19 março 2023

Uma crônica de Cícero Belmar

A bandeira do Divino

Cícero Belmar*


A mulher que não pegar no pau da bandeira de São José não casará. É o apelo dessa frase que arrasta, a cada ano, milhares de senhoras e mocinhas para uma procissão que mistura práticas eclesiásticas e festivas em Bodocó, município do Sertão de Pernambuco, a pouco mais de 650 quilômetros do Recife. Por acaso, a cidade onde nasci.

Daqui a três dias, 9 de março, a Procissão do Pau da Bandeira (a Bandeira do Divino) sairá pela centésima vez, abrindo o novenário do padroeiro. A tradição religiosa faz um século, mas essa estratégia de as mulheres acorrerem para pegar no pau da bandeira é coisa de poucas décadas. Para o evento não perder força ao longo dos anos, a população soube ressignificar uma tradição meramente religiosa, estreitando o sentimento de pertencimento com o santo. Hoje, ela é um sucesso de público, alternando devoção e diversão, com predomínio do religioso.

Alguém inventou que a mulher que não fosse à procissão para ajudar a carregar o pau da bandeira, não casaria. Desde então, mulheres não só de Bodocó, mas de diversos municípios da região, disputam o privilégio de  conduzir o pau da bandeira. A ruidosa procissão praticamente dobra, em número, a população local. Esse, não deixa de ser, mais um milagre atribuído ao padroeiro de Bodocó que, para os sertanejos, também é responsável pelas chuvas do inverno.

Sem exageros, o pau da bandeira chega a uns 30 metros de comprimento. E deve pesar na mesma proporção. São toras de madeira, afixadas umas nas pontas das outras, virando um gigantesco mastro. A procissão sai do Sítio Carambolas, a cerca de cinco quilômetros da cidade, mas a mulherada não mede esforços. Elas fazem a buscada num evento que conta com bandas de pífanos, filarmônica, fogos de artifícios, cavaleiros com vestimentas de vaqueiros e carros de som. A família Siqueira Amorim, que mora no sítio, doa o pau da bandeira cumprindo uma promessa do patriarca Zé Puluca.

São José é muito popular no Sertão e está no mesmo patamar de divindade que Nossa Senhora, por ter aceito ser o pai adotivo de Jesus. O afeto dos sertanejos pelo santo é como se fosse um reconhecimento ao esforço de ele ter sido um homem do povo, marceneiro, pai de família pobre, que ralou muito para criar o Filho de Deus. Íntimo do Todo Poderoso, portanto, ele é o responsável pela façanha de fazer chover no Sertão, onde água é ouro líquido. É a chuva quem garante o plantio agora para uma boa safra, fartura e alegria, nos festejos juninos.

Com essa nova atribuição que as moças casamenteiras lhe deram, cabe a São José também arranjar noivos para elas. Pelo sim, pelo não, a mulherada forma uma enorme fila indiana e conduz o mastro da bandeira desde o Sítio Carambolas até a entrada da cidade. A união faz a força e muitas descobrem uma força que nem desconfiavam ter. A brincadeira garante o sucesso da festa e eu desconheço que exista tensão entre a tradição religiosa e a laica. Nunca ouvi dizer que as autoridades religiosas fizessem restrições a essa alegre forma de comemorar o santo.

O padre da diocese vai adiante, acompanhado de milhares de fiéis, cantando hinos religiosos. A procissão é marcada pelos ritos católicos, embora tenha incorporado as práticas festivas. E à frente do padre vai a bandeira do Divino, como se fosse o seu estandarte. Todos os anos é confeccionada uma bandeira nova, por artistas plásticos do Recife. São verdadeiras obras de arte. Quem manda fazê-las é Lisléa Alves Saraiva, minha querida madrinha Léa, que mantém uma tradição dos pais, seu Miguel Roberto e dona Donca.

Na entrada da cidade, o pau da bandeira é entregue aos homens, que o conduz até à frente da Igreja Matriz. Pela devoção e pela alegria, é um festejo bonito. E literário: ao acreditarem que São José faz chover ou casar, os sertanejos vivem na prática, através do catolicismo popular, o realismo mágico. Assim como outras pessoas de qualquer parte do mundo, permitem-se viver uma narrativa. E são personagens dela.

A procissão é uma festa coletiva onde o sagrado convive alegremente com o profano. Afinal, é muito limitado supor que a alma cabe na escravidão da objetividade. O realismo mágico é uma forma de colocar poesia e graça num mundo que não existe sem a cultura popular. Por falar nisso, sabe quem estaria completando 96 anos hoje, se vivo fosse? O papa dessa religião, o colombiano Gabriel Garcia Márquez. (Presente!)

*Jornalista, escritor; membro da Academia Pernambucana de Letras

Os olhos que recuperam o passado não se deleitam nele https://bit.ly/3JAXbSY

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