O euro, muito forte, muito
fraco ou muito dependente?
A mídia tradicional sempre vê a economia pelo
ângulo da meteorologia: uma sucessão de fenômenos cujas causas não adiantaria
determinar. É o que acontece com o valor das moedas, que passaria por períodos
de mau tempo, seguidos de calmarias e até mesmo de raios de sol. No entanto,
uma delas se distingue pelo acúmulo contínuo de nuvens: o euro
Renaud Lambert, Le Monde Diplomatique
As autoridades monetárias
europeias às vezes lembram Calimero, o herói de um desenho animado criado nos
anos 1960. Ao longo dos episódios, o pintinho preto que tinha no alto da cabeça
a metade de uma casca de ovo se debatia contra um mundo que julgava hostil. “É
realmente muito injusto!”, concluía sistematicamente, com erros de pronúncia e
lágrima nos olhos.
O que há alguns meses parece “muito injusto” aos
imitadores europeus do personagem? A degringolada da moeda única
diante das divisas internacionais, principalmente o dólar. Enquanto, em agosto
de 2020, 1 euro valia US$ 1,20, em setembro de 2022 com 1 euro já não se
comprava mais nem sequer US$ 1. Consequência: os preços dos produtos e das
matérias-primas estipulados na moeda norte-americana, como o petróleo, aumentam
rapidamente e de forma descontrolada no Velho Continente. “Muito fraco”, o euro ameaça a economia europeia, “complicando a luta contra a
inflação”, como se mostra preocupado o presidente do Banco da França, François
Villeroy de Galhau.1
Alguns anos antes, o tesoureiro francês já soava o
alarme, mas pelo motivo inverso: o euro se mostrava na ocasião… “muito forte”.
“O desenvolvimento recente da taxa de câmbio é uma fonte de incertez a,2 observou
Villeroy de Galhau em 2018, quando a moeda única chegou a valer US$ 1,22. Como
explicou Philippe Waechter, diretor de pesquisa econômica da Natixis Asset Management,
por ocasião de uma explosão anterior da moeda única, um nível como esse “corrói
os esforços que os países europeus tentam realizar para se tornarem mais
competitivos”.3
Em síntese: “O euro forte preocupa o BCE [Banco
Central Europeu]”,4 explicou em 2020 a Agefi, uma publicação
especializada no setor financeiro. Dois anos depois, tudo mudou, mas tudo
também continua sempre mal: “O euro fraco complica […] a missão do BCE”,5 de
acordo com o jornal especializado em economia Les Échos. Em outras
palavras, por um lado, o Velho Continente perde: o euro muito forte reduz a
competitividade das empresas. Por outro, ele perde também: o euro muito fraco
reduz o poder de compra da populaçã o e fomenta a alta de preços… Como explicar
essa situação estranha, em que a moeda europeia parece condenada a suscitar a
insatisfação?
Desde meados dos anos 1970 e o fim do sistema de
Bretton Woods6 que controlava as paridades entre moedas, a
maior parte das divisas “flutuam”: o curso de cada uma evolui em relação às
outras. Essas flutuações decorrem de uma multiplicidade de fatores ligados à
conjuntura, às previsões dos mercados financeiros sobre a saúde de um ou outro
espaço econômico, assim como às decisões dos diferentes bancos centrais do
planeta concernentes às taxas de juros. Assim, taxas de juros elevadas – que
oferecem uma remuneraç&a tilde;o mais significativa aos investidores –
tendem a suscitar um afluxo de capitais e, portanto, uma valorização da moeda.
De maneira inversa, uma redução das taxas de juros leva, em geral, os
detentores de capitais a buscar rendimentos mais generosos em outros lugares –
um fenômeno que exerce influência na desvalorização da moeda. Entretanto, no
meio dessa miríade de fatores, um mecanismo importa mais que os outros.
Em 1º de janeiro de 1999, a moeda única foi lançada
com o valor de US$ 1,1789. Na época, o entusiasmo com a internet e a “nova
economia” estimulou o crescimento norte-americano. Preocupado em evitar o
superaquecimento e “em assegurar que os preços dos bens e serviços não se
elevem rapidamente e de maneira incontrolada”,7 o Federal
Reserve (Fed), o banco central norte-americano, inflou suas taxas de juros. A
decisão levou à valorização do dólar e, automaticamente, à desvalorização da
moeda única, que perdeu 30% de seu valor em relação ao dólar entre 1999 e 2002.
A degringolada provocou pânico entre os europeus, que esperavam que o euro se
tornasse rapidamente uma moeda de reserva. Eles temiam que um deslizamento como
esse alimentasse a desconfiança em relação ao recém-nascido monetário: uma
divisa cujo valor cai rapidamente não inspira a menor confiança dos
investidores.
Logo após a explosão da “bolha da internet”, em
março de 2000, o Fed quis evitar que os Estados Unidos entrassem em recessão.
Ele cortou suas taxas de juros para facilitar o crédito. Não houve chance para
o Velho Continente, onde a decisão do Fed provocou a reelevação do euro, que
estrangulou a atividade econômica. Em 2004, o primeiro-ministro francês,
Jean-Pierre Raffarin, lamentou um nível do euro “preocupante”, enquanto o
ex-ministro da Economia e das Finanças Dominique Strauss-Kahn, na época
deputado, deplorou que ele fosse “muito forte em relação ao dólar, o que
prejudica o crescimento”.8 A moeda única continuou, no entanto,
sua ascensão, até alcançar um pico de US$ 1,60 em 15 de julho de 2008.
A crise do subprime, que se tornou
evidente no mesmo ano, provocou um repatriamento geral de fortunas em dólares
para os Estados Unidos, considerado o local financeiro mais seguro no meio da
tempestade. O valor do euro caiu então até o lançamento das primeiras medidas
de quantitative easing (relaxamento quantitativo) do Fed. Elas
visavam, em um primeiro momento, lutar contra a crise econômica ligada ao caos
financeiro e, depois, em um segundo, limitar o choque provocado pela pandemia
de Covid-19. De novo, as medidas tomadas pelo Fed para facilitar o crédito e a
atividade econ&o circ;mica nos Estados Unidos diminuíram de maneira
paulatina o valor da moeda norte-americana. Uma vez que o dólar e o euro não
podem voar alto simultaneamente, a queda do dólar leva à alta do euro, o que
complica a luta contra a deflação no Velho Continente.
Desde o início de 2022, a retomada econômica e, em
seguida, as sanções contra a Rússia provocaram uma forte alta dos preços,
principalmente da energia. O Fed reagiu aumentando vigorosamente suas taxas de
juros, pois uma moeda mais forte permite diminuir o impacto da inflação,
reduzindo o custo das importações. Por outro lado, essa alta do dólar faz com
que o Velho Continente tenha um custo adicional, uma vez que suas importações
de petróleo são estipuladas em dólar. O contexto monetário aumenta, então, a
pressão infl acionária na Europa…
Leia
também: China cuida da recuperação e crescimento econômico pós-desaceleração
pela Covid https://bit.ly/3F5PVws
Na multiplicidade dos fatores que contribuem para
orientar o euro à alta ou à baixa, um mecanismo exerce um papel de maneira
recorrente: as decisões tomadas pelo banco central norte-americano, em prol da
economia… norte-americana. Costuma-se argumentar que nada impede que as opções
do Fed tenham efeitos benéficos para a zona do euro. Afinal de contas, ao
optarem por aumentar suas taxas de juros como forma de lutar contra a inflação
e deixar o dólar se valorizar, como o Fed faz neste momento, as autoridades norte-americanas
reduzem o custo das exportações europeias para os Estados Unidos. À primeira
vista, uma boa chance para as empresas exportadoras do Velho Continente.
Infelizmente, a política do Fed é acompanhada de uma lei sobre a redução da
inflação (IRA – Inflation Reduction Act), sancionada em 2022: um programa de
subvenções e de reduções fiscais para o “Made in America” que oferece uma
salvaguarda protecionista à produção local. Duplo efeito positivo para os
Estados Unidos, que conseguem lutar contra a inflação sem perder (muito) sua
competitividade. Duplo efeito negativo para a Europa, onde o euro desvaloriza e
agrava a inflação, sem ganho de competividade no mercado norte-americano.
Em todas as etapas, o BCE se encontra em situação
de inferioridade diante do Fed. Além de seu poder de choque único, o banco
central norte-americano se distingue por uma singular agilidade ideológica e
estratégica. Rígida em sua ortodoxia (seu regulamento o impede, por exemplo, de
fixar uma taxa de câmbio) e presa na armadilha das exigências contraditórias de
seus membros (o que é bom para Berlim não é necessariamente bom para Paris), a
instituição de Frankfurt se caracteriza por sua letargia. Desse modo, as
decisões tomadas do outro lado do Atlântico muitas vezes pesam mais do que
aquelas determinadas no Velho Continente.
Nem “muito forte” nem “muito fraco”. Em última
análise, o euro seria, então, muito dependente – um problema que ele
compartilha com a maior parte das moedas do mundo. Acontece que, desde a
Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos impuseram sua moeda como a
“divisa-chave” do sistema monetário internacional (SMI). Como explicam os
economistas Michel Aglietta, Guo Bai e Camille Macaire, um dispositivo como
esse “só é estável se a hegemonia [for] reconhecida pelos outros países […]
como propiciando mais vantagens devido à integra&cce dil;ão comercial
financeira do que inconvenientes para os países subordinados”.9 O
bom funcionamento do atual SMI dependeria, portanto, da disposição das
autoridades norte-americanas para pilotar o dólar em prol do “interesse
monetário geral”. Ora, jamais isso ocorreu. Ao contrário, Washington incorpora
cada vez mais vigorosamente o dólar em seus combates geopolíticos. “O uso
deliberado do sistema de pagamento internacional em dólares para bloquear as
transações privadas concernentes a países aos quais os Estados Unidos querem
aplicar sanções simplesmente confirma a instrumentalização do dólar como meio
de dominação política”,10 explicaram Aglietta e seus coautores
antes mesmo de a Rússia invadir a Ucrânia.
Entretanto, o poder usa e abusa disso. E,
paradoxalmente, as sanções contra Moscou tendem a enfraquecer o sistema de
dominação que as possibilita. “Desde fevereiro de 2022, o maior exportador de
matérias-primas do mundo (a Rússia) e o maior importador de matérias-primas do
mundo (a China) passaram do dólar para o renminbi [yuan chinês]”, explica o
pesquisador Louis-Vincent Gave,11 que duvida que haja uma
marcha a ré nesse terreno.
Um grande número de países emergentes defende,
desde 2008, uma mudança orquestrada em torno de uma moeda internacional,
semelhante ao bancor projetado pelo economista John Maynard Keynes, no início
da década de 1940. Pequim desenvolve seu renminbi na Ásia. Do ponto de vista
latino-americano, há muito tempo os progressistas contemplam a criação de uma
moeda internacional capaz de contribuir para a emancipação da região.
Essa ideia voltou a ser evocada por Luiz Inácio
Lula da Silva em um discurso proferido em 2 de maio de 2022: “Vamos criar, na
Am&eacut e;rica Latina, uma moeda denominada sur [que, em espanhol,
significa sul], para combater nossa dependência em relação ao dólar”. No mesmo
ano, ele foi eleito presidente da mais importante potência latino-americana. Em
todo o planeta, explica o economista Dominique Plihon, “assistimos a um duplo
movimento de regionalização e multipolarização do sistema monetário
internacional que poderá levar a uma ‘guerra das moedas’”.12
Em toda parte, o poder político ligado à posição
dominante do dólar tem sido colocado em questão, mesmo que nenhuma nova
“divisa-chave” pareça em condições de emergir. Em toda parte, tem-se estudado
um meio de resistir a essa hegemonia, identificada como disfuncional no plano
econômico. Em toda parte, exceto na Europa, onde os Calimeros se contentam em
considerar que, decididamente, o mundo é “realmente muito injusto”.
*Renaud Lambert é jornalista do Le
Monde Diplomatique.
O mundo gira. Saiba mais https://bit.ly/3Ye45TD
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