18 setembro 2022

Economia da cultura

Qual economia da cultura no pós-pesadelo?

Ciclo de debates vislumbra um novo setor na retomada democrática. Como ir além do que havia e construir o Sistema Nacional de Cultura? O poder simbólico e econômico das festas populares. O resgate do Cultura Viva e do Fundo do Audiovisual
Outras palavras

 

A guerra cultural é uma das marcas do fascismo em qualquer tempo, e o bolsonarismo reafirma essa regra. O campo reacionário cria coesão definindo seus inimigos, e a arte e a cultura são campos prioritários justamente porque mobilizam o imaginário, o campo simbólico. Ou seja, a guerra cultural é uma guerra contra a cultura em sua multiplicidade e riqueza histórica e social. 

Contra esse ataque, o setor cultural é chamado a se manifestar e se organizar em defesa da democracia. Mas não só: é preciso pensar desde já em como reconstruir as bases econômicas da cultura que foram duramente atingidas pelo governo Bolsonaro. E avançar, pois restaurar o “velho normal” já não será suficiente para o espaço que nossos anseios desejam ocupar. Poderemos finalmente construir um Sistema Nacional de Cultura que contemple a diversidade de situações pelas quais a cultura existe em nossa sociedade? E pensar novos mecanismos de financiamento e de ativação da economia da cultura, dando conta da diversidade de situações criativas e sociais que ela contempla? Ao mesmo tempo, como não se deixar capturar pelo economicismo que às vezes toma conta da discussão sobre a cultura, mantendo a circulação e o uso dos bens culturais no primeiro plano e a serviço do Comum? 

Foi com a missão de discutir esses e outros temas que se realizou a primeira Mesa do Segundo Ciclo de Debates dos Seminários de Cultura e Democracia, com o tema Economia da Cultura: Desafios para a Retomada Democrática. Afinal: como construir uma economia capaz de regular as desigualdades dos mercados culturais, incluir os direitos culturais no orçamento e impulsionar uma economia da cultura?

Leia a seguir como foi e o que se discutiu na mesa de debate.

Economia da Cultura: Desafios para a Retomada Democrática

A certeza de que o ano de 2022 é chave para o futuro do país presidiu a realização do Segundo Ciclo de Debates dos Seminários de Cultura e Democracia. O ano marca 100 anos da Semana de Arte Moderna e o bicentenário da Independência. Além disso, tem lugar neste momento um dos processos eleitorais mais importantes desde a consolidação da democracia no país. Enquanto o pleito se aproxima e os candidatos se apresentam, a democracia brasileira é questionada por um lado e defendida por outro. Hoje, o próprio conceito de democracia figura no centro dos debates populares e políticos como em poucas vezes na história recente do país.

]Mais do que sempre, a cultura é chamada a se manifestar. Os diferentes setores artísticos, intelectuais, acadêmicos, sociais e ativistas voltam a ser protagonistas da história e ajudam a organizar ativamente o pensamento coletivo e ações de luta. 

No conjunto do evento, os Seminários Cultura e Democracia propuseram um ciclo de cinco mesas, com a participação de diversos agentes e pensadores da cultura, que debateram sobre a economia da cultura, memória, história e patrimônio cultural, além de analisar e discutir sobre os desafios atuais da indústria cultural, da situação entre democracia e guerra cultural, e das diversidades culturais no Brasil.

Na abertura, o gestor cultural Guilherme Varella, diretor executivo do Instituto Cultura e Democracia, reafirmou que o foco deste segundo ciclo são os caminhos possíveis para a retomada das políticas públicas culturais. “Esse ano, vamos trazer esse tema em algumas áreas específicas, como a economia,” afirmou Varella, na abertura do primeiro dia de seminário. “É nossa forma de contribuir para que o Brasil venha a ter um novo ciclo democrático, que tenha a cultura no centro do desenvolvimento”. A Fundação Friedrich Ebert Brasil (FES), uma das organizações realizadoras, também saudou o início deste ciclo de debates. “Este é um projeto importante, porque sabemos que a democracia é definida em várias frentes e uma das frentes fundamentais é a Cultura”, afirmou Christoph Heuser, representante da FES no Brasil. “E quando a democracia é minada, um dos primeiros pilares a serem atacados é a Cultura. Então é um momento oportuno para debater esse vínculo entre Cultura e Democracia, já que fortalecer uma, ajuda a preservar a outra.”

A Cultura é um tema necessário à própria sobrevivência das pessoas, resumiu Artur Henrique, diretor da Fundação Perseu Abramo: “Nós estamos vivendo uma guerra cultural, uma disputa de valores, e por isso precisamos ter um canal para expor esse debate para o maior número possível de pessoas”.

Para abrir os debates, a primeira mesa, composta por Juca Ferreira, sociólogo e presidente do Instituto Cultura e Democracia, Carlos Paiva, pesquisador do Observatório de Economia Criativa da Bahia, e Lunna Rabetti, produtora cultural, historiadora, pedagoga e escritora, abordou a relação entre cultura e economia. 

Para Juca Ferreira, estamos vivendo tempos sombrios e fortalecer o debate é muito importante para a construção de alternativas. Nesse contexto, a Economia da Cultura é muito bem-vinda, assim como sua ampliação. Não que seja algo novo – ela já existe e é bem forte aqui no Brasil, na América Latina e no mundo há algum tempo –, mas é preciso equacioná-la de maneira correta, uma vez que ela se realiza em um território muito sensível, muito frágil e de muita importância para a humanidade: a dimensão simbólica.

Por englobar um campo de atividades muito amplo, é preciso desenvolver uma percepção mais aprofundada e menos economicista da cultura.  “Estamos aqui para problematizar e apontar caminhos”, afirmou Juca. “Em breve retomaremos o processo democrático no Brasil e essa retomada trará inevitavelmente uma revitalização da Cultura. Em vez da hostilidade que vemos atualmente, teremos acolhimento, reflexão e políticas públicas.”

Em sua fala, Juca Ferreira criticou o economicismo das abordagens à Economia da Cultura, limitadas a negócios e lucros. E afirmou que temos que equilibrar o valor de troca, que gera lucros, ao valor de uso, a verdadeira finalidade da arte e da cultura, preservando sua função social e seu significado para a vida de todos. Seria justamente essa compreensão não-economicista que deveria pautar as políticas públicas, todo o sistema cultural e os mecanismos de regulação. 

“A possibilidade de um mercado comum entre o Brasil e países da América Latina, Portugal, Espanha e países africanos que falam o português são enormes e a proximidade entre nossas línguas gera potencial suficiente para desafiar os limites dessa globalização cultural desigual. Seríamos um dos três maiores mercados culturais do mundo. Mas, enquanto em países como os EUA a cultura é tida como estratégica, por aqui ainda engatinhamos nesse processo e mais ainda se pensarmos em uma união latino-americana”, analisou.

Outra questão levantada por Juca é a compreensão da Cultura como um direito humano. Um direito de todas as pessoas. O acesso a bens culturais e a livre expressão cultural e artística são direitos fundamentais, como comer, ter uma moradia e saúde. E, portanto, são fundamentais para o desenvolvimento das sociedades e devem ser objetivos incontornáveis de um Estado democrático. “Mas isso não acontece na América Latina, devido à desigualdade econômica e à exclusão social de boa parte da população, mas principalmente pelo Estado não incorporar a Cultura como parte de seu projeto de Nação. Esses países, Brasil inclusive, resistem em ver a economia da cultura como alavanca para a economia geral”, completou. 

Teia Econômica

O  impacto positivo da Economia da Cultura embasou a fala da produtora cultural Lunna Rabetti. Ela listou os diversos segmentos e linguagens do universo da Cultura – circo, teatro, dança, música, audiovisual, artes visuais, literatura etc. – responsáveis por por 2,6% do PIB nacional e pela geração de 4,9 milhões de postos de trabalho formal, segundo a Secretaria de Cultura Economia Criativa de São Paulo. Sem contar as pessoas que atuam de maneira informal na Cultura.

Mas a Economia Cultural não é só o produto final dessas atividades. A Cultura dialoga com a Educação, com o Desenvolvimento Social, Juventude, Esporte. “Na Economia, temos sim toda a produção cultural, mas também temos eventos, como uma feira do livro, que além de vender livros, tem toda uma logística por trás – e essa logística gera riqueza também. São centenas de empregos, transporte, hotéis, toda uma riqueza gerada apenas pela existência daquela feira ou festival”, explica. 

Isso sem falar nas festas tradicionais, como o Carnaval ou o São João, que movimenta a renda de todos os territórios da cidade, com multidões de turistas que movimentam hotéis, lojas, restaurantes. Ainda assim, diz ela, a luta para que a Cultura seja reconhecida como geradora de riqueza é grande.

“O maior desafio é realizar um mapeamento amplo, que atinja todos os setores da Cultura, e promover um diálogo aberto e transparente. É preciso mais encontros como este, por exemplo. Outro desafio é a alocação de recursos. Existem incentivos diversos, mas precisamos pensar nas localidades onde o dinheiro ainda não chega, onde a Lei Aldir Blanc não chegou, onde a Lei Paulo Gustavo não vai chegar”, afirma Luna.

Juca Ferreira fez questão de reforçar essa abordagem. “Essa fala vai além do que conhecemos como indústria cultural ou mesmo economia criativa. As ditas pequenas economias populares são economias poderosas, mobilizam dezenas de milhares de pessoas, mantêm famílias inteiras. E as políticas públicas têm que ter a capacidade de se relacionar e criar o melhor ambiente possível para estimular essas atividades. E Luna deu um panorama que explica o porquê.”

Política de Fomento

Já o pesquisador Carlos Paiva destacou o papel do Estado em garantir o fomento à Cultura – e o fez citando dois momentos relevantes: o incêndio do Museu Nacional, em 2018, e o Prêmio do Júri do Festival de Cannes, recebido pelo filme Bacurau, alguns meses depois. Ambos são resultados de ações que aconteceram por anos: o museu, apesar de estar no Rio de Janeiro, o estado que mais recebe verbas de incentivo, não conseguia recursos para sua manutenção básica. E o filme  foi resultado de anos e anos de uma política de fomento ao audiovisual bem-feita.

Ou seja, a Cultura é complexa e o sistema de fomento precisa dar conta dessa complexidade. Existem, sim, as produções culturais que atendem ao mercado, mas também existe um desenvolvimento de linguagens que o mercado nunca vai abarcar. É preciso ter políticas que dialoguem com essas duas frentes e toda a nuance que existe entre elas.

“Fazendo uma pequena digressão histórica, essa ideia de um Estado mais neutro, menos participante da cultura da sociedade, vem de um momento de pós-ditadura, quando o Estado era o algoz,” afirmou o pesquisador. “Se o Estado era aparelhado para sufocar a cultura, faz sentido desejar a menor intervenção possível – as críticas à Lei Rouanet, por exemplo, vêm desse pensamento. Ao mesmo tempo, vem também dos anos 90 a ideia do mercado com um papel central no campo cultural, quando talvez o ideal é que não fosse tanto assim”, analisa. 

O Governo Lula, com Gilberto Gil e o próprio Juca Ferreira, propôs, desde 2003, três grandes desafios: fazer com que o Governo Federal: 1) assumisse um papel central na formulação de políticas culturais; 2) criasse operacionalidade para executar as políticas que seriam formuladas; e 3) alocasse recursos financeiros para essa execução. Esses desafios foram vencidos de forma inconteste, a ponto do brilhantismo daquela época ter recebido reconhecimento nacional e internacional.

Quais são os legados dessa época? Paiva cita três: o Programa Cultura Viva, que trouxe a descentralização do fomento, por meio de parcerias com estados e municípios; a criação do Fundo Setorial do Audiovisual, que sai daquela imagem antiga de que fomento é apenas incentivo fiscal e mostra uma atuação direta do Estado (que bem podia se estender a outros segmentos); e o Programa de Cultura do Trabalhador (Vale-Cultura), uma política inédita no mundo, por não focar na oferta (produtor de cultura), mas na demanda (quem consome cultura).

Toda a complexidade citada por Lunna Rabetti e Carlos Paiva, sobre as diferentes formas de produzir e gerar riqueza pela cultura, e sobre o papel do Estado na formulação de políticas de fomento, levaram Juca Ferreira a sugerir uma pluralização do conceito de economia da cultura: Economias da Cultura.

“São diferentes atores, formando diferentes técnicos, gerando diferentes riquezas, e o Estado precisa lidar com cada um especificamente”, pontuou o ex-ministro. “Estão lançadas as bases para um futuro Sistema Nacional de Cultura, que faça a interlocução não só entre Governo Federal, estados e municípios, na gestão descentralizada da cultura, mas também entre governos e os diferentes agentes produtores e consumidores de cultura.”

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