07 fevereiro 2024

Trabalho & Inteligência Artificial

IA: É possível escrever uma história diferente

É impossível impedir a expansão tecnológica e o aumento da produtividade. Mas não é impossível lutar pelos sentidos de sua chegada. Um deles é o mais importante: garantir que o ganhos alcançados sejam partilhados pelos trabalhadores e maiorias
Hamilton Nolan, na Jacobin Brasil/OutrasPalavras


A Inteligência Artificial (IA) é uma questão trabalhista. Talvez tenhamos sorte e isso se revele uma questão trabalhista marginal. Ou talvez venha a revelar-se uma questão existencial, de época, do trabalho, a par da industrialização ou da globalização, cada uma das quais revolucionou as suas próprias épocas de trabalho.

Antes de ficarmos completamente imersos na batalha sobre como a IA afetará os trabalhadores, no entanto, é importante enquadrar o campo de jogo corretamente. Não se trata de uma luta entre um movimento operário retrógrado de um lado e o progresso tecnológico do outro. Em vez disso, esta é uma questão de onde a riqueza e os ganhos de eficiência criados pela IA fluirão.

É fácil lançar os trabalhadores de hoje contra as intrusões da IA como apenas a última iteração de uma história muito antiga. São os míticos luditas que esmagam teares por ignorância; são os artesãos mal-humorados deslocados pela maravilhosa produtividade das fábricas; são os condutores de cavalos e charretes que não querem reconhecer a supremacia dos automóveis.

Esta é uma história atraente do ponto de vista do capital. Ele vê a mudança tecnológica como um processo quase biológico, uma marcha em direção ao progresso conduzida pelos empresários prestativos que reorganizam a sociedade para maior eficiência e colhem os justos frutos por sua esperteza.

Os trabalhadores são subprodutos infelizes deixados para trás pela destruição criativa inerente ao capitalismo. É compreensível que eles temam a mudança, claro, mas seu interesse próprio primitivo não deve ser atendido. A marca de um líder é aumentar a produtividade total, mesmo que isso signifique relegar bolsões específicos da força de trabalho de ontem à pobreza extrema. Esse foi o triunfo do neoliberalismo, e todos nós estamos vivendo em seu rastro.

Esta história, como a maioria dos contos de fadas, contém um grão de verdade e uma medida maior de engano. É verdade que as pessoas que trabalham em todo um arco-íris de indústrias — mídia, publicidade, direito, arquitetura, entretenimento, hospitalidade, transporte e muito mais — estão nervosas sobre o que a IA significará para suas carreiras. E por um bom motivo!

Esta é uma tecnologia que combina um alto grau de incerteza sobre quais serão suas capacidades com um alto grau de certeza de que, quaisquer que sejam essas capacidades, os empregadores as usarão para tentar se livrar de funcionários humanos.

As greves realizadas por roteiristas e atores de Hollywood no ano passado foram estimuladas em grande parte por esse cálculo de bom senso. Ninguém sabe exatamente o que as empresas terão o poder de fazer com a IA, mas elas têm certeza de que as empresas farão coisas que prejudicam os trabalhadores e beneficiam os proprietários se eles forem deixados à própria sorte.

Na própria indústria de jornalismo, por exemplo, a diferença entre “IA como ferramenta para ajudar jornalistas a fazer um trabalho melhor” e “IA como substituto barato, de má qualidade e antiético para jornalistas humanos” se resumirá à questão de saber se a força de trabalho pode forçar as empresas a trilhar o caminho certo.

Em setores sem sindicatos fortes, a única esperança pode ser a regulamentação governamental de como a IA é implementada. De qualquer forma, a hora de agir é agora. O Fundo Monetário Internacional (FMI) recentemente afirmou que 40% dos trabalhadores no mundo têm empregos que “serão afetados pela inteligência artificial”. São muitas pessoas cujos medos são perfeitamente justificados.

Os trabalhadores e o movimento sindical que os empodera precisam contar uma história diferente. Uma história que contém o realismo duro que o mundo dos negócios gosta de reivindicar, juntamente com uma preocupação com a humanidade que o mundo dos negócios não tem. A mudança tecnológica que aumenta a eficiência é incrivelmente difícil de impedir de se espalhar. A internet, a globalização e os aplicativos de transporte são uma prova disso.

O capitalismo cuidará para que as coisas que aumentam a produtividade se espalhem rapidamente. A IA (seja qual for a parte útil dela) se enquadrará nessa categoria. Como acontece com todas as novas tecnologias, os sindicatos podem estar vigilantes para garantir que seu lançamento não seja uma corrida descuidada e abusiva. Porém, essa é apenas uma batalha secundária.

A coisa mais importante que o trabalho organizado deve fazer é garantir que os ganhos produzidos pela IA — ganhos econômicos, ganhos de eficiência, ganhos de produtividade — sejam compartilhados com os trabalhadores, em vez de serem colhidos pela administração e investidores.

Pense, somente por uma questão de argumento, que a IA permite que uma empresa faça a mesma quantidade de trabalho com metade dos trabalhadores em metade do tempo. As maravilhas da ciência! Agora imagine dois caminhos diferentes para essa transição: em um, a empresa demite metade dos trabalhadores, corta os custos trabalhistas pela metade, dobra a produtividade por hora e todos os lucros criados por essa mudança revertem para os investidores da empresa e para os executivos que felizmente demitiram todos.

Em outro cenário, cada trabalhador cujo trabalho é substituído por IA é requalificado para outra função interna, permitindo que a empresa expanda ou receba um pacote de indenização e treinamento pesado para outra carreira. Os trabalhadores restantes conseguem trabalhar menos horas por semana pelo mesmo salário graças aos ganhos de eficiência, e os aumentos nos lucros são divididos entre a força de trabalho, seja por meio de participação nos lucros ou participação dos empregados na empresa.

No primeiro exemplo, a IA exacerbou a desigualdade e tornou a vida dos trabalhadores mais precária. No segundo exemplo, fez o contrário. Ainda é cedo na vida dessa tecnologia que ambos os caminhos estão abertos para nós.

Esta é a verdadeira batalha em questão. Quando os roteiristas de Hollywood fazem greve para impedir roteiros escritos por IA, ou os trabalhadores da hotelaria de Las Vegas, nos Estados Unidos, alertam para as desvantagens dos baristas robôs, eles não são primitivos ignorantes que não conseguem entender os ganhos de produtividade líquida que essa nova tecnologia produzirá. Pelo contrário, eles compreendem perfeitamente que, se não exercerem seu próprio poder, todos esses belos ganhos irão para o topo, e eles ficarão sem nada.

É preciso tomar cuidado com quem enriquece usando IA que caracteriza os trabalhadores como antitecnólogos atrasados. Lembra os brilhantes economistas que explicaram que o livre comércio globalizado produziria ganhos globalizados, sem considerar que todos esses ganhos iriam para 1% das pessoas.

Este não é um debate sobre tecnologia, mas sobre economia política: os avanços na automação nos salvarão a todos do trabalho pesado e facilitarão nossas vidas? Ou apenas obliterará empregos e tornará a vida de milhões de pessoas mais difícil?

Na medida que a inteligência artificial se prove uma inteligência de fato, ela deve ser vista como um bem público, não privado. Os Estados Unidos têm um péssimo histórico nisso, mas nunca é um mau momento para mudar isso.

Os sindicatos não conseguirão manter a IA fora de suas indústrias, mas certamente conseguirão forçar as empresas a espalhar os benefícios da IA para todos.

Seja fabricando cascalho ou semicondutores, toda empresa recebe uma certa quantidade de trabalho e cospe uma certa quantidade de lucro, que depois divide entre trabalhadores, gerentes e investidores. Se linhas de fábrica, pactos de livre comércio ou inteligência artificial produzirem mais lucro por menos trabalho, tudo bem, mas os trabalhadores têm mais direito a esses lucros do que qualquer outra parte interessada. Os motoristas de cavalos e charretes não ficarão tão irritados se souberem que terão empregos dirigindo os novos e sofisticados caminhões. A tecnologia serve as pessoas, não o contrário.

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