11 dezembro 2020

Vigília poética permanente

 

Cida Pedrosa, a poeta vencedora 

'Solo para Vialejo', livro que rendeu a ela o troféu literário, surgiu durante um tratamento de câncer de tireoide

Marcella Franco, Folha de S. Paulo

 

Ela conta que faz terapia há 20 anos. No consultório, trata a autoestima. Não sabe se sofre da famosa síndrome da impostora, mas acha que tem angústias. “A sociedade nos futuca para baixo. É uma construção para que a gente se boicote”, diz.

Ser mulher, segundo Pedrosa, é estar em vigília permanente. “Porque o machismo é estrutural, entende? E eu tenho isso claro desde a mais tenra idade. Sinto na pele desde jovenzinha.”

“Quando você é selecionada em um prêmio, é como se o status quo dissesse que você tem estatura literária. E isso nesse mundo machista lhe põe em um outro patamar”, contextualiza, ao dizer que está “felicíssima” com o Jabuti.

“Não deixa de ser um coroamento da carreira, até porque escrever em um país onde a leitura não é levada a sério, onde o presidente quer taxar o livro, é uma luta insana.”

O prêmio, diz, não é só seu. “Minha inquietude nunca me permitiu escrever minha obra sozinha. Então são os negros, os índios, é a minha busca por mim mesma, é uma mulher nordestina comunista e militante, todos eles ganhando o prêmio juntos.”

Enquanto narra sua história, ela se interrompe. “Não sei se estou me fazendo entender ou se sou muito lírica.” O discurso bem encadeado e plenamente inteligível ganha de fato contornos de ficção literária em alguns trechos.

Como, por exemplo, quando conta que é a 15ª filha dos agricultores Francisco e Isabel, e que o sítio onde viveu até seus 14 anos, em Bodocó, no sertão pernambucano, não tinha energia elétrica nem banheiro. “A gente tomava banho de cuia.”

“Meu pai era muito danado e teve mais seis filhos. Somos 21. Já tem cinco no céu, das duas famílias. Minha mãe e meu pai brigaram muito, ele era machista e se dava ao desfrute de ter duas mulheres. Mas ela nunca deixou a gente brigar com os meninos.”

A poeta se mudou para a capital e foi estudar no colégio que um dos irmãos mantinha. No corpo docente, além de alguns ex-presos políticos, havia também Flor, irmã de Pedrosa, que deu a ela suas primeiras aulas de literatura. Em 1981, com colegas de classe, criou o Movimento de Escritores Independentes de Pernambuco.

Nos primeiros anos do curso de direito, conta que vivia infeliz. “O que me salvava era a escrita. No fim, me apaixonei porque percebi que podia ser uma advogada de direitos humanos porreta.”

O trabalho a levou a Palmares, na região da mata, onde se casou. Ela e o marido eram ameaçados, conta, por causa do confronto direto com o patronato. “Eu engravidei, houve uma perseguição muito forte de carros atrás da gente e perdi meu bebê de sete meses. Quatro meses depois, mataram ele.”

Pedrosa se casou outras duas vezes. Primeiro com um advogado, com quem teve dois filhos –Francisco, de 26 anos, e Vladimir, de 23. “Um é meu lado sacro, quando saí da maternidade lavei o pé dele nas águas do rio São Francisco.”

“O outro é meu lado revolucionário, em homenagem a Maiakovski.” Dois anos depois de o marido morrer de câncer, Pedrosa conheceu o editor Sennor Ramos. “Ele é 14 anos mais novo e entende tudo de literatura popular.”

“Solo para Vialejo” surgiu enquanto ela tratava um câncer de tireoide. Fala de negros e índios, das dores da mãe, dos olhos azuis do pai, das memórias individuais e coletivas. “Faço a repetição de três versos porque são os acordes do blues e cinco porque é a escala pentatônica.”

Segundo Pedrosa, poesia e política se tornaram coisas indissociáveis. “Tem gente que acha isso péssimo. Que a poesia não se presta a isso. Mas, para mim, minha poesia tem função social. A diferença é que não sou panfletária. Panfleto é panfleto, poesia é poesia.”

Veja uma dica de leitura: Raimundo Carrero https://bit.ly/3pCHkXY

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