04 maio 2020

Ligações perigosas

Sinais do autogolpe no ar
Roberto Numeriano

A história política das nações demonstra que as lideranças autoritárias, no jogo pelo poder, não têm limites de apostas até "quebrarem a banca", tomando o poder manu militari. O movimento típico inicial é por aproximação, que é uma tática comum ao teatro da guerra bélica. No caso do atual presidente da República, neofascista na prática, esse tatear está em curso há alguns meses, caracterizando-se pela opção de sempre "dobrar a aposta" contra o Estado democrático de Direito. Se as instituições que enfeixam a soberania do poder democrático, derivado da soberania do povo, não lhe impuserem um freio, o resultado necessário do jogo será a derrocada do Supremo Tribunal Federal e o fechamento ou controle do Congresso Nacional.

O presidente neofascista dobrou outra vez a aposta diante da banca, no último domingo, dia 03 de maio. Ele não flerta com o golpismo. Ele o encarna no discurso e nas práticas. Nesse novo movimento tático, colocando no tabuleiro do teatro da guerra política as Forças Armadas, sinalizou um dos atores centrais na disputa. Era esperado, pois é provável que se valha do apoio de frações destas para um eventual autogolpe. Tais frações são constituídas pela baixa oficialidade (patentes de capitão e tenente), além de sargentos, cabos e soldados. Mas há também generais do Exército, cheios de ardor por cargos e fama, dispostos a integrarem, como "tropa de elite", mais uma aventura sangrenta e autoritária na história da corporação.

Há uma outra fração militar que também configura um dos "ases" do seu jogo, de resto muito óbvio. Trata-se do aparato da Polícia Militar, subordinadas legalmente aos governadores estaduais, mas também tuteladas organicamente pelo Exército. Em vários estados há sinais claros da infiltração de extremistas de direita que adotam abertamente, diante das tropas, discursos autoritários. Tais policiais seriam / serão a principal correia de transmissão do autogolpe, prendendo e destituindo, em parceria com os típicos generais de formação autoritária, todo aquele governador que se insurgir contra a solução de força. Outro elemento a ser ponderado é o papel que os marginais das milícias vão exercer no evento. Quem sabe, uma vez no poder como guarda de honra, poderão promover a nossa "noite das facas longas"...

Não há exagero em tais hipóteses? Respondemos com um rotundo não. Cremos que o autogolpe será tentado, e no máximo até agosto. A crise de governo está posta, consubstanciada nos processos que correm por crime comum e crime de responsabilidade, bem como pelas reiteradas derrotas do Executivo em face do STF, o último bastião de defesa do regime democrático.

A senha para deflagrá-lo será, provavelmente, uma eventual derrota do presidente na Câmara Federal, acaso não consiga comprar a velha escória parlamentar que atende pelo vulgo de Centrão, da qual ele é não por acaso egresso. Por alguns bilhões não será difícil comprar os 172 deputados para votarem não ao pedido de licença do STF para julgar o neofascista por crime comum. Por enquanto, relativamente aos pedidos de impeachment, o presidente da Câmara não se movimenta por uma razão tática óbvia.

A derrota na Câmara implicará no afastamento do neofascista por seis meses. Para além do fato de sua personalidade paranoica e do seu perfil tosco, suas opções políticas indicam que vai para o enfrentamento aberto (no fundo, é o que deseja e estimula desde sempre). Certamente por se imaginar um "ungido do Senhor", e porque também dispõe do apoio fanático de uma horda social violenta, considera-se invulnerável e acima do bem e do mal.

O autogolpe será o tudo ou nada de sua vida medíocre e ridícula (como era a de um dos seus ídolos, o cabo Adolf Hitler). Alimenta, na sua pulsão de morte, o desejo por milhares de mortes (já as tem pela Covid-19, pelo fato de estimular aglomerações e contágios). Mas a morte de milhares de brasileiros pelo seu poder absoluto, numa luta "redentora" contra um suposto marxismo, seria a sua "glória no altar da pátria".

Não analisamos aqui se haverá um autogolpe. Ele será tentado, não tenham dúvida. A questão central é quando ele será desfechado e quais forças participarão ativamente como protagonistas, além das patentes do Exército já referidas. Nesse instante teremos então a crise de poder concreta. Seu desfecho será um regime autoritário ou uma democracia que começará a lavar a roupa suja de décadas de indulgência em face do militarismo na vida pública nacional.


Roberto Numeriano é pós-doutor em Ciência Política e autor dos livros “O Que é Golpe de Estado” e “O Que é Guerra, pela Editora Brasiliense”.

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