Cena política
A fonte pode secar
Luciano
Siqueira
Durante a última campanha presidencial, jovens
que integravam uma das rodas de militantes empenhadas na campanha de
Hadadd-Manuela, surpreenderam seus companheiros ao relatarem a aderência da
narrativa do então candidato Bolsonaro nos bairros periféricos do Recife.
Da narrativa e do gesto.
- Mesmo quando gagueja diante de perguntas ou
reconhece que não entende de economia, ele ganha adeptos entre os mais pobres,
observaram. Nosso povo também gagueja em situações embaraçosas e não entende de
economia...
Além disso, a ira anti-política convencional,
que supostamente o candidato envergava, calhava fácil no sentimento de uma
imensa maioria hipnotizada pela vigorosa campanha midiática que teve o PT (e a
esquerda, por extensão), a prática política dita “velha”, políticos e partidos
como alvo.
O ex-capitão surgia como um desengonçado
Messias a apontar uma ruptura com o que estava estabelecido e a emergência de
um novo ciclo no País.
Venceu.
E desencadeou um novo ciclo, sim –
obscurantista, marcadamente fascistóide, movido pelos interesses prioritários
do rentismo e pelo desmonte gradativo do Estado Democrático de Direito, das
salvaguardas da soberania nacional e dos interesses fundamentais dos
trabalhadores.
O porre midiático que visava lastrear o caminho
para Alckmin contraditoriamente abriu larga vereda para o ex-capitão e a
extrema direita. E para um projeto econômico ultraliberal que mesmo seus
próceres mais convictos julgam estar defasado no tempo e nas condições de um
mundo em crise econômica sistêmica, agravada com a pandemia.
Os perdedores de 2018 ainda permanecem
atordoados. Alguns sequer compreenderam em profundidade a natureza da derrota e
a dimensão da luta atual. Teimam em reproduzir fórmulas eleitoreiras que deram
certo em passado recente, mas já não repousam sobre terra firme.
O fato é que agora já caminhamos para um novo
pleito geral, tendo a presidência da República como cerne da disputa, e o jogo
político se desenrola fundamentalmente na superfície, carecendo de bases
consistentes.
Nas oposições, a predominância de projetos
próprios visando a um primeiro turno (compreendido como alguns como “prévia”
para uma unidade mais ampla num eventual segundo turno) e a escassez de
entendimento em torno de uma plataforma destinada a vencer eleitoralmente e
tirar o País da crise desenham o drama nacional.
Mas a superficialidade também comparece às
hostes governistas, pelo menos ao núcleo palaciano que opera o cotidiano com o
presidente.
Evidente que os interesses em jogo, empalmados
pelo governo, contam com o concurso de muita gente graúda por trás das
cortinas. A máquina governamental se move quase que em paralelo às atitudes
tresloucadas do presidente.
E aqui e acolá surge uma dissonância grave –
como no episódio da substituição do presidente da Petrobras, que deixou o tal
Mercado perplexo e irado.
Mas a operação política, incluindo o
relacionamento com o Judiciário e o Parlamento e a opinião pública, faz-se pelo
presidente e seu núcleo dito “do ódio”.
Daí a repetição, ora mais intensa, ora
espaçada, dos rompantes e cacoetes de Bolsonaro na linha do que os jovens da
periferia do Recife diziam ter aderência entre os mais pobres (e certamente do
gosto também de ampla parcela da pequena burguesia urbana conservadora).
Porém ocupa crescente espaço na cena o tal
“general Fome”, cada vez mais intensamente presente nos lares da maioria. A
fonte da ilusão pode secar na proporção em que o fogo de monturo da
insatisfação libere labaredas de revolta.
Estarão as oposições à altura?
- Veja: Na resistência
democrática, todos os caminhos são válidos https://bit.ly/3cXUHhK
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