Apesar de você
Daniela
Pinheiro, UOL
O cineasta Sérgio Tréfaut, de 57
anos, tem três passaportes. Ele nasceu no Brasil por acaso, cresceu na França
com a mãe nativa e morou quase toda a vida em Portugal, onde construiu uma
carreira de renome. Seus filmes foram exibidos em mais de 40 países, onde
recebeu honrarias relevantes.
Recentemente, levou o Grande
Prêmio de Documentário Musical no Festival Internacional de Documentários em
Biarritz com "Paraíso", que acompanha a rotina de um grupo de idosos
que se reúne para cantar nos jardins do Palácio do Catete, no Rio. As filmagens
foram interrompidas por conta da pandemia. Quando o filme foi lançado, alguns
dos personagens haviam morrido, vítimas da covid-19. Foi a primeira vez que
Tréfaut filmou no Brasil. Até então, tinha tratado de temas ligados ao país à
distância, como a vida dos imigrantes. Seu próximo projeto é um mergulho no
descaso com o patrimônio público e as consequências do desenvolvimento urbano
anárquico. Um dos focos do filme é a tragédia dos incêndios em museus
brasileiros. Desde os anos 1970, sete deles, em diferentes cidades do país,
viraram cinzas, carcomidos pelo fogo que destruiu acervos completos, obras de
arte de valor inestimável e parte relevante da memória nacional.
No início de março, Tréfaut vendeu
o dúplex em que morou por 27 anos no bairro da Graça — de onde se tinha uma
vista magnífica dos telhados de Lisboa e do Tejo soberbo — para se mudar para o
Brasil. Às vésperas de sua viagem, conversamos por duas horas sobre incêndios,
Brasília, xenofobia contra brasileiros, o estado da cultura no país. Na última
quinta-feira (29), dois meses depois de ele ter se instalado numa casa no
bairro de Santa Teresa, no Rio, voltamos a nos falar. A entrevista foi editada
e condensada para melhor compreensão.
Daniela
Pinheiro: Nunca houve tantos brasileiros vindo viver em Portugal, e você está
fazendo o caminho inverso. Por que voltar para o Brasil?
Sérgio Tréfaut: Nasci no Brasil porque meu pai, que é português,
estava exilado. Quando a ditadura salazarista acabou, a do Brasil estava no
auge. Meu irmão mais velho foi preso, torturado, quase morreu. Fugimos de lá e
mudei-me para a França com minha mãe. [Seu pai era o jornalista Miguel Urbano
Rodrigues, ex-editorialista d'O Estado de São Paulo]. Só fui pisar no Brasil
novamente aos 22 anos. Depois, passei mais dez anos sem voltar. Estou indo
porque sinto que minha identidade está lá. Apesar de tudo, do Bolsonaro, do
estado geral das coisas e com a proximidade das novas eleições, tenho a
impressão de que já se pode começar a pensar em respirar por lá.
Que tipo de
oportunidades acredita que encontrará no Brasil?
Encontrei no Brasil algo que não tive em nenhum outro lugar do mundo: uma
liberdade, uma possibilidade de ser eu mesmo tremenda. Nunca tive isso na França,
nem aqui em Portugal. Eu tenho muitos amigos brasileiros, e eles são
maravilhosos. Quero tentar fazer filmes sobre o Brasil. Quero, de certa forma,
ajudar e lutar pelo país. É mais ou menos isso. Minha relação com o Brasil é
esta: continuo com um sonho empático de carinho absoluto pelo país e uma
vontade de participar na medida do possível. Mas sei que sou um brasileiro de
segunda. No sentido de que não vivi como um brasileiro legítimo.
O que é preciso
dizer sobre o Brasil em filmes?
Há muito o que se retratar. Tenho um documentário, um pouco conceitual, ainda
em fase de pesquisa, que é muito forte para mim. Chama-se "Incêndio"
e trata da questão patrimonial brasileira. É percorrer o caminho de como os
brasileiros destruíram totalmente o seu país. E não tem nada a ver com
Bolsonaro.
O estado dos
museus engolidos pelo fogo era como a crônica de uma tragédia anunciada:
descaso público, nenhum cuidado, burocracia e leniência governamental.
Crônica de um incêndio anunciado. A partir deles, aprende-se muito sobre o
Brasil. Nos últimos 30 anos, houve sete incêndios de proporções aterradoras: a
Cinemateca em São Paulo, o Museu Nacional no Rio, o Museu da Língua Portuguesa,
o Memorial da América Latina, o Museu de História Natural, só para citar
alguns. Isso diz muita coisa sobre uma nação: a relação do Brasil com seu
patrimônio, como trata das suas coisas e o que espera delas. O que é o Museu do
Amanhã, no Rio? Esse museu é o resumo mais bem acabado da mentalidade de que a
nossa identidade está no futuro e foda-se o passado. Um museu vazio, onde
ninguém vai, que mostra sei lá o quê, mas que simboliza o "amanhã".
Museu pago pela Globo, que é uma instituição, um dos símbolos dessa ideologia
dominante.
Como o Brasil
trata seu patrimônio?
É preciso fazer um flashback para entender como chegamos até aqui. Ir para o
começo do século 20, quando o Rio de Janeiro ainda era a capital do país e tudo
o que aconteceu com a operação "bota-abaixo", que mudou a cara da
cidade. A ideia de se construir uma Paris dos trópicos. É quando abrem a
avenida Central -- que era para ser uma Champs-Elysées --, há
a construção do Theatro Municipal e dos edifícios da Biblioteca Nacional e da
Escola de Belas Artes. Arrasam com a parte antiga para "civilizar" a
cidade para a elite. Aí vem os anos 1930, 1940, o metro quadrado aumenta
demais, a questão do dinheiro fala mais alto e tudo aquilo é substituído de
novo por coisas mais rentáveis de inspiração norte-americana, como Chicago e
Nova York. Aí, mais uma vez, vale o que é o "novo". O passado, a história,
vão para o lixo. Isso tem um peso radical em toda a construção, em todo
urbanismo, em todo o desenvolvimento brasileiro do século 20.
Vide a Barra da Tijuca.
A Barra é o que tem mais valor hoje no Rio de Janeiro! Aquela coisa imunda,
horrorosa, que nunca deveria ter existido e nem deveria ser o Rio de Janeiro,
tinha que ser um subúrbio e olhe lá. Aquilo tem mais valor do que o bairro de
Botafogo. Ou seja, em vez de valorizar, o antigo vira nada. O apagamento
histórico, a ideia do novo-rico, do dinheiro novo, é uma característica muito
própria de tudo isso.
Nesse contexto, o que quer dizer a
construção de Brasília?
Tem a ver com uma ideologia que também nasce no começo do século 20, exprimida
por um austríaco radicado no Brasil, que faz o livro mais vendido no mundo
sobre o Brasil. É Stefan Zweig e o seu "Brasil, País do Futuro". De
fato, Zweig nem é um grande pesquisador. Ele faz uma colagem de outros
intelectuais brasileiros -- Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda -- e
aparece com a ideia de um país maravilhoso, onde não há criminosos, brancos e
pretos se amam, se há gente na cadeia foi porque escorregou numa casca de
banana. O país da doçura. O Brasil, país do futuro, é o que faz com que
Brasília seja um projeto de capital onde não há nenhuma memória de passado.
Eu nasci em Brasília, mas não me
imagino morando lá nunca mais.
Juscelino Kubitschek tinha feito um balão de ensaio em Belo Horizonte, quando
fez o bairro da Pampulha -- já tinha ali Oscar Niemeyer, Burle Marx. Aquilo já
era o seu "show off". E aí, presidente da República, ele inventa de
fazer a nova capital. E aquilo não passa de um projeto eleitoreiro. Fazer uma
capital em cinco anos em si é uma aberração. Sim, era preciso desenvolver o
centro do país, mas Brasília foi uma excrescência moral. Aquilo tudo é uma
farsa fabulada com os conceitos de dois filhinhos de papai, que fazem um parque
temático, que se torna obsoleto rapidamente. Uma cidade feita para automóveis,
totalmente excludente.
Pelo visto, sua relação com Brasília
também é polêmica.
Eu não gosto de Brasília. Aquilo é um absurdo do JK. Devia se chamar Jotacalândia,
uma cidade construída do nada por um doido varrido que queria se autocoroar,
como Napoleão na Notre Dame. E o tal do Museu do Candango? Mais de 80% do museu
é uma glorificação do JK. E Brasília inteira é isso. Tem aeroporto JK, mausoléu
JK. Não tem coisa que não seja JK. Ele fez seu monumento fúnebre. É uma
história de faraó. Quero contar a verdade sobre o projeto de Brasília, que é a
iniciativa mais destruidora já desenvolvida para acabar com o patrimônio do
país.
Os filhinhos de papai são os arquitetos
Lucio Costa e Oscar Niemeyer, que planejaram Brasília? Eles diziam sonhar com
uma cidade onde ricos e pobres convivessem nas mesmas superquadras, seus filhos
indo à mesma escola e por aí vai.
Inclusão com pobres? Isso nunca houve. Brasília foi construída com os candangos
imigrantes de muito baixa renda que, depois da inauguração da cidade, foram
instalados bem longe do centro, em locais completamente a esmo. A história dos
candangos é monstruosa. Na pesquisa do filme, vimos a história de trabalhadores
que eram ameaçados com metralhadoras, coisas desse tipo. As pessoas iam
trabalhar e depois eram cuspidas fora. Eu vou fazer o que puder para manchar a
reputação do Lucio Costa, suposto comunista. Sua cidade inclusiva é uma piada.
Por quê?
Prefiro Dubai a Brasília. Dubai é mais real. Tudo em Brasília é uma farsa, uma
impostura ideológica. Não acredito em nada daquilo. A cidade de funcionários
públicos, tudo ali é especulação imobiliária. Outro dia, fui com um amigo de
metrô até a Ceilândia, um bairro considerado pobre no entorno da cidade. A
história da criação de Brasília tem como reverso da medalha a decadência do Rio
de Janeiro, o desinvestimento. Os espanhóis têm essa palavra
"desarrollista", sobre o desenvolvimento econômico a todo custo. Construção
das grandes estradas, das hidrelétricas, o desenvolvimento econômico é tudo. A
Dilma também pensava assim. Mas é exatamente isso que faz com que o patrimônio
cultural brasileiro comece a desaparecer. A ideologia de que o valor está no
futuro, que a identidade brasileira está ali adiante.
Você citou Zweig de "Brasil País
do Futuro", a coisa adocicada da brasilidade. Seu filme
"Paraíso" é uma visão adocicada de velhinhos cantando na praça
naquele país fraturado. O que você aprendeu fazendo esse filme?
Aprendi que há pessoas lindas no filme, que votaram no Bolsonaro. Não
conversávamos sobre isso no set, mas claro que eu sabia. Em geral, evito esses
assuntos. Não tenho perfil de conversor. Sou muito nietzschiano. Acho que
quando não há diálogo, não há diálogo. É uma relação de forças, ou você
consegue achar formas de impor ou mudar as leis. As leis têm que ser mudadas.
Não adianta discutir, tem que mudar é a lei.
Mas as pessoas vão continuar pensando
igual, estando ele na presidência ou não.
Eu sei. Aconteceu-me já, no Rio, de estar numa situação social num bar, por
exemplo, é ter receio de tocar em questões fraturantes e aí haver algum
mal-entendido. Para mim, há duas questões fundamentais para que se volte à
normalidade, questões sobre as quais o PT falhou quando estava no poder. A
primeira é o obscurantismo religioso. Dar fim a isso tem que ser uma
prioridade. A outra tem a ver com desmantelar os quartéis de droga e as
milícias. Acabar com essa relação pornográfica entre milícias e militares.
Quando esteve no poder, o PT não ousou enfrentar isso.
O que seus amigos dizem sobre a troca
de Lisboa pelo Rio?
Acham absurdo eu ter vendido minha casa. Mas não há crítica, há surpresa. O que
mais ouço é gente que está aqui em Portugal dizendo que volta para o Brasil
assim que o Bolsonaro deixar o governo. A minha mudança foi muito pensada,
planejada. Minha relação com Portugal é, de fato, mais com o Alentejo, de onde
vem minha família. Gosto mais da mentalidade das pessoas de fora de Lisboa.
Por quê?
Há uma dominação muito grande de valores pequeno-burgueses aqui. Uma
pseudo-esnobaria lisboeta, com que eu não tenho paciência. O Brasil é um país
historicamente de acolhimento, Portugal não é. Aqui, você entra na sociedade,
mas tem que ficar no seu lugar. Por exemplo, eu já trabalhei como jornalista.
Posso escrever quatro páginas no maior jornal aqui, como já fiz. Mas é
impensável com o meu sotaque fazer uma coisa na televisão. Só morei no Brasil
quando criança, vivo há 40 anos em Portugal, meus filmes são portugueses, mas
abro a boca aqui e sou um brasileiro.
O seu português não é luso, não é
brasileiro, tem essa melodia francesa.
Aqui, quando me ouvem, sou visto como brasileiro.
Isso é ruim?
Profissionalmente, não passa nada. Há uma questão da língua escrita que,
falando seriamente, acho que temos mais vantagens. Cometemos menos erros
gramaticais do que a maioria dos portugueses médios. Na vida pessoal, às vezes,
faz diferença, sim. Como se passa com algumas mulheres, há também um
preconceito na cena homossexual portuguesa contra os brasileiros. Como se
fôssemos mais fáceis, mais disponíveis e levianos.
O português é racista?
Alguns partidos políticos aqui, como o Bloco de Esquerda, jogam luz numa
discussão interessante de como é o racismo em Portugal. O Partido Comunista
Português, por exemplo, se recusa a assumir isso, e é uma das muitas razões
pelas quais estão decadentes. Há uns dois anos, o secretário-geral do partido,
Jerônimo de Sousa, deu uma entrevista dizendo que "a maioria do povo
português não era racista". Dias depois, um ucraniano foi assassinado por
policiais na imigração do aeroporto -- um escândalo aqui. O fato é que aqui há
uma coisa mal explicada. O António Costa (primeiro-ministro), quando vai ser
criticado, é chamado de indiano. Por conta da ascendência e da cor da pele, é
um estrangeiro.
(Dois
meses depois, uma nova conversa):
Como foram esses dois primeiros meses
de Brasil? Sentiu falta de algo?
Falta de Lisboa? Nenhuma. Mas a minha vida não é exemplo de nada. Nas últimas
semanas, viajei para as Guianas, Suriname, passei alguns dias no festival de
Montevidéu, cheguei agora a Paris para uma projeção especial do meu filme e nas
próximas semanas será um sem-fim de viagens de trabalho: Lisboa, Sevilha,
Belgrado, Barcelona, Varsóvia, Cracóvia, Paris, Vêneto.
Conseguiu perceber algo do Brasil?
Nessas idas e vindas, o que mais me deixa doente é sempre ver que, diante de
tanta monstruosidade, injustiça social e um governo imundo, classes de
profissionais ligadas ao social -- como os médicos, por exemplo -- ainda sejam
bolsonaristas. No Brasil, sempre fico com dor de barriga quando vejo que os
crimes de Estado são respaldados pela burguesia, que não quer perder seus
privilégios. Isso me entristece demais.
E vai continuar por aí mesmo sabendo
que é muito difícil mudar isso?
Sim. Os eleitores do Bolsonaro são como os sulistas da Guerra de Secessão
norte-americana. Perderam a guerra. Mas o racismo nos EUA ainda existe. Eles
vão continuar, mas é seguir lutando por justiça social, justiça tout court [simplesmente]
e lucidez.
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O sentido dos fatos em poucas palavras https://bit.ly/3n47CDe