01 junho 2020

Crônica de dor e amor

14º plantão
Melka


Nos primeiros eu só sentia medo, receio, insegurança, antes de tudo porque nunca fui enfermeira de hospital, minha experiência é em unidade de saúde da família e alguma experiência em gestão na atenção básica. Então começar num hospital em um setor com pacientes suspeitos e confirmados de Covid-19 me fez sentir algum medo. Era o que eu mais sentia, senti algum pânico na primeira vez que precisei me paramentar e entrar numa enfermaria, mas olhava para as técnicas que são responsáveis por todo o procedimento de administrar medicamentos, de dar banho no leito em quem não pode andar, as via serem obrigadas a tanta proximidade com a assistência que entendi que enquanto enfermeira do setor, eu não poderia cuidar apenas de burocracias e procedimentos que são privativos da enfermeira.

Assim como elas, eu tenho que estar ali, perto dos pacientes, um por um, saber das necessidades deles, ver as queixas, conhecer todos os rostos, confesso que nos primeiros plantões me esquivei um pouco disso, por medo e por ter de alguma forma essa alternativa, como vê-los pelos olhos das técnicas. Mas acontece que eu não sou disso. E todas as vezes que entrava pra fazer os procedimentos e conseguia ter alguma troca com os e as pacientes, meu coração se enchia de satisfação e finalmente fazia algum sentido estar ali. Demorei um pouquinho para entender, o fato é que sei meu lugar naquele setor de Covid agora.

E de todos os plantões, alguns com maiores ou menores doses de emoção, sentimentos bons ou ruins, o 14º foi diferente. Segurei o choro diversas vezes, respirei, olhei pra cima, desviava o pensamento, mas foi bem difícil, eu sou ariana mas meu ascendente é em câncer, sou uma brigona de coração mole, pra quem não entende o que isso significa. Estava terminando de jantar quando a neta de um paciente ligou pra pedir informações, ela acabou desabafando sobre várias coisas da vida dele, da vida dela, comentei com ela um fato engraçado que tive com ele no plantão anterior, ela riu um pouco, mas estava muito emocionada e me deixou também, quase choramos juntas, mas assim que a ligação terminou, me chamaram pra ver um paciente, era ele, o avozinho dela que não estava respondendo aos estímulos da cuidadora.

Lá é permitido acompanhantes pra quem dificuldade de mobilidade, ou outras limitações de auto-cuidado, a resposta da própria neta não estar lá ficou subentendida no meio dos desabafos, tinha muitas questões familiares envolvidas, não cabia julgar, julguei em pensamento inclusive, mas no fim da ligação exerci a empatia, às vezes a empatia é natural, às vezes tem que ser um exercício. Vou chamá-lo de "Seu Pereira", Seu Pereira é um paciente com mais de 90 anos, trata um câncer, ainda não tinha a Covid confirmada, mas apresenta sintomas e os médicos do dia o definiram como paciente paliativo. Na passagem de plantão alguma enfermeira definiu ele como "desorientado", eu não achei, achei bem lúcido.

Atendi ao chamado da cuidadora, ele não estava respondendo aos estímulos, mas consegui acordar ele, vimos os sinais vitais, chamamos a médica do plantão, e a todo instante pensava na neta dele, ela me delegou sentimentos de cuidado, cuidar de todos e todas é minha obrigação, mas as palavras dela despertou para além da obrigação, o sentimento de cuidar. Passei os recados dela, "fulana disse pra o senhor beber água, fulana disse pra o senhor comer".

Foi bem angustiante ver aquele senhorzinho tão agitado, ele dizia "não aguento mais", o vi fazendo o sinal da cruz, perguntei se ele queria rezar, rezamos um pouco com ele, na hora de ter que tomar medicamentos ele soltava um firme "puta que pariu" que chegava até a ser engraçado, e aos poucos ele foi se acalmando novamente.

Mas a expressão dele era de medo. O medo dele era diferente do que já senti ao chegar ali pra trabalhar, o medo de Seu Pereira é o medo do desconhecido, daquela angústia de estar ali, da linha final da vida, do ponto, ou vírgula pra quem acredita. E eu não parava de pensar por que tinha que ser assim, uma pessoa que consegue viver mais de 90 anos, ter o finzinho da linha tão só, com tantos contextos de conflitos, com tanta solidão, sem conforto, sem rostos conhecidos, sem paz. A vida é assim, não dá descanso, pede pra gente ser forte até quando não dá mais.
*Melka Pinto, ex-presidente da União dois Estudantes de Pernambuco-UEP, é enfermeira na rede pública.

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