Questão de desordem
Renúncia
de governante costuma ser um gesto espontâneo à força.
Janio de Freitas, Folha de S. Paulo
É uma necessidade premente, não a convicção, que faz Bolsonaro
desafiar as evidências, o saber científico, a indignação do bom senso e o
coronavírus. Se está convencido, mesmo, do que acusa no isolamento
contra o vírus, não é irrelevante. Mas é outra questão, não o que o
move.
É para salvar sua pele que Bolsonaro, contraditoriamente, a
expõe à contaminação. “Há gente poderosa em Brasília que espera um tropeço
meu”, disse na última quinta. Engana-se, não com a gente poderosa, mas com o
motivo da espera.
E tropeço é uma imagem modesta para o que menos falta em cada
dia, vá lá, presidencial.
Entre os que esperam, renúncia é a
palavra da moda. Mais sussurrada do que sonora, pode ser vista como
a transferência, para o próprio Bolsonaro, da iniciativa desejada contra ele. O
cúmulo do comodismo. Ainda assim, indício de esgotamento.
O alarme soou para os Bolsonaros com sinais acumulados na semana
entre 15 e 21 de março, ao se acentuarem os choques com governadores e as
acusações de “histeria” à prevenção e ao noticiário.
Até então, tratava-se de
seguir Trump na contestação às recomendações contra o vírus já
fulminante na Europa. A percepção da fuga de apoios políticos abalou os
Bolsonaros e suas redondezas.
Carlos, o 02, abandonou os melindres que o distanciaram do pai e voltou para
Brasília. Dos três filhos maiores, é o mais ouvido para condutas
políticas de Bolsonaro. Vieram novos pronunciamentos na linha de acirrar os
ataques, em vez da esperável busca de reduzir as reações. À distância em
quarentena de idoso contaminado, o irado general Augusto Heleno deu-se alta
para recompor às pressas o chamado Gabinete do Ódio. Da outra parte, um sinal
eloquente: o general-vice Hamilton Mourão também saiu do seu retiro, com
renovada receptividade a microfones e câmeras.
A crescente repercussão negativa da campanha de Bolsonaro foi
acompanhada, também, das adesões, inclusive com carreatas, de donos de empresas
ansiosos por voltar ao faturamento. Estímulo bastante para mais avanços, como a
imersão de Bolsonaro no contato físico com aglomerações em áreas públicas. E
aí, no trigésimo ano de vida na política, sua estreia com as expressões “meu
povo”, “salário contra a pobreza”, “direitos do povo”.
A mais recente fala de Bolsonaro em rede nacional criou uma
situação extravagante. Militares obtiveram que essa fala, em 31 de março, não
incluísse as divergências sobre o coronavírus. Seja lá pelo que for, e o que
for não é bom, a imprensa deu à fala o sentido de louvável (até em editorial)
recuo de Bolsonaro no confronto com a Organização Mundial da Saúde, quase todos
os governadores, muitos prefeitos, a ciência e o seu aplaudido ministro Luiz
Henrique Mandetta, da Saúde.
Na manhã daquele dia, Bolsonaro atacara o isolamento preventivo
e os governadores, com uso de imagens falsas
de desabastecimento. Pouco depois, reunira-se com médicos sem
incluir o médico Mandetta. Logo, de manhã era Bolsonaro como é. À noite,
Bolsonaro era os redatores da sua fala. No dia seguinte, Bolsonaro de volta e a
imprensa no recuo, encabulado.
Bolsonaro não voltou só ao que é. Voltou à defesa de sua pele,
ao recurso de eficácia já comprovada, sugerido pela inteligência ferina de
Carlos 02. A defesa inflexível e demagógica da reativação do trabalho e de sua
remuneração é estimuladora de massas mobilizáveis nas ruas e por todas as
formas.
Greves de caminhoneiros, violências de trabalhadores
necessitados de dinheiro, rebeldias de Polícias Militares, manifestações de
multidão: a ameaça de desordem como resposta à ameaça do mandato. Não por
acaso, as ajudas aos carentes da crise sanitária são muito faladas por
Bolsonaro e Paulo Guedes, mas não saem dos cofres.
Renúncia de governante costuma ser um gesto, digamos, espontâneo
à força. Entre o esgotamento do desgaste e os receios da ação, a força espera,
indecisa.
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