Vidas importam
João Paulo*
Este artigo traz como tema o nosso
principal bem e razão para tudo: a vida! E que, por incrível que possa parecer,
está sendo tratada como algo secundário pelo homem que ocupa o principal cargo
no País.
Tal comportamento desumano já era
previsível, desde a campanha e antes dela. Mas a pandemia de coronavírus nos
trouxe a uma realidade ainda mais drástica, explicitadas por frases rasteiras
como “todos iremos morrer um dia” ou “e daí?”
Ele não se comove diante da morte nem
diante da vida. Um homem dissociado completamente da natureza, que faz questão
de agredi-la permanentemente, numa briga em que os humanos sempre vão perder,
como afirma a filósofa Viviane Moser em palestra sobre o pensamento de
Nietzsche e nosso cotidiano diante do vírus. Segundo ela, a civilização
vive uma crise profunda, mas a vida permanece em sua grandiosidade, intensa e
bela. A espécie humana, é parte da natureza, ela é natureza, e não deveria
lutar contra si mesma.
Na pandemia de coronavírus estamos
perante um homem que relativiza a vida, trata-a como baixas esperadas, e não
como existências interrompidas, pessoas, fruto de um processo maravilhoso, tão
trabalhosamente construído ao longo de milhões de anos. Vida que pode ser
única num universo sem tamanho, entes da mesma espécie, dotados de consciência
do fim e do espetáculo de existir. Sem ela nada mais importa. Mas o
presidente continua com o mesmo empenho do início, trabalhando ao lado do vírus
e aliado da economia, numa mistura que funciona mal para os dois lados.
O sociólogo português Boaventura de
Souza Santos observa que na extrema-direita tudo caminha como uma fratura entre
a economia e a vida, como se não se pudesse defender as duas. O
primeiro-ministro inglês Boris Johnson, uma versão melhorada do presidente
brasileiro, foi o primeiro a levantar essa questão e acabou ele próprio
contaminado pelo vírus. Já no Brasil, Bolsonaro, segundo Boaventura, é
uma caricatura. Bolsonaro é o último dos negacionistas, a negar conquistas da
civilização, como a ciência e a cultura. E finaliza: os governos de
extrema-direita vão sair muito desacreditados, justamente porque demonstraram
uma grande insensibilidade em relação à vida humana.
O desprezo pela vida também contamina o
mundo do trabalho sob diversas formas de exploração e precarização de muitas
atividades. Como por exemplo, as muitas vidas em risco dos motofretistas, sem
garantias mínimas da legislação, empregados, comandados por algoritmos que não
sabem do risco que correm com o coronavírus. Empresas e estado se distanciam
deles, deixa-os ao relento, e às vezes sem máscara de proteção. Assim como
outros trabalhadores, como os da agricultura familiar, vítimas de cortes de
incentivos, com dificuldades de negociar seus produtos; ou as pessoas pobres em
geral, espremidas em ônibus, também com vidas ameaçadas a cada dia. Neste
momento, já não se espera de um governo que é indiferente à vida, um plano
nacional para o combate à Covid-19. Ficou em segundo plano, ou terceiro, diante
da busca diária pelo autoritarismo, inclusive com ataques à Suprema Corte. Um
governo que prega o conflito enquanto o povo de seu país enfrenta uma doença em
larga escala, com mais de um milhão de pessoas contaminadas.
Nessa hora de grandes reflexões sobre a
pandemia, a vida é sempre levada em conta por pensadores, de vários espectros
políticos. Menos pela equipe que governa o País – incluindo a equipe econômica.
Para a pensadora norte-americana Camile Paglia, se a economia se desintegrar,
haverá o caos. E, segundo ela, o único sistema político que emerge do caos e
governa no caos, é o fascismo. Mesmo num mundo de Bolsonaro, Trump e Orbán,
também há gente racionalmente otimista. Um dos maiores estudiosos da história
moderna e contemporânea da Europa Central e do Leste, Timoty Ash, em depoimento
à revista Época, acha que estamos em uma situação semelhante à do pós-guerra e
se pergunta de qual período. O pós-guerra de 1945, cujo saldo é positivo
para a Europa e para a América do Norte, ou o pós-guerra de 1918, da ascensão
de Adolf Hitler, Benito Mussolini provocando outra guerra, 20 anos depois? Seu
grupo, na Universidade de Oxford conduziu uma pesquisa na Europa em março e uma
das conclusões mais extraordinárias é que 71% dos europeus apoiam a renda
básica universal. Os que apoiam a imposição de um salário mínimo obrigatório
são 84%. Esses dados ajudam a dar uma ideia de que mudanças positivas são
possíveis.
A crise pode nos levar a um futuro de
mais bem-estar social, igualitário e verde, capaz de voltar a valorizar a vida,
mesmo depois do trauma da pandemia do coronavírus. Mesmo neste momento em que a
vida passa por tão baixa valorização por quem está no poder. Mas há muitas
lutas pela frente. A primeira delas é a volta da vida como valor supremo. Temos
acumulado estudos e pesquisas para ganhar a guerra contra a pandemia e a cada
dia surgem esperanças de que novos medicamentos e vacinas estão no horizonte.
Mas só seguiremos em frente, até mesmo nos desafios pós-pandemia, se tratarmos
nossa permanência na Terra como fonte de tudo, do pensamento às palavras, do
sonho à ação – e da capacidade em tratar todas as outras vidas com igual
importância e como experiências incomparáveis e transcendente sobre qualquer
outro mecanismo do vasto cosmo.
João Paulo é deputado estadual pelo
Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e primeiro presidente da CUT Pernambuco.
Eleito quatro vezes deputado estadual e depois prefeito do Recife sendo
reeleito em 2004. Foi deputado federal e ex-superintendente da Sudene.
Economista, professor e ex-metalúrgico.
[Ilustração: Ben Nicholson]
Com um livro à mão para resistir https://bit.ly/3cAI1te
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