Sobre palavras-charlatãs
Por mais absurdas que sejam à cognição, elas não são
inócuas
Muniz Sodré, Folha de S. Paulo
Do
jornalista e político Carlos Lacerda, dono de tiradas verbais desconcertantes,
está na memória o debate parlamentar em que o interlocutor o provocava, dizendo
que "suas palavras entram por um ouvido e logo saem por outro". A
resposta, fulminante: "Impossível, o som não se propaga no vácuo".
Mas
isso é reminiscência de um momento em que, à direita ou à esquerda,
personalidades de temperamento e manifestações fortes como Lacerda demonstravam
alguma elegância para com o discurso social. Até nas ofensas, como aquela
dirigida a um deputado gaúcho: "Este centauro mitológico dos pampas,
metade cavalo e a outra metade... cavalo também!".
É
hoje muito evidente a crise do discurso civil nas tecnodemocracias ocidentais,
mas ela é particularmente aguda no contexto brasileiro, onde palavras-charlatãs circulam sem
qualquer ancoragem no real-histórico ou no senso comum e, ainda assim, produzem
efeitos de comportamento.
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Por
exemplo, carecem de sentido muitos dos nomes das "igrejas" em
expansão. Já nas redes digitais, bolhas protofascistas obtêm melhor desempenho
do que as progressistas. Discursivamente, o meme abre portas ao fenômeno.
Exemplo abstruso é a palavra "Ratanabá", que designa cidade
inventada por um ufólogo bolsonarista, suposta "capital do mundo"
localizada na Amazônia e com ouro suficiente para "tornar todos os
brasileiros milionários". Transformada em meme, a palavra-charlatã adquire
força viral na rede, por mais absurda que seja à cognição. E não é inócua:
junto com ela são viralizadas ideias antiambientalistas e anti-indigenistas.
À consciência
letrada tudo isso pode parecer remoto, mas esse é o real da boçalidade pública,
que penetra na fadiga da institucionalidade cívica. Vale recordar o versículo:
"Todas as palavras estão gastas (...) O que foi é o que será. O que
aconteceu é o que há de acontecer. Não há nada de novo debaixo do sol"
(Ecl. 1,9-9).
O texto
bíblico abrange hoje as palavras que, destituídas de valor e de peso, embora
carregadas de força emocional, apenas acentuam o vazio das vozes. Temia
Nietzsche em 1882: "Mais um século de jornalismo e as palavras começarão a
feder".
Não se
trata, porém, de jornalismo, e sim do "vácuo" a que se referiu o
polemista no debate, aquele onde o som não se propaga. Só que isso acontece
agora como disfunção societária, isto é, como zeramento progressivo dos valores
cívicos e morais, que fazem exigências internas e externas de obrigações
coerentes por meio de falas lógicas. O "fedor" nietzscheano foi
profético. Mas o mal-estar nauseante que contamina a sociabilidade nacional
transparece na corrupção das palavras públicas. É hora de, em silêncio,
trocá-las por ações mobilizadoras.
.
Veja: A mentira o desgasta e enfraquece;
mas o mantém conectado à sua base https://t.co/Dp8f13AzZ4
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