01 maio 2017

Legalidade democrática

O importante agora é defender a Constituição
André Singer, na Folha de S. Paulo

A avalanche noticiosa produzida pelas centenas de horas gravadas com denúncias de corrupção que as televisões exibem desde quarta-feira (12) fez ganhar corpo projetos de abolir de vez o que foi duramente conquistado no ciclo virtuoso que vigorou entre 1988 e 2016 (quando o impeachment sem crime de responsabilidade esgarçou o tecido democrático brasileiro). Não bastassem as mudanças constitucionais regressivas já aprovadas, como a PEC dos gastos públicos, e as que estão em debate, como a reforma previdenciária, quer-se abrir espaço para derrubar toda a Constituição de 1988.
O manifesto assinado pelos juristas Modesto Carvalhosa, Flávio Bierrenbach e José Carlos Dias ("O Estado de São Paulo", 9/4), por exemplo, propõe a convocação de um plebiscito com vistas a saber se a população deseja eleger uma constituinte independente, isto é, composta de não políticos. É verdade que, em 2013, a então presidente Dilma Rousseff também aventou um plebiscito para consultar o eleitorado sobre a conveniência de uma constituinte. Mas a proposta, que caiu no vazio, seria de uma assembleia exclusiva, encarregada apenas da reforma política. Agora, a ideia é começar do zero, aprovando uma Constituição inteiramente nova.
Equivaleria a aproveitar o momento radicalmente antipolítico em que nos encontramos para demolir os avanços do período mais aberto da história do país. Uma constituinte neste momento revogaria os objetivos maiores de "construir uma sociedade livre, justa e solidária" e de "erradicar a pobreza (...) e reduzir as desigualdades sociais" (Artigo 3º) que presidem a atual Carta.
Se verdadeiro, o conteúdo exposto pelos delatores da Odebrecht é grave? Sem dúvida, mas não é novo. Sergio Machado, ex-presidente da Transpetro, afirmara, um ano atrás, que, desde 1945, os políticos sempre receberam dinheiro das grandes empresas que têm negócios com o Estado. Claro que o fato de que os três principais partidos atuais possam ter sido tomados pela forma tradicional de fazer política no Brasil, embora tenham nascido para realizar o contrário, decepciona, indigna e entristece, provocando a expectativa de que eles se transformem.
Mas cabe lembrar que foi também com esses partidos que, ao longo de quase 30 anos, o Brasil viveu, pela primeira vez, em plena democracia, ampliando o direito de voto até incorporar 144 milhões de eleitores, algo como 70% da população. A nossa democracia está entre as maiores do planeta, junto às da Índia e dos EUA.
Defender a Constituição em vigor é o único modo que temos de seguir na trilha da liberdade, em lugar de retroceder a formas mais ou menos explícitas de autoritarismo. 

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