Por que a pandemia de covid está longe de terminar
No final de outubro de 2022, epidemiologistas
e especialistas em doenças infecciosas de todo o mundo começaram a observar uma
tendência preocupante.
David Cox/BBC Brasil
. Segundo o epidemiologista britânico Adam
Kucharski, estava em andamento uma nova onda de covid-19, que vinha passando
quase despercebida. Os picos alarmantes de mortes e hospitalizações por
covid-19, que todos nós observamos durante os dias sombrios de 2020 e 2021,
foram substituídos por uma implacável sucessão de mortes diárias.
. Vamos tomar um exemplo. No dia 21 de dezembro de
2022, houve 133 mortes relacionadas à covid-19 na Inglaterra, segundo o governo
britânico. Este número pode ser considerado pouco significativo em comparação
com 2020, quando as pessoas morriam aos milhares devido ao vírus. Na mesma
semana, 2.919 pessoas morreram de covid-19 nos Estados Unidos. Mas, como
salientou Kucharski, mesmo os baixos índices de mortes podem acumular-se ao longo
do tempo, até atingirem um número surpreendente, às vezes assustador.
. O mesmo banco de dados indica que, em todo o ano
de 2022, 46.099 pessoas morreram de covid-19 na Inglaterra. O número está
abaixo das 75.240 mortes ocorridas em 2020 ou das 74.558 mortes de 2021, mas
ainda é mais do que a maioria de nós poderia esperar.
. Em termos de comparação, durante uma temporada de
influenza particularmente forte, cerca de 30 mil pessoas podem morrer de gripe
e pneumonia em todo o Reino Unido.
. É muito difícil comparar os dados de diferentes
países ao longo dos anos em nível global. Os meios e critérios de determinação
do que conta como morte por covid vêm variando muito. Mas a OMS reúne os
números de mortes por covid informados por cada país, individualmente. Estes
dados podem dar uma ideia da escala da pandemia.
. Em 2022, pouco mais de 1,215 milhão de mortes de
covid foram relatadas em todo o mundo. É muito menos que os 3,505 milhões
registrados no ano anterior, mas ainda é um número de mortes enorme e com boas
possibilidades de ser significativamente subestimado com relação ao índice
real.
. Ainda assim, em muitos corredores do poder – e
até em redações jornalísticas – de todo o mundo, essas mortes contínuas
raramente são mencionadas em comparação com as inúmeras outras crises que estão
acontecendo, como as guerras pelo mundo, o custo de vida e as contas de
energia. Mas, em todo o planeta, a covid-19 permanece presente.
‘Fadiga do coronavírus’
. Os cientistas admitem que provavelmente seria
necessário acontecer algo drástico, como o impacto de uma nova supervariante,
para que isso viesse a mudar. Ou, como diz Kucharski, ficamos tão concentrados
no pico da curva das mortes relativas à covid que acabamos menosprezando o
lento crescimento do número de mortes e como ele ainda pode acumular-se até
somar um índice muito significativo.
. "Vimos isso com a variante delta em
2021", afirma Kucharski. "Não foi um pico muito forte, mas foi muito
mais longo. Com isso, o número total de hospitalizações ficou muito próximo de
2020. Elas apenas foram distribuídas por um período de tempo muito mais longo,
já que o vírus não estava contagiando a população da mesma forma."
. A mesma tendência foi observada nos Estados
Unidos. Cerca de 2 mil a 3 mil americanos ainda morrem de covid-19 todas as
semanas. O epidemiologista William Hanage, da Universidade Harvard (EUA),
afirma que escreveu aos repórteres de um grande órgão de imprensa em julho de
2022, informando que, se o número semanal de mortes daquela época fosse
extrapolado para um ano inteiro, seria equivalente a três temporadas de gripe
particularmente devastadoras. Mas este tipo de notícia não chega mais às
manchetes com a mesma rapidez.
. "Os números realmente são muito altos",
afirma Hanage. "Mas uma das coisas que acontecem com os seres humanos é
que aquilo que é constante acaba se tornando parte do dia a dia."
. "Nós realmente prestamos atenção quando
existem picos muito altos", afirma Denis Nash, epidemiologista da
Universidade da Cidade de Nova York, nos Estados Unidos. "Com isso,
criou-se uma situação em que as pessoas agora prestam menos atenção ao que está
acontecendo, a não ser que exista algo grande refletido nos dados. Mas, quando
você começa a olhar ao longo do tempo, realmente é assustador ver quantas
mortes ainda estão acontecendo hoje."
. Para Nash e outros pesquisadores, uma das
frustrações é saber que muitas das mortes poderiam ter sido facilmente
evitadas.
Hesitação sobre vacinas e reforços
. Por trás dos inúmeros gráficos e ilustrações nos
websites dos governos, é surpreendentemente difícil penetrar nos números para
entender completamente quem ainda está morrendo de covid-19.
. A única forma de realmente definir a narrativa
dessas mortes é conversar com os médicos na linha de frente dos hospitais.
Segundo William Schaffner, professor de doenças infecciosas do Centro Médico da
Universidade Vanderbilt, em Nashville, no Tennessee (Estados Unidos), as mortes
ainda tendem a concentrar-se no mesmo grupo mais vulnerável desde os primeiros
dias da pandemia.
. "As pessoas que estamos vendo hospitalizadas
normalmente são idosos ou pessoas mais jovens que são imunocomprometidas,
devido a alguma doença ou remédio que suprime o seu sistema imunológico",
afirma Schaffner. "São muitos grupos de alto risco."
. O consultor do Hospital Geral do Norte de
Manchester, no Reino Unido, Andrew Ustianowski, apresenta um quadro similar.
. "As mortes de que me lembro de ter
acompanhado recentemente foram de pessoas com forte imunossupressão ou muito
frágeis, o que causou maior impacto da covid", afirma ele. "Isso nem
sempre significa que elas morreram de covid. Elas podem ter contraído covid no
hospital, mas, na verdade, foi sua doença subjacente que as matou."
. Muitos médicos acreditam que um dos problemas
atuais, que torna esses indivíduos ainda mais vulneráveis, é a lenta
administração das vacinas de reforço, mesmo nos grupos de alto risco.
. As últimas estatísticas demonstram que, ao todo,
26 milhões de indivíduos no Reino Unido podem tomar o reforço, mas apenas a
metade deles já recebeu suas vacinas. Nos Estados Unidos, a demora para tomar o
reforço é ainda mais preocupante. Apenas 29,6% dos norte-americanos com mais de
65 anos de idade receberam a última dose.
. Existem muitas razões que levam a esta tendência,
desde problemas no acesso às vacinas até a hesitação alimentada pelas tensões
políticas e desinformação. E existe também a "apatia da covid", que
deixa os políticos e o público em geral ansiosos para deixar a pandemia para
trás.
. Em setembro de 2022, o presidente dos Estados
Unidos, Joe Biden, chegou a declarar que "a pandemia acabou",
enquanto as mensagens de saúde pública foram ofuscadas por outras questões
emergentes, como a varíola dos macacos, a poliomielite e a tensão sobre os
hospitais, causada pelo acúmulo de dois anos de postergação de cirurgias.
. Mas, embora perder um reforço possa ter pouco
impacto sobre os indivíduos relativamente saudáveis que acumularam imunidade
híbrida de infecções passadas e vacinações, as evidências vêm demonstrando
repetidamente que a proteção induzida pela vacina desaparece com rapidez entre
as pessoas mais vulneráveis.
. Em março de 2022, um estudo demonstrou que a
imunidade cai dramaticamente entre os idosos residentes em casas de repouso
depois de apenas três meses.
. Os cientistas acreditam que governos e
autoridades de saúde pública precisam fazer mais para garantir que as pessoas
em maior risco estejam totalmente conscientes da importância da continuidade
das vacinas.
. "Meu argumento é que o custo contínuo da
covid deveria ser menor do que estamos tolerando", afirma Hanage.
"Podemos certamente reduzi-lo nos Estados Unidos, vacinando melhor as
pessoas."
. “A combinação de falta de atenção política e da
fadiga pandêmica fez com que a sociedade tropeçasse na situação atual. Conheço
pessoas que morreram sem saber que tinham direito a reforços de vacina que
provavelmente teriam salvado suas vidas”, segundo ele.
Proteger os vulneráveis
. Como o impacto atual da covid-19 afeta, ainda
mais desproporcionalmente, os mais vulneráveis, vem se questionando se a
sociedade como um todo deveria fazer mais para protegê-los e encontrar formas
de reduzir o número de mortes atual.
. Se fossem oferecidos reforços de vacina a todas
as faixas etárias e não apenas aos mais vulneráveis, poderia haver diferença na
interrupção da transmissão. Já a distribuição de antivirais como Paxlovid, que
se acredita ter reduzido a mortalidade, poderia ser mais fácil, mais bem
dirigida e disseminada em todo o mundo.
. Existe também o temor de que os anticorpos
monoclonais - proteínas cultivadas em laboratório que suplementam o sistema
imunológico do corpo -, como o Regen-Cov da Regeneron e o coquetel de
anticorpos Evusheld da AstraZeneca, estejam perdendo rapidamente a eficácia
contra as variantes mais novas. Acredita-se que esses anticorpos tenham salvado
a vida de muitas pessoas com sistemas imunológicos comprometidos.
. Como resultado, Hanage afirma que as variantes
emergentes, como a BQ 1.1 (subvariante da ômicron), embora possam ter pouco
impacto em nível populacional, provavelmente contribuirão para a estabilidade
do número atual de mortes entre os mais vulneráveis.
. “Parece muito claro que as terapias com
anticorpos monoclonais para as pessoas que delas necessitam serão menos
eficazes”, afirma ele. “Isso significa que algumas das pessoas mais vulneráveis
poderão ter mais dificuldades para enfrentar infecções pelos vírus que iremos
encontrar neste inverno. Mas, como elas são uma minoria, acho que,
infelizmente, nossa tendência é de menosprezá-las.”
Até que ponto a variante XBB.1.5 é preocupante?
. Em outubro de 2022, cientistas descobriram uma
nova variante da covid-19 em circulação em Nova York, nos Estados Unidos. Ela
recebeu o nome de XBB.1.5 e vem sendo descrita em alguns lugares como a
"bisneta da ômicron".
Acredita-se que o vírus tenha se formado quando
duas sublinhagens da ômicron infectaram a mesma pessoa e trocaram alguns dos
seus genes, de forma a produzir versões ainda mais infecciosas.
. Desde a sua identificação pela primeira vez,
o avanço da XBB.1.5 foi rápido.
No início de janeiro de 2023, ela já havia se espalhado para 28 países. Nos
Estados Unidos, ela superou dezenas de outras variantes, até tornar-se uma das
mais dominantes, representando cerca de 28% dos casos.
. Até o momento, a nova variante não parece ser
mais letal do que suas concorrentes, mas os cientistas receiam que ela possa
continuar a se espalhar em todo o mundo.
Acompanhamento contínuo
. As desigualdades originais da
pandemia, de muitas formas, só cresceram ao longo da sua progressão. Cientistas
afirmam que existem medidas que podemos tentar para estancar as traiçoeiras
mortes atuais pelo vírus.
Mas todas essas medidas precisam de um grau de
disposição da sociedade a fazer sacrifícios, que vão desde usar máscaras no
transporte público para romper cadeias de transmissão até aumentar a ventilação
dos edifícios.
. Os epidemiologistas alertam que, se formos
complacentes demais para continuar a compreender quem está morrendo pelo vírus
e por quê, provavelmente estaremos despreparados se a tendência atual se
alterar.
. "A cada poucos meses, estamos vendo os
esforços e o dinheiro sendo aplicados neste tipo de coleta de dados diminuírem",
afirma a epidemiologista Emma Hodcroft, do Instituto de Medicina Preventiva e
Social da Universidade de Berna, na Suíça. "Para mim, a questão sempre é
como ter certeza de que temos dados suficientes para que, se houver uma
mudança, possamos realmente observá-la. E fazer recomendações, advertências ou
o que quer que precise ser feito."
. Ao mesmo tempo, os médicos afirmam que, embora
todas as mortes sejam trágicas, é preciso ter um grau de pragmatismo quando o
assunto é o impacto da covid-19.
. Ustianowski destaca que muitos sistemas de
assistência médica em todo o mundo possuem recursos limitados. E, embora todas
as mortes atuais pelo vírus pudessem ter sido completamente evitadas se vacinas
ou antivirais houvessem sido administrados a tempo, o mesmo também vale para
muitas mortes por doenças cardíacas, meningite ou outras doenças crônicas.
. "Temos intervenções que podem evitar que a
saúde das pessoas se deteriore", afirma ele. "Estamos atingindo todas
as pessoas que precisamos? .
. Não, nem de longe. Existe ainda espaço para melhorar com as intervenções?
Sim. Mas você nunca terá uma situação perfeita e este é o panorama em todas as
áreas do sistema de saúde."
. "Se pudéssemos intervir nas pessoas que
fumam com 30 anos de idade, teríamos menos câncer do pulmão e menos doenças
cardíacas mais tarde. Por isso, é preciso também ter um pouco de realismo nesta
questão", conclui Ustianowski.
O mundo gira. Saiba mais https://bit.ly/3Ye45TD
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