03 janeiro 2023

O euro na cena mundial

O euro, muito forte, muito fraco ou muito dependente?

A mídia tradicional sempre vê a economia pelo ângulo da meteorologia: uma sucessão de fenômenos cujas causas não adiantaria determinar. É o que acontece com o valor das moedas, que passaria por períodos de mau tempo, seguidos de calmarias e até mesmo de raios de sol. No entanto, uma delas se distingue pelo acúmulo contínuo de nuvens: o euro
Renaud Lambert, Le Monde Diplomatique


As autoridades monetárias europeias às vezes lembram Calimero, o herói de um desenho animado criado nos anos 1960. Ao longo dos episódios, o pintinho preto que tinha no alto da cabeça a metade de uma casca de ovo se debatia contra um mundo que julgava hostil. “É realmente muito injusto!”, concluía sistematicamente, com erros de pronúncia e lágrima nos olhos.

O que há alguns meses parece “muito injusto” aos imitadores europeus do personagem? A degringolada da moeda única diante das divisas internacionais, principalmente o dólar. Enquanto, em agosto de 2020, 1 euro valia US$ 1,20, em setembro de 2022 com 1 euro já não se comprava mais nem sequer US$ 1. Consequência: os preços dos produtos e das matérias-primas estipulados na moeda norte-americana, como o petróleo, aumentam rapidamente e de forma descontrolada no Velho Continente. “Muito fraco”, o euro ameaça a economia europeia, “complicando a luta contra a inflação”, como se mostra preocupado o presidente do Banco da França, François Villeroy de Galhau.1

Alguns anos antes, o tesoureiro francês já soava o alarme, mas pelo motivo inverso: o euro se mostrava na ocasião… “muito forte”. “O desenvolvimento recente da taxa de câmbio é uma fonte de incertez a,2 observou Villeroy de Galhau em 2018, quando a moeda única chegou a valer US$ 1,22. Como explicou Philippe Waechter, diretor de pesquisa econômica da Natixis Asset Management, por ocasião de uma explosão anterior da moeda única, um nível como esse “corrói os esforços que os países europeus tentam realizar para se tornarem mais competitivos”.3

Em síntese: “O euro forte preocupa o BCE [Banco Central Europeu]”,4 explicou em 2020 a Agefi, uma publicação especializada no setor financeiro. Dois anos depois, tudo mudou, mas tudo também continua sempre mal: “O euro fraco complica […] a missão do BCE”,5 de acordo com o jornal especializado em economia Les Échos. Em outras palavras, por um lado, o Velho Continente perde: o euro muito forte reduz a competitividade das empresas. Por outro, ele perde também: o euro muito fraco reduz o poder de compra da populaçã o e fomenta a alta de preços… Como explicar essa situação estranha, em que a moeda europeia parece condenada a suscitar a insatisfação?

Desde meados dos anos 1970 e o fim do sistema de Bretton Woods6 que controlava as paridades entre moedas, a maior parte das divisas “flutuam”: o curso de cada uma evolui em relação às outras. Essas flutuações decorrem de uma multiplicidade de fatores ligados à conjuntura, às previsões dos mercados financeiros sobre a saúde de um ou outro espaço econômico, assim como às decisões dos diferentes bancos centrais do planeta concernentes às taxas de juros. Assim, taxas de juros elevadas – que oferecem uma remuneraç&a tilde;o mais significativa aos investidores – tendem a suscitar um afluxo de capitais e, portanto, uma valorização da moeda. De maneira inversa, uma redução das taxas de juros leva, em geral, os detentores de capitais a buscar rendimentos mais generosos em outros lugares – um fenômeno que exerce influência na desvalorização da moeda. Entretanto, no meio dessa miríade de fatores, um mecanismo importa mais que os outros.

Em 1º de janeiro de 1999, a moeda única foi lançada com o valor de US$ 1,1789. Na época, o entusiasmo com a internet e a “nova economia” estimulou o crescimento norte-americano. Preocupado em evitar o superaquecimento e “em assegurar que os preços dos bens e serviços não se elevem rapidamente e de maneira incontrolada”,7 o Federal Reserve (Fed), o banco central norte-americano, inflou suas taxas de juros. A decisão levou à valorização do dólar e, automaticamente, à desvalorização da moeda única, que perdeu 30% de seu valor em relação ao dólar entre 1999 e 2002. A degringolada provocou pânico entre os europeus, que esperavam que o euro se tornasse rapidamente uma moeda de reserva. Eles temiam que um deslizamento como esse alimentasse a desconfiança em relação ao recém-nascido monetário: uma divisa cujo valor cai rapidamente não inspira a menor confiança dos investidores.

Logo após a explosão da “bolha da internet”, em março de 2000, o Fed quis evitar que os Estados Unidos entrassem em recessão. Ele cortou suas taxas de juros para facilitar o crédito. Não houve chance para o Velho Continente, onde a decisão do Fed provocou a reelevação do euro, que estrangulou a atividade econômica. Em 2004, o primeiro-ministro francês, Jean-Pierre Raffarin, lamentou um nível do euro “preocupante”, enquanto o ex-ministro da Economia e das Finanças Dominique Strauss-Kahn, na época deputado, deplorou que ele fosse “muito forte em relação ao dólar, o que prejudica o crescimento”.8 A moeda única continuou, no entanto, sua ascensão, até alcançar um pico de US$ 1,60 em 15 de julho de 2008.

A crise do subprime, que se tornou evidente no mesmo ano, provocou um repatriamento geral de fortunas em dólares para os Estados Unidos, considerado o local financeiro mais seguro no meio da tempestade. O valor do euro caiu então até o lançamento das primeiras medidas de quantitative easing (relaxamento quantitativo) do Fed. Elas visavam, em um primeiro momento, lutar contra a crise econômica ligada ao caos financeiro e, depois, em um segundo, limitar o choque provocado pela pandemia de Covid-19. De novo, as medidas tomadas pelo Fed para facilitar o crédito e a atividade econ&o circ;mica nos Estados Unidos diminuíram de maneira paulatina o valor da moeda norte-americana. Uma vez que o dólar e o euro não podem voar alto simultaneamente, a queda do dólar leva à alta do euro, o que complica a luta contra a deflação no Velho Continente.

Desde o início de 2022, a retomada econômica e, em seguida, as sanções contra a Rússia provocaram uma forte alta dos preços, principalmente da energia. O Fed reagiu aumentando vigorosamente suas taxas de juros, pois uma moeda mais forte permite diminuir o impacto da inflação, reduzindo o custo das importações. Por outro lado, essa alta do dólar faz com que o Velho Continente tenha um custo adicional, uma vez que suas importações de petróleo são estipuladas em dólar. O contexto monetário aumenta, então, a pressão infl acionária na Europa…

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Na multiplicidade dos fatores que contribuem para orientar o euro à alta ou à baixa, um mecanismo exerce um papel de maneira recorrente: as decisões tomadas pelo banco central norte-americano, em prol da economia… norte-americana. Costuma-se argumentar que nada impede que as opções do Fed tenham efeitos benéficos para a zona do euro. Afinal de contas, ao optarem por aumentar suas taxas de juros como forma de lutar contra a inflação e deixar o dólar se valorizar, como o Fed faz neste momento, as autoridades norte-americanas reduzem o custo das exportações europeias para os Estados Unidos. À primeira vista, uma boa chance para as empresas exportadoras do Velho Continente. Infelizmente, a política do Fed é acompanhada de uma lei sobre a redução da inflação (IRA – Inflation Reduction Act), sancionada em 2022: um programa de subvenções e de reduções fiscais para o “Made in America” que oferece uma salvaguarda protecionista à produção local. Duplo efeito positivo para os Estados Unidos, que conseguem lutar contra a inflação sem perder (muito) sua competitividade. Duplo efeito negativo para a Europa, onde o euro desvaloriza e agrava a inflação, sem ganho de competividade no mercado norte-americano.

Em todas as etapas, o BCE se encontra em situação de inferioridade diante do Fed. Além de seu poder de choque único, o banco central norte-americano se distingue por uma singular agilidade ideológica e estratégica. Rígida em sua ortodoxia (seu regulamento o impede, por exemplo, de fixar uma taxa de câmbio) e presa na armadilha das exigências contraditórias de seus membros (o que é bom para Berlim não é necessariamente bom para Paris), a instituição de Frankfurt se caracteriza por sua letargia. Desse modo, as decisões tomadas do outro lado do Atlântico muitas vezes pesam mais do que aquelas determinadas no Velho Continente.

Nem “muito forte” nem “muito fraco”. Em última análise, o euro seria, então, muito dependente – um problema que ele compartilha com a maior parte das moedas do mundo. Acontece que, desde a Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos impuseram sua moeda como a “divisa-chave” do sistema monetário internacional (SMI). Como explicam os economistas Michel Aglietta, Guo Bai e Camille Macaire, um dispositivo como esse “só é estável se a hegemonia [for] reconhecida pelos outros países […] como propiciando mais vantagens devido à integra&cce dil;ão comercial financeira do que inconvenientes para os países subordinados”.9 O bom funcionamento do atual SMI dependeria, portanto, da disposição das autoridades norte-americanas para pilotar o dólar em prol do “interesse monetário geral”. Ora, jamais isso ocorreu. Ao contrário, Washington incorpora cada vez mais vigorosamente o dólar em seus combates geopolíticos. “O uso deliberado do sistema de pagamento internacional em dólares para bloquear as transações privadas concernentes a países aos quais os Estados Unidos querem aplicar sanções simplesmente confirma a instrumentalização do dólar como meio de dominação política”,10 explicaram Aglietta e seus coautores antes mesmo de a Rússia invadir a Ucrânia.

Entretanto, o poder usa e abusa disso. E, paradoxalmente, as sanções contra Moscou tendem a enfraquecer o sistema de dominação que as possibilita. “Desde fevereiro de 2022, o maior exportador de matérias-primas do mundo (a Rússia) e o maior importador de matérias-primas do mundo (a China) passaram do dólar para o renminbi [yuan chinês]”, explica o pesquisador Louis-Vincent Gave,11 que duvida que haja uma marcha a ré nesse terreno.

Um grande número de países emergentes defende, desde 2008, uma mudança orquestrada em torno de uma moeda internacional, semelhante ao bancor projetado pelo economista John Maynard Keynes, no início da década de 1940. Pequim desenvolve seu renminbi na Ásia. Do ponto de vista latino-americano, há muito tempo os progressistas contemplam a criação de uma moeda internacional capaz de contribuir para a emancipação da região.

Essa ideia voltou a ser evocada por Luiz Inácio Lula da Silva em um discurso proferido em 2 de maio de 2022: “Vamos criar, na Am&eacut e;rica Latina, uma moeda denominada sur [que, em espanhol, significa sul], para combater nossa dependência em relação ao dólar”. No mesmo ano, ele foi eleito presidente da mais importante potência latino-americana. Em todo o planeta, explica o economista Dominique Plihon, “assistimos a um duplo movimento de regionalização e multipolarização do sistema monetário internacional que poderá levar a uma ‘guerra das moedas’”.12

Em toda parte, o poder político ligado à posição dominante do dólar tem sido colocado em questão, mesmo que nenhuma nova “divisa-chave” pareça em condições de emergir. Em toda parte, tem-se estudado um meio de resistir a essa hegemonia, identificada como disfuncional no plano econômico. Em toda parte, exceto na Europa, onde os Calimeros se contentam em considerar que, decididamente, o mundo é “realmente muito injusto”.

*Renaud Lambert é jornalista do Le Monde Diplomatique.

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