25 fevereiro 2021

Ciência nacional


Por que o Brasil não possui insumos para produção de vacinas contra a Covid-19?

Rafael Dhalia* e Ernesto Marques** www.academiapc.org.br

 

Depois de imunidade de rebanho, anticorpos neutralizantes, reposta de células T, eficácia, uso emergencial, etc., o Insumo Farmacêutico Ativo (IFA) se tornou quase que uma obsessão no nosso vocabulário científico atual. Trocando em miúdos, o IFA nada mais é do que a “formulação antigênica da vacina”, portanto o seu princípio ativo, ou seja, aquilo que é responsável por induzir a nossa resposta imunológica contra um determinado agente patogênico. Deste modo, diferentes vacinas requerem necessariamente diferentes IFAs: enquanto a vacina do Butantan é baseada no vírus SARS-Cov-2 inativado, a da Fiocruz se baseia em adenovírus carreador de DNA codificante da proteína Spike do vírus. Mas daí surge uma pergunta quase que inevitável: e não tem como produzir aqui? Por que precisa vir de países tão distantes como Índia e China? Na verdade, não teria necessariamente de vir de tão longe. Em um passado recente, da História do Brasil, essa possibilidade sequer seria cogitada.

Em 1980, vivíamos uma realidade totalmente oposta, pois produzíamos quase 60% dos nossos próprios insumos farmacêuticos. Com a abertura comercial, por meio do Plano Collor I, e consequente barateamento de importados na década de 1990, muitas empresas nacionais não conseguiram acompanhar a livre concorrência e sucumbiram. Políticas de apoio à indústria nacional não passavam de propagandas. Mudanças tarifárias tornavam o produto final importado ainda mais barato que os insumos necessários para a sua produção. Era o começo de um “fim”, pois via um efeito em cascata, a capacidade da Indústria Farmacêutica Brasileira de produzir insumos farmacêuticos foi encolhendo, até chegar nos 5% atuais.  É preciso resgatar alguns fatos para que possamos tentar entender como fomos capazes de interromper um processo em construção, que caminhava para uma autossuficiência, para pelo contrário nos tornarmos dependentes.

É importante entender que a indústria que produz vacinas é diferente da indústria que produz remédios. Apesar de várias das grandes empresas contemplarem os dois setores, eles se comportam de forma bem diferente. Antes da pandemia de Covid-19, os investimentos em Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) global concentravam mais de 97% do total no desenvolvimento de medicamentos, e menos de 3% no desenvolvimento de vacinas.  Existem várias razões para explicar este fato, mas a maior delas é que remédios são muito mais lucrativos do que vacinas. Além de requererem níveis de eficácia e segurança muito superiores, as vacinas também demandam maiores investimentos em relação aos medicamentos. Outro ponto nevrálgico é que o maior cliente da indústria produtora de vacinas é o governo, que inerentemente têm muito mais força na negociação de preços. O resultado desta dinâmica é que apesar das vacinas trazerem enormes benefícios para a sociedade, tanto salvando vidas como trazendo benefícios econômicos para as comunidades, os investimentos privados nesse setor não são muito atrativos.  Dentro dos cerca de 3% de investimentos em vacinas, 70% se concentram na pesquisa de desenvolvimento e inovação de novas vacinas, que deverão apresentar cada vez menos efeitos adversos, melhor eficácia e serem desenvolvidas em intervalos de tempo cada vez mais curtos.

O processo de inovação é fundamental para proteger a espécie humana de novas ameaças emergentes, onde nas duas últimas décadas, por exemplo, já tivemos epidemias de Dengue, Zika, Chikungunya e Influenza, dois surtos de Coronavírus (SARS – 2003 e MERS – 2012) e uma pandemia do SARS-Cov-2, iniciada no final de 2019. Portanto, países em desenvolvimento como o nosso precisarão de ampla reestruturação no sistema de financiamento de inovação em vacinas, sendo necessária a indução de investimentos suntuosos, capacitação altamente especializada e desburocratização das instituições regulatórias. Para isto, é necessário que os produtores nacionais de vacinas sejam recompensados de forma proporcional aos benefícios que trazem para a sociedade, e não só com base no custo de produção.

No Brasil, na década de 80, cerca de 80% do mercado nacional de imunobiológicos era dominado pela multinacional Syntex, que deixou o País na mão quando foi pressionada pelo Ministério da Saúde por menores preços e melhorias nos seus procedimentos de qualidade. Com a saída da Syntex, o governo optou por fortalecer o setor público para produção de vacinas, destinando recursos principalmente para o Instituto Butantan e a Fundação Oswaldo Cruz - Fiocruz, representada por Biomanguinhos. Esse investimento foi fundamental para a consolidação do Programa Nacional de Imunizações - PNI, por meio de diversas transferências tecnológicas com a finalidade de produção para abastecer o Sistema Único de Saúde - SUS.

Por outro lado, a ausência de uma política governamental de financiamento e a baixa competitividade, em relação aos IFAs de origem estrangeira, levou as indústrias nacionais a perderem espaço no mercado de produção desses insumos em relação a países até então em desenvolvimento como Índia, China, Indonésia e Coréia do Sul. O resultado desse fenômeno pode ser observado hoje, onde das oito maiores empresas do mercado de produção de vacinas, quatro estão em países ainda em desenvolvimento: três na Índia (Serum Institute of India, BioEvans e Bharat Biotech Internacional) e uma na Indonésia (BioPharma). Para revertermos esta situação, necessitamos de um modelo de negócio que atraia mais investimentos neste setor e propulsione uma completa modernização industrial, que nos permita: desenvolver novas vacinas de alto valor agregado (dentro das Boas Práticas de Fabricação- BPF); suprimento de insumos certificados; otimização do processo de produção; controle de qualidade.  

Diante da situação caótica causada pela Pandemia do SARS-Cov-2, um problema iminente estava surgindo em todo mundo: precisávamos desenvolver, de forma emergencial, vacinas eficazes contra a Covid-19. Diversas iniciativas da indústria privada, com todos os tipos imagináveis de tecnologias antigas e novas, foram fomentadas por governos por meio de contratos que cobriam os custos iniciais de desenvolvimento e construção de fábricas, em troca de garantia de compra de vacinas com preços pré-fixados. Países de maior poder aquisitivo como Estados Unidos, Canadá, China, Japão e da União Europeia passaram a ser os maiores investidores nas suas indústrias e foram às compras para garantir doses das vacinas em desenvolvimento, sem sequer terem ainda comprovação de eficácia. Observando este processo, a Organização Mundial da Saúde (OMS) buscou encontrar mecanismos para garantir que os países mais pobres também pudessem ter acesso às novas vacinas. Para isto, a OMS se associou ao fundo COVAX, que visa a distribuição igualitária para países de menor poder aquisitivo (de pelo menos 10 das vacinas contra a Covid-19 em desenvolvimento). E o Brasil, no meio do olho do furacão, não reconheceu os impactos da pandemia no País, nem a necessidade de vacinas para a Covid-19, e achou que não precisava fazer parte desta disputa. Foi necessário que a iniciativa, contrariando a posição do Governo Federal, partisse dos nossos dois maiores produtores de vacina nacionais, o Instituto Butantan e a Fiocruz, responsáveis pela produção de cerca de 75% das vacinas disponíveis no nosso SUS. Enquanto o Butantan negociava um acordo de transferência tecnológica com a empresa Sinovac, com a finalidade de adquirir, em um primeiro momento, doses prontas para uso e, em um segundo momento, ser capaz de produzir essa vacina em solo nacional, a Fiocruz estava em negociação com a empresa AstraZeneca, para também adquirir doses e a transferência da tecnologia de produção para Biomanguinhos. A princípio, o Governo Federal desdenhava da iniciativa do Butantan, incluindo na sua agenda um repertório de agressões que levaria a uma troca de farpas com a diplomacia Chinesa. Ao mesmo tempo, a negociação com a vacina de Oxford, posteriormente fomentada como vacina prioritária pelo mesmo governo, caminhava com muita dificuldade em relação à assinatura do contrato. Ambas as vacinas foram aprovadas para uso emergencial pela ANVISA, em uma decisão unânime por parte dos seus cinco diretores. Diante do atraso na entrega e insuficiência do IFA da vacina de Oxford, além da necessidade de mais tempo para adaptar a fábrica da Fiocruz para produzi-lo no Brasil, o Governo Federal decidiu fazer acordo também com o Instituto Butantan, que tinha uma maior quantidade de vacinas disponíveis e estavam mais adiantados na fabricação nacional de vacinas. Era urgente iniciar a vacinação, e nunca se politizou tanto uma questão que deveria ser exclusivamente de cunho técnico e científico.

E agora? Em que ponto estamos? Habemus IFAs? Como diria o matuto: tem mas tá faltando! Iniciamos o Programa Nacional de Imunização (PNI) com aproximadamente 10,8 milhões de doses da Coronavac e 2 milhões de doses da de Oxford, suficiente para imunizar apenas 6.4 milhões de pessoas, uma vez que é necessária a aplicação de duas doses por pessoa. Considerando só a população dos grupos prioritários, estimada em quase 50 milhões de pessoas, e que menos de 3% da população tenha já sido imunizada, podemos dizer que precisamos de muito mais doses, se quisermos atingir a tão sonhada “imunidade de rebanho”. Existe uma luz no fim do túnel, e a esperança está no DNA do povo brasileiro, considerando que existe a perspectiva de termos ainda este ano 100 milhões de doses da Coronavac e 200 milhões de doses da de Oxford, totalizando 300 milhões de doses. Pelo menos metade destas doses deverão ser 100% produzidas no Brasil, incluindo os IFAs, com as transferências tecnológicas da Sinovac para o Butantan, e da AstraZeneca para a Fiocruz, a partir do segundo semestre de 2021. Atingiríamos a imunidade de rebanho imunizando 50 milhões com a Coronavac e 100 milhões com a de Oxford, ou seja, 150 milhões de pessoas, em regime de duas doses. Para se ter uma ideia da complexidade deste desafio, seria necessário manter uma vacinação de 8 milhões de doses por semana, durante aproximadamente 9 meses. Disposição e experiência não faltam, pois temos o PNI cuja capilaridade e excelência dispensam comentários. O que precisamos é de políticas sérias de governo para garantir a vacinação de nossa população, com a aquisição de milhões de doses e insumos indispensáveis como agulhas e seringas, por exemplo.

Cerca de 192 milhões de pessoas foram vacinadas em todo o mundo, 5,5 milhões só no Brasil, até o fechamento deste manuscrito (17/02/2021). É importante ressaltar que não foram relatados eventos adversos mais severos, correlação comprovada de morte à vacinação e ninguém virou jacaré. E com todas estas dificuldades e todos os benefícios (cientificamente comprovados) da vacinação que revolucionou a vida do ser humano na Terra, em termos de qualidade e expectativa de vida, ainda há aqueles que não querem se vacinar. É importante destacar que quanto mais pessoas forem vacinadas, maior será a proteção da população como um todo. O ato de se vacinar é bem mais complexo do que se imagina e não pode, de forma alguma, se resumir a um sim, ou não! Segundo trecho retirado de um artigo publicado por Ângela Pôrto e Carlos Fidelis Ponte, no periódico História, Ciências, Saúde, disponível na biblioteca de Manguinhos: “Longe de ser um fato isolado, sujeito apenas aos parâmetros de aferição e decisão da medicina ou das ciências biomédicas, a vacinação é também, pelas implicações socioculturais e morais que envolve, a resultante de processos históricos nos quais são tecidas múltiplas interações e onde concorrem representações antagônicas sobre o direito coletivo e o direito individual, sobre as relações entre Estado, sociedade, indivíduos, empresas e países, sobre o direito à informação, sobre a ética e principalmente sobre a vida e a morte”.

O Brasil precisa garantir tanto o direito individual como o coletivo, no que se refere à vacinação de sua população. Acabar com a ideia, de algumas pessoas, de que vacina é para os pobres que não podem comprar remédio. A discussão tem de ser pautada em torno do direito que nos é assegurado pela Constituição. Os governantes não podem se eximir de suas responsabilidades, pois é obrigação deles garantir a saúde de todos, não só dos seus eleitores.

A pandemia de Covid-19 expôs a grande negligência dos governos do mundo todo com o financiamento da Saúde Pública e de medidas preventivas, que já vêm se acumulando por várias décadas. Mostrou a medicina completamente centrada no tratamento medicamentoso dos doentes e muito pouca capacidade de intervir, prevenindo as infecções. Os investimentos em tratamentos médicos vêm crescendo mais rapidamente do que o produto interno bruto de todos os países, enquanto os investimentos em prevenção de doenças infecciosas vêm proporcionalmente diminuindo.  Esta negligência resultou na situação atual desta pandemia, que já custou em um ano, quatro trilhões de dólares ao planeta, um valor equivalente a mais do que dois anos de todo o produto interno bruto do Brasil e aproximadamente 6 mil vezes o valor da média anual de investimentos em vacinas, antes da pandemia. Se considerarmos que com um aumento de 10 vezes, em relação à média anual de investimentos em vacinas, conseguiu-se em um ano chegar a várias vacinas contra Covid-19, é plausível imaginar que se aumentarmos a média de investimento anual da indústria farmacêutica em vacinas de 3% para 10%, provavelmente seremos capazes de prevenir que novas pandemias ocorram, salvando vários milhões de vidas, e ainda teríamos um retorno econômico de mais de mil vezes. É uma demonstração clara de que não investir em vigilância sanitária, e desenvolvimento de vacinas, custa muito mais caro.

Precisamos sair da inércia e da inanição do País em relação à sua autossutentabilidade de produção de produtos farmacêuticos, como os IFAs por exemplo, para não dependermos dos ventos das políticas externas e dos posicionamentos políticos daqueles que deveriam nos representar. Esta autonomia passa pela inovação. Precisamos ter a capacidade urgente de inovar e para isto várias barreiras precisam ser transpostas, como por exemplo a superação da forte burocracia das agências regulatórias. Precisamos de vacinas contra Dengue, Zika, Chikungunya, Schistosoma, Trypanosoma Cruzi, HIV, etc. e para muitas outras doenças como, por exemplo, o câncer. Precisamos implementar as novas tecnologias como as vacinas de RNA, de adenovírus e de antígenos estabilizados carreados em proteínas solúveis. Precisamos também desenvolver novas formulações, incorporando múltiplos antígenos simultaneamente, otimizando o processo de imunização, demandando menos seringas, agulhas e visitas aos postos de vacinação. É preciso ainda melhorar a potência das vacinas atuais, visando a necessitar de apenas uma dose, assim como entender melhor por que algumas pessoas têm efeitos colaterais para podermos preveni-los. Enquanto já está em andamento uma verdadeira revolução na indústria farmacêutica mundial, incorporando várias tecnologias de fronteira (biologia computacional, dinâmica molecular, imunômica, análise em massa de dados, inteligência artificial, escalonamento de produção, etc.), ainda estamos aqui discutindo por que não conseguimos nem fazer o básico, ou seja, produzir a matéria-prima bruta que é o IFA.

Precisamos urgentemente mudar este cenário por meio de políticas governamentais de apoio à ciência e tecnologia, desburocratização dos processos regulatórios, investimentos massivos e monitoramento extensivo do desenvolvimento de projetos de Pesquisa e Inovação. Só assim conseguiremos retomar o crescimento do mercado nacional de vacinas, produzir insumos de alto valor agregado e reduzir nossa dependência tecnológica.  Fazer o IFA é fundamental, mas é apenas um primeiro passo.

Agradecimentos ao Professor André Furtado pela leitura e revisão do artigo.

*Rafael Dhalia é Pesquisador da Fiocruz e Acadêmico da APC.

**Ernesto Marques é Prof. Titular da Fiocruz e da University of Pittsburgh (USA)

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