A
polêmica decisão de reescrever trechos de livros de autor da 'Fantástica
Fábrica de Chocolate'
Ian Youngs e Paul Glynn/BBC
A editora britânica que edita os livros do autor infantil
Roald Dahl (1916-1990) decidiu remover conteúdo que considera ofensivo dos
livros do escritor que estão sendo relançados agora.
Nas novas edições dos livros — inclusive no
clássico A Fantástica
Fábrica de Chocolate —, as referências a gênero, aparência e peso dos
personagens foram apagadas ou modificadas.
Os curadores e editores de Dahl disseram que os
romances foram atualizados para melhor atender o público moderno. Os livros são
editados pela Puffin Books, do grupo Penguin Random House.
Parte da opinião pública mostrou concordar com as
mudanças, mas muitos se manifestaram contra, incluindo o primeiro-ministro do
Reino Unido, Rishi Sunak.
O
porta-voz de Sunak afirmou que as obras de ficção devem ser "preservadas,
e não retocadas".
Tomando emprestada uma palavra que Dahl,
o porta-voz do primeiro-ministro disse: "Quando se trata de nossa rica e
variada herança literária, o primeiro-ministro concorda com o grande e
bem-humorado gigante BFG [personagem da obra O Bom Gigante Amigo] que não devemos 'gobblefunk'
(brincar) com as palavras".
No Brasil, algo semelhante aconteceu em 2020 com
os livros infantis do autor Monteiro Lobato (1882-1948), criador do Sítio do
Picapau Amarelo. Diversos termos considerados racistas foram retirados de seus
livros, em uma revisão conduzida pela bisneta do autor.
'Censura'
O escritor Salman Rushdie também criticou a
mudança.
"Roald Dahl não era um anjo, mas isso é uma
censura absurda", postou o autor de Os Versos Satânicos em seu Twitter.
"A Puffin Books e os responsáveis pelo
legado de Dahl deveriam se envergonhar."
A
Roald Dahl Story Company afirmou que as mudanças que surgiram do processo de
revisão — iniciado em 2020 — foram "pequenas e cuidadosamente
analisadas".
O autor Philip Pullman disse à BBC que seria
melhor deixar os livros de Dahl "desaparecerem" do que reescrevê-los
se eles hoje são considerados ofensivos.
"Se Dahl é ofensivo, parem de
publicá-lo",opinou Pullman. "Leiam todos os outros autores
maravilhosos que estão escrevendo hoje em dia e que não recebem tanta atenção
por causa do enorme peso comercial de autores como Roald Dahl."
Mas a poetisa e autora indiano-britânica Debjani
Chatterjee discorda. Ela acha "uma coisa muito boa que os editores estejam
revisando seu trabalho".
"Acho que foi feito com bastante
sensibilidade", disse à BBC.
Ela deu como exemplo a mudança da palavra “gordo”
para “enorme” nos textos. Segundo ela, o novo termo “está ainda mais divertido”.
O que mudou?
- O personagem Augustus Gloop, de A Fantástica Fábrica de
Chocolate, agora é descrito como "enorme". A palavra
"fat" (gordo) foi retirada de todos os livros, segundo o jornal
britânico The Telegraph.
- A Senhora Twit, dos Twits, não é mais
"feia e bestial" ("ugly and bestial"), mas
simplesmente "bestial".
- No mesmo livro, "uma estranha
língua africana" (weird) não é mais listada como estranha.
- As palavras "louco" e
"desequilibrado" também foram retiradas por causa da preocupação
com saúde mental, segundo o jornal.
- Uma ameaça de "acabar com ela"
(knock her flat) em Matilda foi
trocada por "dar uma dura reprimenda" (give her a right talking to).
- As referências às cores também foram
alteradas: o casaco no livro The BFG não é mais preto; e Mary agora
permanece "imóvel como uma estátua" em vez de "branca como
um lençol".
Homenagem
ou mudança de espírito?
"Não há razão para BFG não ter uma capa
preta. Isso parece absurdo para mim", afirmou o autor de livros infantis
John Dougherty à BBC.
"No caso de Augustus Gloop, por exemplo, o
ponto principal do personagem é que ele está muito acima do peso porque não
para de comer, é um glutão."
"Podehaver um argumento de que no mundo de
hoje isso é ofensivo", pontua Dougherty.
"Acho que se você decidir que é assim, a
única solução é tirar o livro de circulação. Não acho que você pode dizer
'vamos mudar as palavras de Dahl, mas manter o personagem'."
Kate Clanchy, uma ex-professora que revisou suas
próprias memórias depois de ser criticada por alguns trechos, disse que os
livros infantis devem ser tratados com cuidado especial.
"Augustus Gloop é um personagem ganancioso.
Ele continuará sendo moralmente ganancioso e sua ganância moral estará errada,
quer tenhamos ou não muitas referências de como ele é gordo, o que eu acho que
pode ser irritante."
"Sempre atualizamos os livros infantis. É uma
homenagem à maneira como esses livros estão se tornando clássicos... que os
adaptamos novamente."
Laura Hackett, vice-editora literária do jornal
The Sunday Times, disse que continuará a ler os originais dos livros de Dahl
para seus filhos em "toda a sua glória completa, desagradável e
colorida".
“Acho que a malícia é o que torna Dahl tão
divertido. Você adora quando, em Matilda, Bruce Bogtrotter é forçado a comer o bolo de chocolate
inteiro para não ficar preso no Chokey [um dispositivo de tortura]. É isso que
as crianças adoram."
"E remover todas as referências a violência
ou qualquer coisa que não seja limpa, agradável e amigável é remover o espírito
dessas histórias."
'Para
que crianças de hoje gostem'
Os livros foram modificados após serem revisados
por leitores orientados a buscar conteúdo potencialmente ofensivo nas obras.
A empresa que administra o legado do autor, a
Roald Dahl Story Company, trabalhou com as editoras Puffin e Inclusive Minds,
coletivo que trabalha pela inclusão e acessibilidade na literatura infantil.
Um porta-voz da The Roald Dahl Story Company
afirmou que queria "garantir que todas as crianças continuem a desfrutar
das maravilhosas histórias e personagens de Roald Dahl".
"Ao se publicar novas tiragens de livros
escritos anos atrás, não é incomum revisar a linguagem junto com outros
detalhes, como a capa e o layout da página", disse ele.
“Nosso princípio norteador em todos os momentos
tem sido preservar as histórias, os personagens e a irreverência e o espírito
incisivo do texto original”, acrescentou.
Dahl, que morreu aos 74 anos em 1990, continua
sendo um dos autores infantis mais populares do Reino Unido. Em 2021, a Netflix
comprou os direitos de suas obras.
Comentários antissemitas que ele fez ao longo de
sua vida o tornaram uma figura problemática nos dias de hoje.
Em 2020, sua família se desculpou publicamente
pela "dor duradoura e compreensível causada pelas declarações antissemitas
de Roald Dahl".
Quando
uma livraria fecha a cultura perde https://bit.ly/3k5Fdy3
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