Linda ninfa nua
Cícero Belmar*
A frase parece ser de um coach, aquele profissional que incentiva
clientes com palavras inteligentes e motivacionais. Mas ela é um trecho da
letra de uma canção de Gilberto Gil. Ligo o aplicativo de música no smartphone
e a cantora baiana Simone interpreta: “Se a morte faz parte da vida e se vale a
pena viver, então morrer vale a pena…”.
A música tem tudo a ver com o momento em que escrevo esta crônica para
dois de novembro. O nome da música é: “Então vale a pena”. A letra, profunda,
quase uma tese de doutorado para as áreas de psicologia ou filosofia. Ouço e em
seguida, telefono para uma amiga, conversamos sobre a música.
A amiga garante que, antes de Gilberto Gil, o alemão Immanuel Kant, um
dos filósofos mais estudados da modernidade, já apresentou uma teoria com essa
mesma linha de que o homem feliz morre feliz. Na voz da cantora popular,
a frase filosófica soa como poesia: “Quem ama sua vida, abraça a sua morte,
como a uma linda ninfa nua”.
Hoje, dedicado aos Finados, porém, não há clima para as reflexões
acadêmicas. A realidade é ferida aberta e não dá para filosofar no exato
instante da aflição. Cerca de 160 mil famílias brasileiras, neste momento,
estão chorando os seus mortos pela Covid-19. A perda é irreparável.
No ano passado, nesta mesma data, não imaginaríamos imensa dor. De março
para cá, o aumento de óbitos tem sido o principal motivo de nossas tristezas,
ansiedades e desesperanças. Mesmo quem não perdeu alguém, irmana-se na
compaixão.
Neste dia de reverência aos nossos queridos, também somos levados a
entender que a pandemia nos fez experimentar diversos tipos de mortes. A
quarentena rigorosa, por exemplo, impediu nossas almas de tomarem posse de
nossas vidas por meses seguidos.
As incertezas e temores, de alguma forma, tornaram impraticável
vivermos plenamente. O custo físico, psicológico e espiritual faz parte de uma
fatura que chegará no futuro e ainda não dá sequer para calcular. Morremos
diariamente no tempo que passa.
Hoje é um ótimo dia para pensar na vida que nos resta viver.
Pensamos pouco na morte como se o tema fosse acusador de nossa morbidez.
Mas, no fundo, o evitamos para não perguntar se estamos fazendo da vida algo
que realmente valha a pena antes de morrer.
*Cícero Belmar é escritor e
jornalista. Autor de contos, romances, biografias, peças de teatro e
livros para crianças e jovens. Membro da Academia Pernambucana de Letras.
[Ilustração: Arkhip Ivanovich Kuinji]
Veja: Entre lacunas e preenchimentos faz-se a peleja cotidiana https://bit.ly/2TatLA8
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