05 abril 2020

Para onde caminhamos?


Questão de desordem
Renúncia de governante costuma ser um gesto espontâneo à força.
Janio de Freitas, Folha de S. Paulo

É uma necessidade premente, não a convicção, que faz Bolsonaro desafiar as evidências, o saber científico, a indignação do bom senso e o coronavírus. Se está convencido, mesmo, do que acusa no isolamento contra o vírus, não é irrelevante. Mas é outra questão, não o que o move.
É para salvar sua pele que Bolsonaro, contraditoriamente, a expõe à contaminação. “Há gente poderosa em Brasília que espera um tropeço meu”, disse na última quinta. Engana-se, não com a gente poderosa, mas com o motivo da espera.
E tropeço é uma imagem modesta para o que menos falta em cada dia, vá lá, presidencial.
Entre os que esperam, renúncia é a palavra da moda. Mais sussurrada do que sonora, pode ser vista como a transferência, para o próprio Bolsonaro, da iniciativa desejada contra ele. O cúmulo do comodismo. Ainda assim, indício de esgotamento.
O alarme soou para os Bolsonaros com sinais acumulados na semana entre 15 e 21 de março, ao se acentuarem os choques com governadores e as acusações de “histeria” à prevenção e ao noticiário.
Até então, tratava-se de seguir Trump na contestação às recomendações contra o vírus já fulminante na Europa. A percepção da fuga de apoios políticos abalou os Bolsonaros e suas redondezas.
Carlos, o 02, abandonou os melindres que o distanciaram do pai e voltou para Brasília. Dos três filhos maiores, é o mais ouvido para condutas políticas de Bolsonaro. Vieram novos pronunciamentos na linha de acirrar os ataques, em vez da esperável busca de reduzir as reações. À distância em quarentena de idoso contaminado, o irado general Augusto Heleno deu-se alta para recompor às pressas o chamado Gabinete do Ódio. Da outra parte, um sinal eloquente: o general-vice Hamilton Mourão também saiu do seu retiro, com renovada receptividade a microfones e câmeras.
A crescente repercussão negativa da campanha de Bolsonaro foi acompanhada, também, das adesões, inclusive com carreatas, de donos de empresas ansiosos por voltar ao faturamento. Estímulo bastante para mais avanços, como a imersão de Bolsonaro no contato físico com aglomerações em áreas públicas. E aí, no trigésimo ano de vida na política, sua estreia com as expressões “meu povo”, “salário contra a pobreza”, “direitos do povo”.
A mais recente fala de Bolsonaro em rede nacional criou uma situação extravagante. Militares obtiveram que essa fala, em 31 de março, não incluísse as divergências sobre o coronavírus. Seja lá pelo que for, e o que for não é bom, a imprensa deu à fala o sentido de louvável (até em editorial) recuo de Bolsonaro no confronto com a Organização Mundial da Saúde, quase todos os governadores, muitos prefeitos, a ciência e o seu aplaudido ministro Luiz Henrique Mandetta, da Saúde.
Na manhã daquele dia, Bolsonaro atacara o isolamento preventivo e os governadores, com uso de imagens falsas de desabastecimento. Pouco depois, reunira-se com médicos sem incluir o médico Mandetta. Logo, de manhã era Bolsonaro como é. À noite, Bolsonaro era os redatores da sua fala. No dia seguinte, Bolsonaro de volta e a imprensa no recuo, encabulado.
Bolsonaro não voltou só ao que é. Voltou à defesa de sua pele, ao recurso de eficácia já comprovada, sugerido pela inteligência ferina de Carlos 02. A defesa inflexível e demagógica da reativação do trabalho e de sua remuneração é estimuladora de massas mobilizáveis nas ruas e por todas as formas.
Greves de caminhoneiros, violências de trabalhadores necessitados de dinheiro, rebeldias de Polícias Militares, manifestações de multidão: a ameaça de desordem como resposta à ameaça do mandato. Não por acaso, as ajudas aos carentes da crise sanitária são muito faladas por Bolsonaro e Paulo Guedes, mas não saem dos cofres.
Renúncia de governante costuma ser um gesto, digamos, espontâneo à força. Entre o esgotamento do desgaste e os receios da ação, a força espera, indecisa.

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