14 fevereiro 2023

Catadores necessários

Por que o catador é tão importante para a Política Nacional de Resíduos Sólidos?

A especialista em gestão ambiental, Inamara Melo, explica a importância do fenômeno do catador no Brasil e sua relação com o setor privado
Cézar Xavier/Vermelho www.vermelho.org.br

 

O presidente Luis Inácio Lula da Silva trata a categoria dos catadores de materiais recicláveis, ou agentes ambientais, como um símbolo de seu governo. São cerca de 800 mil mulheres e homens, segundo o Movimento Nacional de Catadores de recicláveis (MNCR), que saem coletando resíduos descartados pelas cidades, e comumente são tratados como uma categoria menor da cadeia produtiva. Não no governo de Lula, que sinaliza o contrário.

Mas o que torna o catador de materiais recicláveis, com suas carrocinhas cheias de papelão, lata e vidro, tão especiais? O Portal Vermelho conversou com Inamara Melo, especialista em gestão ambiental (IFPE) que deu a dimensão exata deste fenômeno típico de países em desenvolvimento.

Para ela, é “absolutamente necessário” que a política nacional de resíduos sólidos valorize a figura do catador nesta cadeia da logística reversa, tanto como fator de geração de emprego e renda, como ambiental. A logística reversa é aquela que prevê o que a indústria vai fazer para retornar suas embalagens de produtos à origem, para que não sejam descartadas e possam ser reaproveitadas, evitando explorar os recursos naturais esgotáveis.

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A ex-secretária de Meio Ambiente de Recife e de Pernambuco conta que esta é uma política que vinha sendo construída, desde os primeiros governos de Lula, com ações importantes dos bancos públicos, financiamento de programas, política estruturada que apoiava e ajudava essa categoria, assim como o sistema de gerenciamento de resíduos sólidos pelo país. “Nos últimos anos, toda essa política foi praticamente destruída com o fim do financiamento e da valorização, desorganizando a categoria”. 


Recicla Menos

Inamara ressalta que aconteceram ações e iniciativas no governo Bolsonaro, mas que vislumbravam exclusivamente o lucro e a iniciativa privada, em detrimento da figura do catador e da defesa do meio ambiente. 

“As poucas políticas desenvolvidas e apoiadas pelo governo Bolsonaro tinham a perspectiva de apoiar o setor privado, mas não aquilo que envolvia uma ação social de geração de emprego e distribuição de renda”, enfatiza.

Para ela, este terceiro mandato do presidente Lula tende a corrigir essa lógica. “Os catadores precisam ser reconhecidos como agentes ambientais”, afirmou.

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Incineração

Inamara observa que, em países desenvolvidos, há políticas de geração de energia a partir dos resíduos, com a queima do lixo. Para ela, isso pode ser uma solução em países europeus, com sua regulação meticulosa e rigorosa.

Plantas de resíduos sólidos em Portugal avançaram muito rápido, conta ela. Mas não incluem a figura do catador, o que levava as pessoas em situação de rua a “roubar” o resíduo reciclável dos contêineres, gerando prejuízo para o consórcio. “Só que o número de potenciais catadores era muito menor que aqui”, salienta. 

No Brasil, este modelo que Bolsonaro tentou implantar, de aproveitamento energético a partir dos resíduos sólidos, “coloca na mão de empresas privadas a questão do lucro, despreza a questão social, deixa de entender o resíduo com seu valor social e passa a ser fator de geração de mais desigualdade”.

A incineração, muito atacada pelas cooperativas de catadores, no ano passado, deixa de fazer o reaproveitamento dos resíduos descartados no consumo, aumentando o uso de novos recursos naturais.

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A ambientalista explica que a queima concentra lucro nas mãos de empresas privadas, e amplia a exploração de recursos naturais. Para ser lucrativa, a queima precisa ter uma produção constante de lixo industrial, o que não deixa nada para reciclagem. Também faz com que a indústria volte a explorar ainda mais recursos da natureza, em vez de reciclar o que já está disponível no lixo.

Ela explica que é positivo que algumas plantas de aterros sanitários façam o aproveitamento do metano. Este gás gerado pelo lixo reduz a emissão de gás carbônico na atmosfera e a emissão de gases de efeito estufa. “Entretanto, a solução mais apropriada para redução das emissões, é não permitir que os materiais cheguem aos aterros sanitários”, ressalta. 

No caso do Brasil temos dificuldades. São poucas as plantas que obedecem às normas técnicas que estão licenciadas e funcionam no padrão europeu. “Aqui, a incineração pode causar até um aumento maior de gases de efeito estufa, maior que o lixão”. 

Nem oito, nem oitenta

Inamara explica que Bolsonaro sempre convidou que “quem é da iniciativa privada, venha ganhar dinheiro”. “As obrigações do estado passam a ser fonte de lucro para privados. Esta é a política do Bolsonaro”, afirma. 

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É o que ocorre com a área de saneamento, que vem sendo privatizada, na contramão do mundo desenvolvido que voltou a reestatizar estes serviço, devido à exploração abusiva das empresas. 

A ambientalista cita como exemplo os empréstimos oferecidos pelo BNDES para que empresários entrem em projetos de concessão de parques e unidades de conservação. Em diversos casos se observa que não há investimentos na infraestrutura de preservação dos parques, e depois de lucrar o que pode com a exploração, as empresas devolvem os parques em condições piores que receberam.

“A lógica não é a prestação de serviços, mas a lucratividade. Ele recebe um empréstimo público para ganhar dinheiro com um serviço público. O interesse público é sobreposto pelo interesse econômico”. 

Na área ambiental, o que existia de proposta era com essa finalidade, anulando o lado dos recicladores. Para Inamara, é preciso um equilíbrio entre o modo como o setor privado pode contribuir para esta política, assim como manter o envolvimento virtuoso dos catadores.

“Nem oito, nem oitenta. Não dá pra ficar só na política de fomento aos catadores. Precisa envolver toda a cadeia de logística reversa da indústria de processamento de materiais. O catador é só uma ponta desse processo”, diz ela. O problema da geração de lixo é um drama gigantesco em países como Brasil, que precisa ser atacada com diversificação das abordagens, envolvendo toda a sociedade.

Mas Inamara é enfática em dizer que não dá pra a política ser voltada só para a iniciativa privada. “Precisamos chegar num ponto de equilíbrio em que o resíduo seja entendido pelo seu valor social e toda a cadeia precisa funcionar, como o processo de industrialização e comercialização”. 

A experiência de Recife

Portanto, o foco na iniciativa privada precisa estar voltado a essa questão logística, defende a gestora ambiental, não na substituição do trabalho do catador. O presidente Lula acaba de lançar decreto em que aborda a questão da logística reversa e estimula o envolvimento das empresas de forma mais ativa no processo da reciclagem.

A proposta de envolver a iniciativa privada na queima de resíduos, para gerar energia e lucrar com o lixo, não é a melhor forma de fazer isso, na opinião de Inamara. “A queima de resíduos exclui o catador. Quando você assume uma política dessa, para que ela dê lucro, é preciso entender que quanto mais material incinerado, melhor para a lucratividade. Isso também estimula a indústria a produzir para esse descarte e mais exploração de recursos naturais vai ocorrer”, descreve. 

Assim, é preciso reduzir o uso de matéria prima, pelo aumento da coleta seletiva. “Há quem defenda a coletiva seletiva sem catador. Na Prefeitura do Recife, eu percebi que isso não funciona, quando você contrata uma empresa para fazer a coleta”, relata. 

A figura do catador como um agente ambiental, que define o que interessa e o que não interessa para a reciclagem é fundamental. “Um gari de empresa não faz isso. Ele bota tudo no caminhão e vai chegar no centro de triagem um material supercontaminado”. 

Enquanto os materiais secos (vidro, lata, plástico, papel) devem ser encaminhados para um centro de triagem, o material orgânico pode ir para a compostagem, uma técnica de reaproveitamento de restos de alimento para ajudar na arborização urbana, na agricultura urbana etc. Em vez de comprar adubo, as prefeituras podem produzir através da compostagem.

Desta forma, a cidade de Recife gastava cinco vezes mais com pagamento de caminhões. Vendo a experiência da Prefeitura de Natal, ela percebeu que se pagava muito menos e se fazia muito mais, obtendo resultados muito melhores na coleta seletiva, porque contratavam as organizações de catadores, que faziam o trabalho nas comunidades. “A rentabilidade e produtividade acabava sendo muito maior do que de uma empresa contratada”. 

O gari vai receber o salário dele independente do que fizer. Os catadores lucram conforme a qualidade do trabalho que fazem. “Os catadores cumprem um papel importante de agentes ambientais no processo de coletiva seletiva”.

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