A vacinação contra o coronavírus virou uma bagunça no Brasil
Tem cabimento vacinar terapeutas e personal trainers
antes dos mais velhos, que representam 70% dos mortos?
Drauzio Varella, Folha de S. Paulo
Olha a
bagunça que virou a vacinação contra o coronavírus.
Reconhecido
como um dos maiores programas do mundo, ao Programa Nacional de
Imunizações (PNI) caberia
coordenar a distribuição das vacinas e estabelecer regras rígidas para definir
as localidades e os grupos que deveriam receber as primeiras doses disponíveis.
Não
faltaria conhecimento a um programa com mais de 45 anos de idade, que foi capaz
de eliminar a varíola e a poliomielite do país, de vacinar 18 milhões
de crianças contra a poliomielite num só dia, 100 milhões de pessoas contra
a H1N1 em três meses, em
2010, e 80 milhões
contra a influenza, em 2020.
Agora, sem
autonomia para coordenar a estratégia de vacinação, o programa houve por bem
pulverizar pelo país as poucas vacinas existentes, como se a epidemia ameaçasse
todos os municípios com igual virulência. Ao lado desse equívoco, facultou a
estados e municípios a adoção dos critérios para estabelecer prioridades, de
acordo com as realidades locais.
A falta de
uma coordenação
centralizada com
regras válidas para o país inteiro gerou essa confusão de grupos e de pessoas
que subvertem a ordem prioritária e confundem a população, incapaz de entender
porque em cada cidade a vacinação chega para uns e não para outros.
Profissionais
formados em psicologia, biologia, veterinária, educação física, além de
trabalhadores da área da saúde que nem sequer chegam perto dos doentes com
Covid, são vacinados antes das mulheres e homens com mais de 80 anos. Enquanto
nos entretemos com as imagens dos telejornais que mostram senhoras e senhores de
90 anos,
infantilizados pelo repórter que lhes pergunta se estão felizes com a vacina,
passa a boiada dos mais jovens que furam a fila.
Tem
cabimento vacinar veterinários, terapeutas, personal trainers, escriturários de
hospitais, antes dos mais velhos, que representam mais de 70% dos mortos? É
justo proteger essa gente antes dos professores, dos policiais e de outras categorias
mais expostas ao vírus?
A
distribuição pulverizada das vacinas sem levar em conta a prevalência do
coronavírus, as condições do sistema de saúde da localidade e as vagas
disponíveis nos hospitais é demonstração inequívoca de incompetência.
Veja os
exemplos do Amazonas e de Roraima, caríssima leitora: hospitais lotados, filas
de doentes sentados à espera de um leito, UTIs sem vagas, pacientes
transferidos para cidades a milhares de quilômetros, uma linhagem mutante do
vírus bem mais contagiosa que se espalha pelo país.
Em Manaus,
se somarmos aos manauaras com mais de 60 anos, aqueles com comorbidades,
teremos cerca de 200 mil pessoas. No estado do Amazonas haveria 400 mil. Não
seria mais lógico, neste momento, enviarmos para lá 800 mil doses de vacina, na
tentativa de pôr ordem no caos e de conter a disseminação da
linhagem mais perigosa?
É preciso pós-doutoramento em Oxford para ter uma ideia dessas?
A
imunização contra o coronavírus impõe pelo menos três grandes desafios. O
primeiro é que nunca iniciamos uma campanha sem ter doses suficientes, situação
a que chegamos pelas dificuldades de produção de vacinas disputadas pelo mundo
inteiro e pela desídia de um governo
negacionista que não se interessou em
adquiri-las quando ainda havia disponibilidade.
O segundo
é a necessidade de administrar duas doses da mesma vacina, com intervalo de
algumas semanas: recebeu a primeira dose da Fiocruz/AstraZeneca, a segunda não
pode ser a do Butantan/Sinovac, e vice-versa. Com a presente escassez, não será
fácil organizar a distribuição de preparações fabricadas por empresas
diferentes, para chegar de forma ordeira nas 38 mil salas de vacinação
espalhadas pelo país.
O
terceiro, talvez o mais grave, foi a substituição de especialistas
competentes como a doutora Carla Domingues, que dirigiu o programa nacional de 2011 a 2019, por
gente nomeada por afinidades corporativas e ideológicas. O atual ministro da
saúde e as chefias de coordenação que retiraram das mãos do PNI o poder de
decisão têm algo em comum com você e eu, prezado leitor: a falta absoluta de
experiência com imunizações em massa.
Que azar.
Quando o Brasil mais precisava de técnicos treinados para executar a difícil
tarefa de vacinar seus habitantes, única forma de reduzir a mortalidade e dar
alento à economia, caímos nas mãos de um Ministério da Saúde fragilizado,
dirigido por amadores.
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