes – à direita e à esquerda -,
a ausência mínima de noção de soberania, de interesse nacional, de
solidariedade nacional, sugerem que o desmonte nacional pode não ter fundo.
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