23 fevereiro 2023

Atualização ou censura póstuma?

A polêmica decisão de reescrever trechos de livros de autor da 'Fantástica Fábrica de Chocolate'

Ian Youngs e Paul Glynn/BBC

 

A editora britânica que edita os livros do autor infantil Roald Dahl (1916-1990) decidiu remover conteúdo que considera ofensivo dos livros do escritor que estão sendo relançados agora.
Nas novas edições dos livros — inclusive no clássico A Fantástica Fábrica de Chocolate —, as referências a gênero, aparência e peso dos personagens foram apagadas ou modificadas.
Os curadores e editores de Dahl disseram que os romances foram atualizados para melhor atender o público moderno. Os livros são editados pela Puffin Books, do grupo Penguin Random House.
Parte da opinião pública mostrou concordar com as mudanças, mas muitos se manifestaram contra, incluindo o primeiro-ministro do Reino Unido, Rishi Sunak.
O porta-voz de Sunak afirmou que as obras de ficção devem ser "preservadas, e não retocadas".
Tomando emprestada uma palavra que Dahl, o porta-voz do primeiro-ministro disse: "Quando se trata de nossa rica e variada herança literária, o primeiro-ministro concorda com o grande e bem-humorado gigante BFG [personagem da obra O Bom Gigante Amigo] que não devemos 'gobblefunk' (brincar) com as palavras".
No Brasil, algo semelhante aconteceu em 2020 com os livros infantis do autor Monteiro Lobato (1882-1948), criador do Sítio do Picapau Amarelo. Diversos termos considerados racistas foram retirados de seus livros, em uma revisão conduzida pela bisneta do autor.

'Censura'

O escritor Salman Rushdie também criticou a mudança.
"Roald Dahl não era um anjo, mas isso é uma censura absurda", postou o autor de Os Versos Satânicos em seu Twitter.
"A Puffin Books e os responsáveis ​​pelo legado de Dahl deveriam se envergonhar."
A Roald Dahl Story Company afirmou que as mudanças que surgiram do processo de revisão — iniciado em 2020 — foram "pequenas e cuidadosamente analisadas".
O autor Philip Pullman disse à BBC que seria melhor deixar os livros de Dahl "desaparecerem" do que reescrevê-los se eles hoje são considerados ofensivos.
"Se Dahl é ofensivo, parem de publicá-lo",opinou Pullman. "Leiam todos os outros autores maravilhosos que estão escrevendo hoje em dia e que não recebem tanta atenção por causa do enorme peso comercial de autores como Roald Dahl."
Mas a poetisa e autora indiano-britânica Debjani Chatterjee discorda. Ela acha "uma coisa muito boa que os editores estejam revisando seu trabalho".
"Acho que foi feito com bastante sensibilidade", disse à BBC.
Ela deu como exemplo a mudança da palavra “gordo” para “enorme” nos textos. Segundo ela, o novo termo “está ainda mais divertido”.

O que mudou?

  • O personagem Augustus Gloop, de A Fantástica Fábrica de Chocolate, agora é descrito como "enorme". A palavra "fat" (gordo) foi retirada de todos os livros, segundo o jornal britânico The Telegraph.
  • A Senhora Twit, dos Twits, não é mais "feia e bestial" ("ugly and bestial"), mas simplesmente "bestial".
  • No mesmo livro, "uma estranha língua africana" (weird) não é mais listada como estranha.
  • As palavras "louco" e "desequilibrado" também foram retiradas por causa da preocupação com saúde mental, segundo o jornal.
  • Uma ameaça de "acabar com ela" (knock her flat) em Matilda foi trocada por "dar uma dura reprimenda" (give her a right talking to).
  • As referências às cores também foram alteradas: o casaco no livro The BFG não é mais preto; e Mary agora permanece "imóvel como uma estátua" em vez de "branca como um lençol".

Homenagem ou mudança de espírito?

"Não há razão para BFG não ter uma capa preta. Isso parece absurdo para mim", afirmou o autor de livros infantis John Dougherty à BBC.
"No caso de Augustus Gloop, por exemplo, o ponto principal do personagem é que ele está muito acima do peso porque não para de comer, é um glutão."
"Pode​​haver um argumento de que no mundo de hoje isso é ofensivo", pontua Dougherty.
"Acho que se você decidir que é assim, a única solução é tirar o livro de circulação. Não acho que você pode dizer 'vamos mudar as palavras de Dahl, mas manter o personagem'."
Kate Clanchy, uma ex-professora que revisou suas próprias memórias depois de ser criticada por alguns trechos, disse que os livros infantis devem ser tratados com cuidado especial.
"Augustus Gloop é um personagem ganancioso. Ele continuará sendo moralmente ganancioso e sua ganância moral estará errada, quer tenhamos ou não muitas referências de como ele é gordo, o que eu acho que pode ser irritante."
"Sempre atualizamos os livros infantis. É uma homenagem à maneira como esses livros estão se tornando clássicos... que os adaptamos novamente."
Laura Hackett, vice-editora literária do jornal The Sunday Times, disse que continuará a ler os originais dos livros de Dahl para seus filhos em "toda a sua glória completa, desagradável e colorida".
“Acho que a malícia é o que torna Dahl tão divertido. Você adora quando, em Matilda, Bruce Bogtrotter é forçado a comer o bolo de chocolate inteiro para não ficar preso no Chokey [um dispositivo de tortura]. É isso que as crianças adoram."
"E remover todas as referências a violência ou qualquer coisa que não seja limpa, agradável e amigável é remover o espírito dessas histórias."

'Para que crianças de hoje gostem'

Os livros foram modificados após serem revisados ​​por leitores orientados a buscar conteúdo potencialmente ofensivo nas obras.
A empresa que administra o legado do autor, a Roald Dahl Story Company, trabalhou com as editoras Puffin e Inclusive Minds, coletivo que trabalha pela inclusão e acessibilidade na literatura infantil.
Um porta-voz da The Roald Dahl Story Company afirmou que queria "garantir que todas as crianças continuem a desfrutar das maravilhosas histórias e personagens de Roald Dahl".
"Ao se publicar novas tiragens de livros escritos anos atrás, não é incomum revisar a linguagem junto com outros detalhes, como a capa e o layout da página", disse ele.
“Nosso princípio norteador em todos os momentos tem sido preservar as histórias, os personagens e a irreverência e o espírito incisivo do texto original”, acrescentou.
Dahl, que morreu aos 74 anos em 1990, continua sendo um dos autores infantis mais populares do Reino Unido. Em 2021, a Netflix comprou os direitos de suas obras.
Comentários antissemitas que ele fez ao longo de sua vida o tornaram uma figura problemática nos dias de hoje.
Em 2020, sua família se desculpou publicamente pela "dor duradoura e compreensível causada pelas declarações antissemitas de Roald Dahl".
Quando uma livraria fecha a cultura perde 
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