07 fevereiro 2024

Raul Córdula opina

Resistencia, cidade das esculturas
Raul Córdula*

O Rio Paraná é a grande artéria que integra Brasil, Paraguai e Argentina num complexo cultural que tem como base o povo Guarani. O Paranazão serpenteia e vibra com sua força telúrica entre terras baixas, charcos inundados por águas repletas de vida, luz e calor. Entrando na Argentina, há seiscentos quilômetros de Foz do Iguaçu, capital natural da Tríplice Fronteira, em pleno Nordeste do país vizinho, estão duas cidades símbolos de nossa cultura atual: na margem esquerda Corrientes, e na direita, dez quilômetro adentro, Resistencia. Corrientes, de quatrocentos anos, debruça-se sobre o trecho mais largo do rio onde existe uma ponte de mais de mil metros em direção a Resistencia. Corrientes é a capital da Província do mesmo nome. Já Resistência, com pouco mais de cem anos, é a capital da Província Del Chaco. Para o viajante desavisado é surpreendente a vida cultural dessa região, especialmente a força das artes plásticas. Corrientes comporta artistas dedicados ao muralismo que trabalham com a técnica aqui chamada de “grafite”, que temos em Aloísio Magalhães um de seus precursores no Brasil, técnica que consiste na colocação de camadas de reboco colorido, sendo cada camada recortada deixando aparecer a camada de baixo de cor diferente, resultando numa pintura em vários níveis com cada cor localizada no seu nível. Na beira do Rio Paraná há um parque de murais de vários artistas locais e alguns brasileiros da tríplice fronteira.

Em Resistência, motivo principal deste comentário, a escultura ocupa uma importância e um espaço inédito em cidades da América do Sul. Na verdade, em termos relativos, não conheço cidade no mundo que comporte um tão grande acervo de esculturas em locais públicos. Resistência é a cidade das esculturas.

Essa história é recente, é pós-moderna, começou em 1961, quando os irmãos Aldo e Efrain Boglietti, empresários de turismo que representavam em Resistência a Aerolineas Argentinas, que eram também intelectuais envolvidos com a vanguarda da época, passaram a reunir em sua casa – hoje patrimônio da cidade, projetada pelo arquiteto Horácio Masqueroni, um dos símbolos da modernidade Argentina – pessoas ligadas à arte e à literatura. Colecionadores de artes plásticas, eles pensavam a cidade como um museu a céu aberto. A partir disso Resistência tornou se tornou num grande acervo de esculturas ao ar livre.

O grupo de intelectuais chamava-se Fogón de los Arrieros, ou melhor, a cozinha (o fogão) dos tropeiros que transitavam pelo Chaco (que se tornou província em 1951). A ideia deste acervo ao ar livre foi concebida em 1961 como “Plano de Embelezamento de Resistência”. Em pouco tempo obras do grande artista argentino Lucio Fontana (um interessantíssimo bronze figurativo do início de sua carreira), Gerstein, Labourdete, Fioravanti, Petorutti e outros grandes nomes da escultura Argentina espalhavam-se pelas ruas e pelas praças. Foram pensadas formas de convivência com as obras de arte e a população foi consultada sobre diversas possibilidades de relacionamento com elas. As opiniões do povo formam como que um ideário para quem hoje trata da manutenção dessa ação cultural. Entre 1977 e 1991 o Fogón de los Arrieros passou a ter sua continuidade através da Comissão para a Promoção Artística de Resistência – COPROAR, ligada aos poderes municipais. Mas a partir de 91 entra na história a Fundação Urunday, grupo de escultores formado por Efrain Boglietti (falecido em 1991) Fabriciano Gomes, seu maior nome, maior incentivador e atual presidente, Mimo Eidmam, vice-presidenta, Ana Maria Taiana, Carlos Cuffia e Eugenio Milani. O curador para as obras escultóricas na paisagem é o arquiteto portenho Pradial Gutierrez. Há ainda uma ação educativa realizada por Mário Venegas e assessoria de divulgação a cargo de José Eidman e Diego Libedisnki.

Não que a cidade não tenha pintores gravadores, artistas conceituais e contemporâneos, ela os tem e eles são muito bons, da qualidade de Oscar Daniel Nielsen e Oswaldo Marcón. Mas existe alguma coisa além do simples gosto pelas artes plásticas, uma espécie de compromisso dos habitantes com as esculturas, um acordo tácito entre os poderes públicos e o povo que possibilitou este acervo que está por toda parte, nas ruas, em frente das casas, dentro das casas, nos edifícios habitacionais e públicos, nas lojas, em praças e parques, e em um belíssimo parque projetado por Pradial Gutierrez para acolhê-las ainda mais. São mais de trezentas obras aplicadas numa cidade que não deve exceder a duzentos mil habitantes. E este número cresce porque há uma política pública dedicada à aquisição e colocação das esculturas e uma tendência do empresariado local em apoiar cada vez mais esta atitude coletiva, característica tão especial desse povo.

Como base estratégica desta política, porém encaminhada pela iniciativa privada dos artistas da Fundação Urunday, existe uma Bienal Internacional de Esculturas, a Bienal del Chaco, um dos eventos responsáveis pela manutenção dessa chama que ilumina esse o olhar sobre a arte e as atitudes cidadãs que ela encerra. A Fundação Urunday, cujo nome vem de uma madeira na qual muitas esculturas da região são talhadas, para realizar a Bienal, reúne artistas convidados do mundo inteiro para trabalhar em praça púbica, aos olhos dos passantes, as obras que serão mostradas e premiadas por uma comissão, e posteriormente incorporadas ao patrimônio da cidade.

Na noite da premiação da 5a. Bienal, da qual fiz parte da Comissão de Premiação, o palanque montado na Plaza 25 de Mayo, a principal da cidade, onde funcionaram as oficinas ao ar livre e os escultores trabalharam às vistas do povo, estava cercado por mais de dez mil pessoas reunidas sob um frio de dez graus. O povo aplaudia em praça pública, numa noite de sábado seis escultores cujas obras viu serem criadas, e que fariam a partir dali parte da cidade. Havia música antes da recepção para entreter a massa, mas não uma música de massa, uma música local, linda, autêntica, do Chaco e dos Pampas. Os escultores, com seus jeitos de pessoas comuns eram aplaudidos com um entusiasmo que somente quem cultiva sua cultura sabe fazer.

Foi uma lição de cidadania para mim, que venho do Recife, cidade cheia de projetos e leis de incentivos à cultura, cuja Prefeitura mantém uma Lei de Obrigatoriedade de Inserção Obras de Arte nos edifícios com mais de mil metros quadrados de construção, mas onde o povo – mesmo os moradores dos edifícios – não participa da escolha dessas obras, ou como brasileiro oriundo de um país repleto de instituições públicas e privadas como a Fundação Bienal de São Paulo, Instituto Itaú, Centro Cultural Banco do Brasil, Casa França Brasil, etc. etc. etc., e tantos museus, e tantos outros programas e projetos. Verificamos que todas estas instituições, para funcionarem de acordo com o sistema implantado, público ou privado, estão voltadas para o marketing, não para a produção de linguagem, que proporciona a cultura, dirigidas apenas para a promoção de ídolos, para o estrelato, ou então para o assistencialismo culposo da cultura da pobreza que este mesmo sistema promoveu, sem contar com o “meio-de-campo”, a produção normal da arte que acontece em qualquer localidade, e principalmente sem se dirigir ao público geral, o cidadão de qualquer cidade, das capitais que estão fora do eixo Rio/São Paulo, o verdadeiro público que reside em qualquer recanto deste país que possui mais de cinco mil municípios onde floresce o espírito criativo de nosso povo – pois o Brasil é lá dentro – e onde as políticas públicas, se usadas adequadamente, poderiam cumprir seus verdadeiros papeis sociais mediando com o povo o saber de seus criadores.

*Artista plástico, curador e crítico de arte

Onde está a estrela da manhã? https://bit.ly/3Ye45TD  

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