07 novembro 2020

Crônica de finados

Linda ninfa nua

Cícero Belmar*

 

A frase parece ser de um coach, aquele profissional que incentiva clientes com palavras inteligentes e motivacionais. Mas ela é um trecho da letra de uma canção de Gilberto Gil. Ligo o aplicativo de música no smartphone e a cantora baiana Simone interpreta: “Se a morte faz parte da vida e se vale a pena viver, então morrer vale a pena…”.

A música tem tudo a ver com o momento em que escrevo esta crônica para dois de novembro. O nome da música é: “Então vale a pena”. A letra, profunda, quase uma tese de doutorado para as áreas de psicologia ou filosofia. Ouço e em seguida, telefono para uma amiga, conversamos sobre a música.

A amiga garante que, antes de Gilberto Gil, o alemão Immanuel Kant, um dos filósofos mais estudados da modernidade, já apresentou uma teoria com essa mesma linha de que o homem feliz morre feliz.  Na voz da cantora popular, a frase filosófica soa como poesia: “Quem ama sua vida, abraça a sua morte, como a uma linda ninfa nua”.

Hoje, dedicado aos Finados, porém, não há clima para as reflexões acadêmicas. A realidade é ferida aberta e não dá para filosofar no exato instante da aflição. Cerca de 160 mil famílias brasileiras, neste momento, estão chorando os seus mortos pela Covid-19. A perda é irreparável.

No ano passado, nesta mesma data, não imaginaríamos imensa dor. De março para cá, o aumento de óbitos tem sido o principal motivo de nossas tristezas, ansiedades e desesperanças. Mesmo quem não perdeu alguém, irmana-se na compaixão.

Neste dia de reverência aos nossos queridos, também somos levados a entender que a pandemia nos fez experimentar diversos tipos de mortes. A quarentena rigorosa, por exemplo, impediu nossas almas de tomarem posse de nossas vidas por meses seguidos.

As incertezas e  temores, de alguma forma, tornaram impraticável vivermos plenamente. O custo físico, psicológico e espiritual faz parte de uma fatura que chegará no futuro e ainda não dá sequer para calcular. Morremos diariamente no tempo que passa.

Hoje é um ótimo dia para pensar na vida que nos resta viver.

Pensamos pouco na morte como se o tema fosse acusador de nossa morbidez. Mas, no fundo, o evitamos para não perguntar se estamos fazendo da vida algo que realmente valha a pena antes de morrer.

*Cícero Belmar  é escritor e jornalista. Autor de contos, romances, biografias, peças de teatro e livros para crianças e jovens. Membro da Academia Pernambucana de Letras. 

[Ilustração: Arkhip Ivanovich Kuinji]

Veja: Entre lacunas e preenchimentos faz-se a peleja cotidiana https://bit.ly/2TatLA8

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