Por que o Brasil não possui insumos para produção de vacinas contra a Covid-19?
Rafael Dhalia* e Ernesto Marques** www.academiapc.org.br
Depois de imunidade de rebanho,
anticorpos neutralizantes, reposta de células T, eficácia, uso emergencial,
etc., o Insumo Farmacêutico Ativo (IFA) se tornou quase que uma obsessão no
nosso vocabulário científico atual. Trocando em miúdos, o IFA nada mais é do
que a “formulação antigênica da vacina”,
portanto o seu princípio ativo, ou seja, aquilo que é responsável por induzir a
nossa resposta imunológica contra um determinado agente patogênico. Deste modo,
diferentes vacinas requerem necessariamente diferentes IFAs: enquanto a vacina
do Butantan é baseada no vírus SARS-Cov-2 inativado, a da Fiocruz se baseia em
adenovírus carreador de DNA codificante da proteína Spike do vírus. Mas daí
surge uma pergunta quase que inevitável: e não tem como produzir aqui? Por que
precisa vir de países tão distantes como Índia e China? Na verdade, não teria
necessariamente de vir de tão longe. Em um passado recente, da História do
Brasil, essa possibilidade sequer seria cogitada.
Em
1980, vivíamos uma realidade totalmente oposta, pois produzíamos quase 60% dos
nossos próprios insumos farmacêuticos. Com a abertura comercial, por meio do
Plano Collor I, e consequente barateamento de importados na década de 1990,
muitas empresas nacionais não conseguiram acompanhar a livre concorrência e
sucumbiram. Políticas de apoio à indústria nacional não passavam de
propagandas. Mudanças tarifárias tornavam o produto final importado ainda mais
barato que os insumos necessários para a sua produção. Era o começo de um
“fim”, pois via um efeito em cascata, a capacidade da Indústria Farmacêutica
Brasileira de produzir insumos farmacêuticos foi encolhendo, até chegar nos 5%
atuais. É preciso resgatar alguns fatos para que possamos tentar entender
como fomos capazes de interromper um processo em construção, que caminhava para
uma autossuficiência, para pelo contrário nos tornarmos dependentes.
É
importante entender que a indústria que produz vacinas é diferente da indústria
que produz remédios. Apesar de várias das grandes empresas contemplarem os dois
setores, eles se comportam de forma bem diferente. Antes da pandemia de
Covid-19, os investimentos em Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) global
concentravam mais de 97% do total no desenvolvimento de medicamentos, e menos
de 3% no desenvolvimento de vacinas. Existem várias razões para explicar
este fato, mas a maior delas é que remédios são muito mais lucrativos do que
vacinas. Além de requererem níveis de eficácia e segurança muito superiores, as
vacinas também demandam maiores investimentos em relação aos medicamentos.
Outro ponto nevrálgico é que o maior cliente da indústria produtora de vacinas
é o governo, que inerentemente têm muito mais força na negociação de preços. O
resultado desta dinâmica é que apesar das vacinas trazerem enormes benefícios para
a sociedade, tanto salvando vidas como trazendo benefícios econômicos para as
comunidades, os investimentos privados nesse setor não são muito
atrativos. Dentro dos cerca de 3% de investimentos em vacinas, 70% se
concentram na pesquisa de desenvolvimento e inovação de novas vacinas, que
deverão apresentar cada vez menos efeitos adversos, melhor eficácia e serem
desenvolvidas em intervalos de tempo cada vez mais curtos.
O
processo de inovação é fundamental para proteger a espécie humana de novas
ameaças emergentes, onde nas duas últimas décadas, por exemplo, já tivemos
epidemias de Dengue, Zika, Chikungunya e Influenza, dois surtos de Coronavírus
(SARS – 2003 e MERS – 2012) e uma pandemia do SARS-Cov-2, iniciada no final de
2019. Portanto, países em desenvolvimento como o nosso precisarão de ampla
reestruturação no sistema de financiamento de inovação em vacinas, sendo
necessária a indução de investimentos suntuosos, capacitação altamente
especializada e desburocratização das instituições regulatórias. Para isto, é
necessário que os produtores nacionais de vacinas sejam recompensados de forma
proporcional aos benefícios que trazem para a sociedade, e não só com base no
custo de produção.
No
Brasil, na década de 80, cerca de 80% do mercado nacional de imunobiológicos
era dominado pela multinacional Syntex, que deixou o País na mão quando foi
pressionada pelo Ministério da Saúde por menores preços e melhorias nos seus
procedimentos de qualidade. Com a saída da Syntex, o governo optou por
fortalecer o setor público para produção de vacinas, destinando recursos
principalmente para o Instituto Butantan e a Fundação Oswaldo Cruz - Fiocruz,
representada por Biomanguinhos. Esse investimento foi fundamental para a
consolidação do Programa Nacional de Imunizações - PNI, por meio de diversas
transferências tecnológicas com a finalidade de produção para abastecer o
Sistema Único de Saúde - SUS.
Por
outro lado, a ausência de uma política governamental de financiamento e a baixa
competitividade, em relação aos IFAs de origem estrangeira, levou as indústrias
nacionais a perderem espaço no mercado de produção desses insumos em relação a
países até então em desenvolvimento como Índia, China, Indonésia e Coréia do
Sul. O resultado desse fenômeno pode ser observado hoje, onde das oito maiores
empresas do mercado de produção de vacinas, quatro estão em países ainda em
desenvolvimento: três na Índia (Serum Institute of India, BioEvans e Bharat
Biotech Internacional) e uma na Indonésia (BioPharma). Para revertermos esta
situação, necessitamos de um modelo de negócio que atraia mais investimentos
neste setor e propulsione uma completa modernização industrial, que nos
permita: desenvolver novas vacinas de alto valor agregado (dentro das Boas
Práticas de Fabricação- BPF); suprimento de insumos certificados; otimização do
processo de produção; controle de qualidade.
Diante
da situação caótica causada pela Pandemia do SARS-Cov-2, um problema iminente
estava surgindo em todo mundo: precisávamos desenvolver, de forma emergencial,
vacinas eficazes contra a Covid-19. Diversas iniciativas da indústria privada,
com todos os tipos imagináveis de tecnologias antigas e novas, foram fomentadas
por governos por meio de contratos que cobriam os custos iniciais de
desenvolvimento e construção de fábricas, em troca de garantia de compra de
vacinas com preços pré-fixados. Países de maior poder aquisitivo como Estados
Unidos, Canadá, China, Japão e da União Europeia passaram a ser os maiores
investidores nas suas indústrias e foram às compras para garantir doses das
vacinas em desenvolvimento, sem sequer terem ainda comprovação de eficácia.
Observando este processo, a Organização Mundial da Saúde (OMS) buscou encontrar
mecanismos para garantir que os países mais pobres também pudessem ter acesso
às novas vacinas. Para isto, a OMS se associou ao fundo COVAX, que visa a
distribuição igualitária para países de menor poder aquisitivo (de pelo menos
10 das vacinas contra a Covid-19 em desenvolvimento). E o Brasil, no meio do
olho do furacão, não reconheceu os impactos da pandemia no País, nem a
necessidade de vacinas para a Covid-19, e achou que não precisava fazer parte
desta disputa. Foi necessário que a iniciativa, contrariando a posição do
Governo Federal, partisse dos nossos dois maiores produtores de vacina nacionais,
o Instituto Butantan e a Fiocruz, responsáveis pela produção de cerca de 75%
das vacinas disponíveis no nosso SUS. Enquanto o Butantan negociava um acordo
de transferência tecnológica com a empresa Sinovac, com a finalidade de
adquirir, em um primeiro momento, doses prontas para uso e, em um segundo
momento, ser capaz de produzir essa vacina em solo nacional, a Fiocruz estava
em negociação com a empresa AstraZeneca, para também adquirir doses e a
transferência da tecnologia de produção para Biomanguinhos. A princípio, o
Governo Federal desdenhava da iniciativa do Butantan, incluindo na sua agenda
um repertório de agressões que levaria a uma troca de farpas com a diplomacia
Chinesa. Ao mesmo tempo, a negociação com a vacina de Oxford, posteriormente
fomentada como vacina prioritária pelo mesmo governo, caminhava com muita
dificuldade em relação à assinatura do contrato. Ambas as vacinas foram
aprovadas para uso emergencial pela ANVISA, em uma decisão unânime por parte
dos seus cinco diretores. Diante do atraso na entrega e insuficiência do IFA da
vacina de Oxford, além da necessidade de mais tempo para adaptar a fábrica da
Fiocruz para produzi-lo no Brasil, o Governo Federal decidiu fazer acordo
também com o Instituto Butantan, que tinha uma maior quantidade de vacinas
disponíveis e estavam mais adiantados na fabricação nacional de vacinas. Era
urgente iniciar a vacinação, e nunca se politizou tanto uma questão que deveria
ser exclusivamente de cunho técnico e científico.
E
agora? Em que ponto estamos? Habemus IFAs? Como diria o matuto: tem mas tá
faltando! Iniciamos o Programa Nacional de Imunização (PNI) com aproximadamente
10,8 milhões de doses da Coronavac e 2 milhões de doses da de Oxford,
suficiente para imunizar apenas 6.4 milhões de pessoas, uma vez que é
necessária a aplicação de duas doses por pessoa. Considerando só a população
dos grupos prioritários, estimada em quase 50 milhões de pessoas, e que menos
de 3% da população tenha já sido imunizada, podemos dizer que precisamos de
muito mais doses, se quisermos atingir a tão sonhada “imunidade
de rebanho”. Existe uma luz no fim do túnel, e a esperança está
no DNA do povo brasileiro, considerando que existe a perspectiva de termos
ainda este ano 100 milhões de doses da Coronavac e 200 milhões de doses da de
Oxford, totalizando 300 milhões de doses. Pelo menos metade destas doses
deverão ser 100% produzidas no Brasil, incluindo os IFAs, com as transferências
tecnológicas da Sinovac para o Butantan, e da AstraZeneca para a Fiocruz, a
partir do segundo semestre de 2021. Atingiríamos a imunidade de rebanho
imunizando 50 milhões com a Coronavac e 100 milhões com a de Oxford, ou seja,
150 milhões de pessoas, em regime de duas doses. Para se ter uma ideia da
complexidade deste desafio, seria necessário manter uma vacinação de 8 milhões
de doses por semana, durante aproximadamente 9 meses. Disposição e experiência
não faltam, pois temos o PNI cuja capilaridade e excelência dispensam
comentários. O que precisamos é de políticas sérias de governo para garantir a
vacinação de nossa população, com a aquisição de milhões de doses e insumos
indispensáveis como agulhas e seringas, por exemplo.
Cerca
de 192 milhões de pessoas foram vacinadas em todo o mundo, 5,5 milhões só no
Brasil, até o fechamento deste manuscrito (17/02/2021). É importante ressaltar
que não foram relatados eventos adversos mais severos, correlação comprovada de
morte à vacinação e ninguém virou jacaré. E com todas estas dificuldades e
todos os benefícios (cientificamente comprovados) da vacinação que revolucionou
a vida do ser humano na Terra, em termos de qualidade e expectativa de vida,
ainda há aqueles que não querem se vacinar. É importante destacar que quanto
mais pessoas forem vacinadas, maior será a proteção da população como um todo.
O ato de se vacinar é bem mais complexo do que se imagina e não pode, de forma
alguma, se resumir a um sim, ou não! Segundo trecho retirado de um artigo
publicado por Ângela Pôrto e Carlos Fidelis Ponte, no periódico História,
Ciências, Saúde, disponível na biblioteca de Manguinhos: “Longe de ser um fato
isolado, sujeito apenas aos parâmetros de aferição e decisão da medicina ou das
ciências biomédicas, a vacinação é também, pelas implicações socioculturais e
morais que envolve, a resultante de processos históricos nos quais são tecidas
múltiplas interações e onde concorrem representações antagônicas sobre o
direito coletivo e o direito individual, sobre as relações entre Estado,
sociedade, indivíduos, empresas e países, sobre o direito à informação, sobre a
ética e principalmente sobre a vida e a morte”.
O
Brasil precisa garantir tanto o direito individual como o coletivo, no que se
refere à vacinação de sua população. Acabar com a ideia, de algumas pessoas, de
que vacina é para os pobres que não podem comprar remédio. A discussão tem de
ser pautada em torno do direito que nos é assegurado pela Constituição. Os
governantes não podem se eximir de suas responsabilidades, pois é obrigação
deles garantir a saúde de todos, não só dos seus eleitores.
A
pandemia de Covid-19 expôs a grande negligência dos governos do mundo todo com
o financiamento da Saúde Pública e de medidas preventivas, que já vêm se
acumulando por várias décadas. Mostrou a medicina completamente centrada no
tratamento medicamentoso dos doentes e muito pouca capacidade de intervir,
prevenindo as infecções. Os investimentos em tratamentos médicos vêm crescendo
mais rapidamente do que o produto interno bruto de todos os países, enquanto os
investimentos em prevenção de doenças infecciosas vêm proporcionalmente
diminuindo. Esta negligência resultou na situação atual desta pandemia,
que já custou em um ano, quatro trilhões de dólares ao planeta, um valor
equivalente a mais do que dois anos de todo o produto interno bruto do Brasil e
aproximadamente 6 mil vezes o valor da média anual de investimentos em vacinas,
antes da pandemia. Se considerarmos que com um aumento de 10 vezes, em relação
à média anual de investimentos em vacinas, conseguiu-se em um ano chegar a
várias vacinas contra Covid-19, é plausível imaginar que se aumentarmos a média
de investimento anual da indústria farmacêutica em vacinas de 3% para 10%,
provavelmente seremos capazes de prevenir que novas pandemias ocorram, salvando
vários milhões de vidas, e ainda teríamos um retorno econômico de mais de mil
vezes. É uma demonstração clara de que não investir em vigilância sanitária, e
desenvolvimento de vacinas, custa muito mais caro.
Precisamos
sair da inércia e da inanição do País em relação à sua autossutentabilidade de
produção de produtos farmacêuticos, como os IFAs por exemplo, para não
dependermos dos ventos das políticas externas e dos posicionamentos políticos
daqueles que deveriam nos representar. Esta autonomia passa pela inovação.
Precisamos ter a capacidade urgente de inovar e para isto várias barreiras
precisam ser transpostas, como por exemplo a superação da forte burocracia das
agências regulatórias. Precisamos de vacinas contra Dengue, Zika, Chikungunya,
Schistosoma, Trypanosoma Cruzi, HIV, etc. e para muitas outras doenças como, por
exemplo, o câncer. Precisamos implementar as novas tecnologias como as vacinas
de RNA, de adenovírus e de antígenos estabilizados carreados em proteínas
solúveis. Precisamos também desenvolver novas formulações, incorporando
múltiplos antígenos simultaneamente, otimizando o processo de imunização,
demandando menos seringas, agulhas e visitas aos postos de vacinação. É preciso
ainda melhorar a potência das vacinas atuais, visando a necessitar de apenas
uma dose, assim como entender melhor por que algumas pessoas têm efeitos
colaterais para podermos preveni-los. Enquanto já está em andamento uma
verdadeira revolução na indústria farmacêutica mundial, incorporando várias
tecnologias de fronteira (biologia computacional, dinâmica molecular,
imunômica, análise em massa de dados, inteligência artificial, escalonamento de
produção, etc.), ainda estamos aqui discutindo por que não conseguimos nem
fazer o básico, ou seja, produzir a matéria-prima bruta que é o IFA.
Precisamos
urgentemente mudar este cenário por meio de políticas governamentais de apoio à
ciência e tecnologia, desburocratização dos processos regulatórios,
investimentos massivos e monitoramento extensivo do desenvolvimento de projetos
de Pesquisa e Inovação. Só assim conseguiremos retomar o crescimento do mercado
nacional de vacinas, produzir insumos de alto valor agregado e reduzir nossa
dependência tecnológica. Fazer o IFA é fundamental, mas é apenas um
primeiro passo.
Agradecimentos ao Professor André Furtado pela leitura e revisão do
artigo.
*Rafael Dhalia é Pesquisador da Fiocruz e Acadêmico da APC.
**Ernesto Marques é Prof. Titular da Fiocruz e da University of
Pittsburgh (USA)
Não
é fácil, mas saber onde pisamos nas redes sociais importa para que não nos
deixemos manipular mais do que o inevitável pelo jogo de algoritmos evitável https://bit.ly/2ZzvEJO
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