‘Estamos em um estágio diferente, nunca estivemos tão perto de
acabar com a emergência’, diz líder da OMS para a Covid-19
Em
entrevista exclusiva ao GLOBO, Maria Van Kerkhove fala sobre o cenário atual da
pandemia, as expectativas para os próximos meses e a preparação para futuras
crises sanitárias globais
Bernardo Ioneshigue/O Globo
Em março de
2020, em meio ao temor e desconhecimento do início da pandemia, a rotina da
epidemiologista americana Maria Van Kerkhove passou a envolver coletivas quase
que diárias para atualizar o resto do mundo sobre o avanço da Covid-19. Três
anos depois, a crise sanitária pode não ter chegado ao fim, mas a líder técnica
da Organização Mundial da Saúde (OMS) para a doença reconhece que “nunca
estivemos tão perto” do ponto em que o vírus não represente mais uma emergência
mundial.
No Rio de Janeiro
para participar da 6ª Conferência Global de Ciência, Tecnologia e Inovação (G-Stic)
– evento que, em sua primeira vez nas Américas, acontece na Fundação Oswaldo
Cruz (Fiocruz) – Maria falou em entrevista exclusiva ao GLOBO sobre o cenário
atual do vírus, o que falta para a pandemia acabar e as perspectivas para os
próximos meses com a disseminação de subvariantes da Ômicron.
A especialista, que
também chefia a unidade para Doenças Emergentes e Zoonoses da OMS, falou ainda
sobre surtos recentes de outras doenças, como a monkeypox, o ebola e a cólera,
e a preparação para o enfrentamento de novas pandemias – que para ela não é uma
questão de se irá acontecer, mas sim quando e por qual patógeno.
A OMS disse que espera declarar o fim
da emergência da Covid-19 em 2023, mas em avaliação recente decidiu que a
doença ainda representa o nível máximo de alerta da organização. Estamos na
direção certa?
Ainda estamos em uma
pandemia, mas esperamos acabar com a emergência neste ano. Na verdade,
esperávamos ter encerrado no ano passado, mas não utilizamos as ferramentas
disponíveis da maneira mais eficaz em todo o mundo. Mas certamente estamos indo
na direção certa, estamos em uma fase diferente.
Temos ferramentas que
podem salvar vidas, como no atendimento clínico com antivirais e outras
terapias, e com as vacinas, que são seguras e eficazes para prevenir doença
grave e a mortes. Se as pessoas recebem o reforço e doses adicionais, sabemos
que esse nível de proteção permanece muito alto por algum tempo. Então estamos
em um estágio diferente, nunca estivemos tão perto de acabar com a emergência.
Mas ainda temos entre
10 e 40 mil mortes por semana, que ocorrem principalmente entre indivíduos mais
velhos e pessoas que não foram vacinadas completamente. Isso é algo sobre o
qual temos controle.
Acabar com essa
emergência exige um esforço conjunto ao redor do mundo, reconhecendo as
situações diferentes de cada país com base no histórico da pandemia, na
circulação de variantes, nas estratégias que foram implementadas, no nível de
imunidade por infecção e/ou vacinação, na capacidade e agilidade dos países para
usar e ter acesso às ferramentas que salvam vidas. Além de outros fatores, como
emergências simultâneas de saúde, e até mesmo não relacionadas à saúde, como
guerra, deslocamento, inundações, secas.
Nós, como
organização, precisamos acabar com essa emergência em todos os lugares e
estamos caminhando para fazer isso. Mas há mais trabalho a fazer e acho que
essa é a mensagem que queremos transmitir.
Você chegou a dizer que a subvariante
Omicron XBB.1.5, que tem crescido nos países e provocado aumento de casos, é a
versão mais transmissível do vírus até agora. Como espera que essa disseminação
impacte a pandemia nos próximos meses?
Nós temos mais de 600
linhagens conhecidas da Ômicron circulando agora. Muitos países estão vendo que
a XBB.1.5 tem uma vantagem de crescimento em comparação com as outras em
circulação, mas em termos de gravidade ainda não temos um sinal de que seja
mais ou menos severa.
O que esperamos
é continuar a ver ondas de infecção, seja pela XBB.1.5, seja por outras
subvariantes. Esperamos essa evolução do vírus, que outras variantes tenham uma
vantagem de crescimento. Veremos mais escape imune, temos certeza disso. Mas o
que queremos, e temos o plano e controle para isso, é que essas ondas não se
traduzam em hospitalizações e mortes. É nisso que estamos realmente tentando
focar no momento.
Quais são os riscos de novas mutações
que escapem da imunidade prévia ou provoquem quadros mais graves?
A grande preocupação
em torno das variantes e da evolução do vírus Sars-CoV-2 é que não sabemos ao
certo como ele irá evoluir. Há muitas pessoas excelentes trabalhando nisso,
observando as diferentes mutações e as sublinhagens da Ômicron. Corremos o
risco de novas variantes, de esse vírus se espalhar para espécies animais
diferentes que são suscetíveis a ele, sofrer mutações e voltar para os humanos
novamente.
Há muita incerteza.
Faz apenas três anos que lidamos com esse vírus, embora pareça muito mais
tempo. Nosso entendimento ainda é bastante limitado. Por isso, temos que nos
preparar para diferentes tipos de cenários. Não sabemos se haverá uma mudança
na gravidade. Essa é a grande preocupação agora.
Quais medidas são necessárias para que
os países estejam preparados para esses diferentes cenários?
Fortalecer a
vigilância e garantir que tenhamos uma boa estrutura para rastrear variantes
conhecidas e detectar novas. Que tenhamos um bom monitoramento em populações
vulneráveis para identificar uma eventual mudança na gravidade muito
rapidamente.
Precisamos de melhor
acesso a diagnósticos em todo o mundo, aos antivirais, para que esse caminho de
atendimento clínico para Covid possa ser otimizado. Na maioria dos países (o
atendimento clínico) é muito ruim em termos de fornecer aos pacientes os
cuidados de que precisam com a rapidez necessária.
Também precisamos
garantir a vacinação de 100% dos grupos de risco, pessoas com mais de 60 anos,
pessoas imunocomprometidas e trabalhadores da linha de frente. E certificar que
esses grupos recebam um reforço dentro de quatro a seis meses após o último.
E precisamos lidar
massivamente com a desinformação, porque essa circulação está minando as
ferramentas que são eficazes contra a Covid. Todas essas coisas precisam
acontecer, não precisam ser perfeitas, mas precisam estar em um estado muito
melhor para que possamos continuar reduzindo a mortalidade.
O Brasil vai começar agora no fim do
mês a campanha de vacinação com a dose bivalente da vacina da Covid-19 para os
grupos de maior risco. Como a OMS vê o impacto das aplicações bivalentes?
O reforço para os
grupos de risco é extremamente importante agora. Vemos consistentemente em
todos os países populações mais velhas que não completaram a vacinação. Esses
são os indivíduos que estão ficando muito doentes e que estão morrendo.
Aumentar a cobertura dos grupos de risco é de fato uma das principais ações que
precisamos que os governos tomem.
Seja a vacina
bivalente, ou as vacinas originais, nossa mensagem é usar as que estiverem
disponíveis. Elas funcionam. E nos muitos países que não tiveram acesso à
vacina, mas tiveram grandes ondas de infecção, continua sendo também importante
que essas populações recebam todas as doses. Porque essa imunidade híbrida,
pela infecção e vacina, fornece uma proteção mais duradoura e mais forte contra
doenças graves.
Com a queda nos investimentos em
pesquisas sobre a Covid-19, ainda é possível o desenvolvimento de uma vacina
que consiga de fato impedir a transmissão e eliminar o vírus?
Se tivéssemos uma
vacina intranasal que se concentrasse em induzir uma resposta (imunológica) na
mucosa e prevenir a infecção e a transmissão seria uma virada de jogo. Mas não
acho que seja possível agora. Estamos vivendo com esse vírus, não temos
escolha. O vírus não vai embora, ele está circulando e (de forma) completamente
descontrolada. A vigilância diminuiu drasticamente, o número de casos reais
provavelmente é cinco, talvez até 10 vezes maior do que o que realmente está
sendo relatado.
Por isso não podemos
esquecer o lado da pesquisa, e uma vacina intranasal seria uma maneira de
realmente ter um impacto na pandemia. Mas não acho que a eliminação ou
erradicação seja possível agora. Nós estamos vivendo com esse vírus, só
precisamos conviver com ele de forma responsável e com a maior segurança
possível.
Nos últimos três anos tivemos, além da
Covid-19, a monkeypox, um surto de ebola em Uganda e países registrando
recordes de cólera. De que forma esses problemas de saúde estão relacionados e
impactam a resposta à Covid-19?
Os surtos recentes
apenas demonstram o mundo em que vivemos, onde há riscos de patógenos com
potencial epidêmico e pandêmico. O objetivo da preparação para uma pandemia ao
longo dos anos é justamente lidar com o que pode surgir em nosso caminho.
O que fazemos
coletivamente em todo o mundo para a Covid-19 ao fortalecer os sistemas de
saúde é uma resposta para a Covid, mas também é uma preparação para o futuro.
Ao fortalecer laboratórios, sequenciamento genômico, garantir que tenhamos
políticas e leis que protejam as pessoas e permitam que trabalhem em casa,
criar planos nacionais de vacinação, aumentar a produção de vacinas, e de
vários tipos, isso ajuda para Covid, mas também ajuda para gripe, Mpox, cólera.
Tudo isso está
interligado, os governos só precisam estar mais bem preparados. Mas há um
esforço coletivo em todo o mundo de profissionais de saúde pública, da OMS, de
ministérios da saúde e da agricultura em diferentes setores, parcerias públicas
e privadas, para continuar o trabalho porque os riscos de novos surtos não vão
embora.
A pandemia poderia ter sido evitada se
tivéssemos esses esforços em andamento na época?
A pandemia ia
acontecer porque é um vírus novo, que se espalha muito eficientemente entre as
pessoas. Mas não precisava ser tão ruim assim. Não precisávamos de milhões de
mortos, sociedades completamente fechadas, vidas alteradas. Coletivamente,
temos que fazer melhor daqui para frente. E lidar com a Covid-19 agora é se
preparar para o futuro.
Recentemente, a OMS inaugurou um centro
de preparação para futuras pandemias e planeja um acordo global entre os países
com foco em doenças que possam se tornar emergências de saúde. Estamos
preparados para as próximas crises sanitárias?
Estou dividida sobre
isso. Por um lado, há muitos sistemas que foram estruturados para nos preparar
melhor. Quero ter esperança porque estamos discutindo com nossos estados
membros. Temos esse tratado que pode sair, que não tenho todos os detalhes
ainda, porque está sendo discutido, mas é uma promessa. E temos o fundo para
pandemias, coisas que estão mudando para ter melhor governança, melhor
financiamento, melhores sistemas.
Por outro lado,
porque o financiamento da Covid-19 está acabando, é muito difícil manter os
ganhos que tivemos, e isso é preocupante. Neste momento, os sistemas de saúde
estão extremamente frágeis, e muitos países estão desmantelando alguns dos
sistemas que fortaleceram para a Covid-19, o que não é o que queremos. Há
alguns relatórios que sugerem que estamos menos preparados do que antes.
Há tanto trabalho a
fazer, não há descanso. Não há tempo para dar tapinhas nas costas e dizer “bom
trabalho” e sair de férias por seis meses, embora eu daria tudo para fazer isso
(risos). Mas estamos motivados para garantir a continuidade desse trabalho. Em
nosso departamento de prevenção e preparação para epidemias e pandemias da OMS,
estamos trabalhando em diversos planos.
Porque a próxima
pandemia pode ser por doenças respiratórias, por arboviroses que se espalham
por mosquitos (como dengue e zika) por vírus transmitidos por roedores, mas
pode ser por outra coisa. Então precisamos usar essa situação horrível que
vivemos como uma oportunidade para garantir que os governos estejam mais bem
preparados e que todos os elementos estejam prontos para serem ativados quando
for necessário.
O Brasil acumula quase 700 mil mortes
pela Covid-19, uma das maiores proporções por número de habitantes no mundo.
Durante os três anos, foi alvo de preocupação em discursos da OMS e teve
lideranças que desestimularam o uso de máscaras, o distanciamento social e até
a vacinação. Como foi a relação da organização com o Brasil e como você enxerga
essa resposta hoje?
Minha experiência em
lidar com o Brasil, e com os pesquisadores, cientistas e profissionais de saúde
pública do país, tem sido realmente notável ao longo de muitos anos. A posição
que ocupo nesta pandemia é de reunir a experiência e o conhecimento do mundo
para desenvolver orientações baseadas em evidências, e essa colaboração que
tivemos com o Brasil tem sido forte, não importa o quê.
E aqui no Rio,
falando com pesquisadores da Fiocruz e funcionários do ministério e das
secretarias de Saúde, vejo que os sistemas fortalecidos para a Covid-19 não
estão sendo desmantelados, estão sendo ajustados para lidar com a situação
atual e se preparando para outros patógenos que circulam neste país
incrivelmente diverso. Acredito que certamente o Brasil, assim como todos os
países, aprendeu com o tempo.
Mas a mortalidade
aqui de fato tem sido bastante alta. Estive em Manaus em uma das minhas últimas
viagens para cá e foi muito emocionante estar lá, ouvir a equipe do hospital e
como eles lidaram com o surto, o aumento maciço de casos. Quase todo mundo que
conheci em Manaus teve alguém que morreu na família, então é algo pessoal, é
emocionante e acho que estamos carregando isso conosco e usando isso para nos
impulsionar a fazer melhor.
Qual é a mensagem que fica para os brasileiros?
Queremos que as pessoas vivam suas vidas, que as crianças estejam na escola, que as pessoas contribuam para a sociedade. O povo brasileiro é simplesmente incrível, receptivo e amoroso. Estamos na época do pré-carnaval, há uma agitação pelo ar, e eu diria apenas: aproveite a vida, mas tenha o máximo de cuidado possível. Não para atrapalhar nenhuma das festividades, mas a Covid-19 está por aí, ainda temos Mpox (monkeypox), então faça uma avaliação de risco nas atividades e siga em frente.
Em poucas palavras, a
complexidade da vida https://bit.ly/3Ye45TD
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