A bandeira do Divino
Cícero Belmar*
A mulher que não
pegar no pau da bandeira de São José não casará. É o apelo dessa frase que
arrasta, a cada ano, milhares de senhoras e mocinhas para uma procissão que
mistura práticas eclesiásticas e festivas em Bodocó, município do Sertão de
Pernambuco, a pouco mais de 650 quilômetros do Recife. Por acaso, a cidade onde
nasci.
Daqui a três dias,
9 de março, a Procissão do Pau da Bandeira (a Bandeira do Divino) sairá pela
centésima vez, abrindo o novenário do padroeiro. A tradição religiosa faz um
século, mas essa estratégia de as mulheres acorrerem para pegar no pau da
bandeira é coisa de poucas décadas. Para o evento não perder força ao longo dos
anos, a população soube ressignificar uma tradição meramente religiosa,
estreitando o sentimento de pertencimento com o santo. Hoje, ela é um sucesso
de público, alternando devoção e diversão, com predomínio do religioso.
Alguém inventou que
a mulher que não fosse à procissão para ajudar a carregar o pau da bandeira,
não casaria. Desde então, mulheres não só de Bodocó, mas de diversos municípios
da região, disputam o privilégio de conduzir o pau da bandeira. A ruidosa
procissão praticamente dobra, em número, a população local. Esse, não deixa de
ser, mais um milagre atribuído ao padroeiro de Bodocó que, para os sertanejos,
também é responsável pelas chuvas do inverno.
Sem exageros, o pau
da bandeira chega a uns 30 metros de comprimento. E deve pesar na mesma
proporção. São toras de madeira, afixadas umas nas pontas das outras, virando
um gigantesco mastro. A procissão sai do Sítio Carambolas, a cerca de cinco
quilômetros da cidade, mas a mulherada não mede esforços. Elas fazem a buscada
num evento que conta com bandas de pífanos, filarmônica, fogos de artifícios,
cavaleiros com vestimentas de vaqueiros e carros de som. A família Siqueira
Amorim, que mora no sítio, doa o pau da bandeira cumprindo uma promessa do
patriarca Zé Puluca.
São José é muito popular no Sertão e está no mesmo patamar de divindade que Nossa Senhora, por ter aceito ser o pai adotivo de Jesus. O afeto dos sertanejos pelo santo é como se fosse um reconhecimento ao esforço de ele ter sido um homem do povo, marceneiro, pai de família pobre, que ralou muito para criar o Filho de Deus. Íntimo do Todo Poderoso, portanto, ele é o responsável pela façanha de fazer chover no Sertão, onde água é ouro líquido. É a chuva quem garante o plantio agora para uma boa safra, fartura e alegria, nos festejos juninos.
Com essa nova
atribuição que as moças casamenteiras lhe deram, cabe a São José também
arranjar noivos para elas. Pelo sim, pelo não, a mulherada forma uma enorme
fila indiana e conduz o mastro da bandeira desde o Sítio Carambolas até a
entrada da cidade. A união faz a força e muitas descobrem uma força que nem
desconfiavam ter. A brincadeira garante o sucesso da festa e eu desconheço que
exista tensão entre a tradição religiosa e a laica. Nunca ouvi dizer que as
autoridades religiosas fizessem restrições a essa alegre forma de comemorar o
santo.
O padre da diocese
vai adiante, acompanhado de milhares de fiéis, cantando hinos religiosos. A
procissão é marcada pelos ritos católicos, embora tenha incorporado as práticas
festivas. E à frente do padre vai a bandeira do Divino, como se fosse o seu estandarte.
Todos os anos é confeccionada uma bandeira nova, por artistas plásticos do
Recife. São verdadeiras obras de arte. Quem manda fazê-las é Lisléa Alves
Saraiva, minha querida madrinha Léa, que mantém uma tradição dos pais, seu
Miguel Roberto e dona Donca.
Na entrada da
cidade, o pau da bandeira é entregue aos homens, que o conduz até à frente da
Igreja Matriz. Pela devoção e pela alegria, é um festejo bonito. E literário:
ao acreditarem que São José faz chover ou casar, os sertanejos vivem na
prática, através do catolicismo popular, o realismo mágico. Assim como outras
pessoas de qualquer parte do mundo, permitem-se viver uma narrativa. E são
personagens dela.
A
procissão é uma festa coletiva onde o sagrado convive alegremente com o
profano. Afinal, é muito limitado supor que a alma cabe na escravidão da
objetividade. O realismo mágico é uma forma de colocar poesia e graça num mundo
que não existe sem a cultura popular. Por falar nisso, sabe quem estaria
completando 96 anos hoje, se vivo fosse? O papa dessa religião, o colombiano
Gabriel Garcia Márquez. (Presente!)
*Jornalista, escritor; membro da Academia Pernambucana de Letras
Nenhum comentário:
Postar um comentário