26 junho 2024

Desigualdade alimentar

A luta de classes na comida e nos corpos

Estudo sobre a desigualdade alimentar contemporânea. A comida saudável é reservada aos ricos. Aos pobres, fome ou ultraprocessados. Viagem pela história da nutrição – do Paleolítico à pós-modernidade – ajuda a explicar os porquês
Patrícia Aguirre, no Nuso | Tradução: Rôney Rodrigues/Outras Palavras


 

Nos últimos anos, a discussão sobre o que comemos voltou no contexto da expansão de diferentes subculturas alimentares (veganas, ketos, ayurvédicas, etc.), do crescimento dos movimentos ambientalistas e do aumento de doenças associadas à alimentação.

Neste artigo analisaremos o sistema alimentar sob uma perspectiva sócio-histórica, como um sistema aberto, ou seja, com trocas infinitas com seu entorno – como os organismos vivos. Pela sua complexidade, para abordá-la precisaremos recorrer às contribuições de múltiplas ciências – ecologia, nutrição, antropologia, medicina, economia, etc. – que nos autorizem a relacionar as partes analiticamente separadas, apontando as suas transformações no tempo e no espaço. Delinearemos em linhas gerais a sinergia entre o meio ambiente, a tecnologia extrativista e a organização social (principalmente o sistema econômico-político), que afeta a alimentação e a culinária (com sua construção social de gostos e corpos) e, embora a alimentação seja um fator pré-patogênico por excelência, condiciona fortemente a forma como a população adoece e morre .

O corpo da espécie

Se procurarmos no passado exemplos da referida relação, não podemos deixar de mencionar as glaciações do Holoceno e o desenvolvimento de culturas de caça e coleta com tecnologias de extração extremamente eficazes, principalmente usando ferramentas de pedra – que dão o nome a essa época. Cestos, bolsas, varas, recipientes de cabaças, fibras e folhas, juntamente com fogões (verdadeiros sistemas de cocção, porque não só assavam, mas grelhavam, ferviam e picaneavam) dão conta da variedade de preparações destinadas a transformar uma grande diversidade de plantas e produtos de origem animal em comida, o que ajudou diversas populações em ambientes muito diferentes a terem uma vida boa.

Poderíamos voltar ainda mais atrás e ver a importância da alimentação no próprio processo de nos tornarmos humanos; então veríamos que as paleoespécies que antecederam o nosso gênero, utilizando ferramentas como outros primatas , conseguiram ter uma dieta baseada em vegetais, acessando a carne de forma irregular. Há 2,5 milhões de anos, observamos em ossos fósseis um traço crescente de zinco (o que significa aumento na ingestão de carne) e também modificações anatômicas (cérebro maior, intestino mais rápidos, etc.) que falam de uma mudança na alimentação (onívora) que vai além modificações genéticas e epigenéticas que impulsionam e são impulsionadas por grandes mudanças metabólicas e comportamentais. Somos uma espécie que passou de presa a predador através de nossas próprias criações. Sem garras ou caninos poderosos, tivemos que nos unir, melhorar nossa comunicação e aperfeiçoar ferramentas para obtermos carne em conjunto. Mais do que um necrófago, um caçador ou um coletor, a espécie humana era uma espécie oportunista que usava o que podia para aumentar sua ingestão, e a primeira estratégia era a diversificação e a flexibilidade. Ferramentas de pau, chifre e pedra com especialização crescente indicam a modificação do comportamento comensal. Com anatomia de presa deve ter sido muito difícil atuar como predador, por isso era necessária organização social para obter carne. A dinâmica com aquele ambiente e as relações com aquelas espécies naqueles tempos distantes ainda marcam nossos corpos. Ainda hoje, quando o ritmo rápido da mudança cultural deixou para trás a lenta evolução biológica e o nosso ambiente não é mais uma savana mas a cultura da cidade, estamos mais preparados para a escassez do que para a abundância de alimentos. Resistência à insulina, metabolismo da gordura, estresse prolongado, intolerância ao glúten ou à lactose etc. São características evolutivas que respondem ao nosso passado como espécie onívora que se adaptou a diferentes ambientes (da savana africana às pastagens americanas ou às selvas asiáticas). A tecnologia extrativa necessária para atender às demandas metabólicas nos posicionou como apenas mais um predador, mas para isso foi necessário substituir as pequenas presas e unhas planas da espécie homo.

Há cerca de 50 mil anos, o homo sapiens anatomicamente moderno, que vivia em bandos de caçadores-coletores, já havia colonizado todos os ecossistemas do planeta, com exceção da Antártida. Seus corpos, sua alimentação e um pouco de sua vida social podem ser reconstruídos a partir de evidências arqueológicas, com algumas referências etnográficas dos poucos grupos que ainda não foram exterminados pelas sociedades atuais, uma vez que toda a expansão desde as primeiras sociedades agrícolas até as atuais sociedades industrializadas foi realizadas à custa dos seus territórios, da sua cultura e das suas vidas.

Nos bandos de caçadores-coletores, atuais e passados, a chave para a sobrevivência é a organização social e a obtenção de alimentos proporciona um eixo poderoso para a ação coletiva. Comer está em primeiro lugar e extrair o alimento não é fácil em nenhum ambiente, por isso todos (com suas diferentes possibilidades e habilidades) colaboraram para provê-la com seu trabalho diário. Os bandos – embora formadas por vários grupos familiares – compartilhavam um único fogão, o que demonstra reciprocidade no consumo. Embora a coleta de hortaliças fosse a base da alimentação, a carne tornou-se um bem social, pois a caça, por ser difícil e perigosa, era coletiva e promovia a reciprocidade como forma de distribuição, reduzindo o risco de dependência de recursos móveis e atividades penosas. Quando há, há para todos. Quando não há, não há para ninguém.

A dieta média dos nossos antepassados paleolíticos era nutricionalmente adequada. Mas é preciso falar de dietas – no plural –, pois os diferentes bandos, em ambientes diferentes e com tecnologia e organização diferentes, comiam alimentos diferentes que organizavam em diferentes tipos de preparações, em que a criatividade humana transformaria em diferentes refeições. Viver nos trópicos não é o mesmo que viver num glaciar, por isso esta síntese compacta generaliza-se num mundo de particularidades. No entanto, existe uma característica comum a todos estes regimes: as refeições são sazonais, diversificadas e frugais. Também magras (animais selvagens correm para salvar suas vidas, então sua carne tinha 30% menos gordura do que a de seus descendentes domesticados). Exceto em ambientes marítimos, consumia-se pouco sal e, em geral, pouco álcool (proveniente da fermentação de frutas e grãos nativos), poucos carboidratos (tubérculos e grãos silvestres são sazonais), muitas fibras (de vegetais e frutas naturais), poucos açúcares (mel e frutas da estação) e nada de leite, nem açúcares ou óleos refinados. Acrescentavam-se ovos, frutas secas e insetos, quando o ambiente permitia. Uma grande variedade de espécies caiu nas cozinhas dos caçadores-coletores, resultando num regime caracterizado pela diversidade. Os efeitos desse tipo de dieta ficaram marcados nos ossos fósseis, dos quais se inferem corpos altos, magros, com boa saúde nas curtas vidas (30 anos para os homens e 27 para as mulheres, o que comprova uma vez mais os riscos da maternidade).

Se a desigualdade marca os corpos, não devemos esquecer que a igualdade também o faz, de modo que onde a reciprocidade reinou na distribuição encontramos uma forma única nos corpos. As pinturas rupestres mostram pessoas altas (só recentemente o crescimento secular do século XX recuperou, para algumas populações, a altura dos seus antepassados paleolíticos). Viviam no limite, com poucos depósitos de gordura corporal (genes parcimoniosos levavam à poupança em forma de panícula adiposa em épocas de abundância para gastar em épocas de escassez), de modo que as mulheres raramente conseguiam acumular as 23.000 kcal de reservas que são necessárias para ovular durante a lactação, por isso assumimos a existência de espaços intergênicos de quatro anos. Estas dietas foram fruto da vida paleolítica e, embora hoje estejam na moda, devemos reconhecer que não existem condições para desenvolvê-las. Se é verdade que comemos como vivemos, essa alimentação dependia desse modo de vida, e hoje nem a apropriação da terra nem a densidade demográfica permitem uma economia caçadora-coletora, nem existem animais e plantas selvagens, uma vez que na atualidade todas as espécies que constituem a base da nossa alimentação têm em média aproximadamente seis mil anos de domesticação. Mas embora seja impossível reproduzir estas dietas, elas podem servir de horizonte para direcionar o nosso consumo, uma vez que tiveram tanto sucesso que permitiram que um punhado de primatas mutantes ocupasse todo o planeta .

Alguns dados sugerem que nestes pequenos bandos – nos quais as espécies viveram durante centenas de milhares de anos – prevaleceram as diferenças (idade, gênero, função), mas não a desigualdade (porque tais diferenças não expandiram nem restringiram direitos), e esses foram, talvez,as bases desse corpo singular.

Na paleoepidemiologia, mais uma vez, a diversidade é a norma. Dado que os ambientes são diversos, as infecções pŕovenientes de vermes (tênia, ancilostomíase) e mosquitos (malária, dengue) serão um problema nos trópicos e inexistentes nos climas polares. Mas acidentes (mais frequentes e fatais do que hoje), doenças degenerativas (como artrite, osteoporose e desgastes dentários) e febres transmitidas por artrópodes, diarreias, doenças gastrointestinais e respiratórias e infecções de pele eram comuns a todos os grupos. Doenças infecciosas como difteria, gripe ou sarampo, etc. eram desconhecidas ou muito raras nas sociedades de caçadores-coletores antes da domesticação ou do contato .

O corpo do Estado

Há 13 mil anos, o clima mudou e a temperatura média aumentou 5 °C; isto derreteu os glaciares, fez com que as florestas suplantassem as planícies, e a subsequente migração e extinção de espécies deu início ao maior programa de conservação que a humanidade alguma vez empreendeu: a domesticação. Quando os vegetais foram domesticados, foram criados pequenos ecossistemas com certo controle e previsibilidade (parcelas), baseados na adição de energia humana, para aumentar os rendimentos. A domesticação dos animais, por sua vez, conseguiu uma reserva permanente de carne e fibras e permitiu roubar leite de outros mamíferos e conservá-lo na forma de iogurte e queijo. Este evento cultural, ao longo do tempo e em diferentes geografias, estabeleceu cinco mutações que permitem a absorção do açúcar do leite (lactose), transformando o genótipo “estatisticamente normal” que partilhamos com outros primatas de intolerante para tolerante… mas apenas nas culturas em que o gado leiteiro domesticado; para que o consumo de laticínios fosse uma cultura feita na natureza, marcada em nossos corpos e em nossos genes .

As características dos grãos, embora tenham fornecido as soluções mais estáveis para o problema da produção de alimentos (são as mesmas espécies que consumimos hoje), tiveram consequências ecológicas desastrosas (homogeneização e fragilidade dos ecossistemas), demográficas (aumento da população, mas com menor qualidade e expectativa de vida), depressão da saúde neolítica (com uma perda de 20 cm na altura média), redução dos espaços intergênicos (alimentadas com cereais, as mães podiam manter a amamentação e a gravidez simultaneamente) e até epidemias das mesmas doenças infecciosas que que sofremos hoje aparecem. Todas essas modificações tiveram consequências sociais e políticas.

Se compararmos os cultivadores de grãos com os cultivadores de tubérculos, veremos até que ponto o que produzimos como alimento condiciona a organização sociopolítica, uma vez que a natureza perecível dos tubérculos impulsionou a criação de instituições redistributivas sazonais (festas e banquetes onde são consumidos até a saciedade) para metabolizar alimentos que não podem ser armazenados (o que acontece com os grãos) . Em populações numerosas, circunscrita, assentada e amontoadas em vilas ou cidades, alimentadas de forma monótona e pouco diversificada, à base de cereais ou tubérculos – ricos em amido -, e que também utilizam as mesmas fontes de água para higiene, beber, cozinhar e produzir, aparecerão as primeiras epidemias. Onde as populações humanas e animais estiveram em contato próximo durante o processo de domesticação, algumas zoonoses ultrapassaram a barreira das espécies e permitiram que micróbios de animais se adaptassem aos humanos e evoluíssem para se tornarem patogênicos. Além da carne e do leite, as vacas nos transmitiram sarampo e tuberculose; porcos, a coqueluche; e patos, a gripe.

Maior população, superlotação, alimentação pobre em nutrientes, água contaminada e animais domesticados: esse foi o combo explosivo que transformou doenças em epidemias. Estas devastaram as populações regularmente. Porém, a fome foi a principal epidemia que assolou a humanidade desde então. Seja por causas naturais (inundações, secas, insetos) ou por causas políticas (impostos, guerras, escravidão), a possibilidade de comer, para a maioria, sempre esteve em dúvida: desde a invenção da agricultura, a humanidade viveu em sociedades de restrição calórica onde a comida não era suficiente para todos. A acumulação, a apropriação de excedentes e as diferentes formas de distribuição foram as formas mais ou menos criativas que os nossos antepassados encontraram para aliviar a fome (das minorias e não das maiorias). E como uma população desnutrida é uma população imunocomprometida (o sistema imunológico humano é composto por proteínas, que são os alimentos mais caros, devido à energia e ao tempo necessários para produzi-los), tanto agora como no passado a possibilidade de resistir a doenças foi muito limitada. A intensificação da produção com arados e irrigação permitiu superar as carências sazonais e produzir excedentes, mas isso trouxe o problema de como distribuí-los. Foram introduzidas instituições que amplificaram as diferenças (sociais, sexuais, etárias, etc.) transformando-as em desigualdades. Embora os caçadores especializados em animais de grande porte já fizessem parte de sociedades paleolíticas hierárquicas e desiguais, onde a força masculina era a fonte de todos os direitos, a partir do acúmulo de excedentes a desigualdade passa a ser consequência da tendência de apropriação, ou seja, torna-se puramente cultural. E crianças, mulheres e outras pessoas com direitos restritos (escravos ou servos) são excluídas e subalimentadas por serem consideradas subumanas nas novas cidades, onde se concentrava o poder da principal instituição redistributiva: o Estado.

Há 6 mil anos, os Estados que surgiram em diferentes partes do mundo, apesar das suas muitas diferenças, tinham características comuns: baseavam-se na existência de grandes populações (a serem tributadas) e circunscritas (sem possibilidades de evasão), estratificações hierárquicas (de acordo com a sua apropriação) e especializações funcionais (camadas de camponeses, artesãos, guerreiros, sábios, etc.) com níveis administrativos (local, regional, nacional) que coexistiam com outros circuitos redistributivos – os templos, o mercado – de menor importância .

Das pequenas cidades-estado gregas aos gigantescos impérios chineses, todos estes Estados, apesar da sua variedade, desenvolverão cozinhas diferenciadas e “corpos de classe”. Porque quando há apropriação hierárquica do excedente agrário, surge a distinção entre estilos de vida com signos particulares, aos quais a alimentação e a culinária não poderiam ser alheias.

A “baixa gastronomia” ou culinária camponesa – caseira, familiar, simples e feminina – baseava-se num cereal (arroz na Ásia, milho na América, trigo na Europa), alguns vegetais e quase nenhuma carne ou produtos de origem animal. Hoje é divinizado como saudável, quando era uma culinária de escassez. Por sua vez, a “alta cozinha” ou cozinha da corte ou aristocrática era composta por todo o resto, até por comidas exóticas. Tinha receitas escritas, preparadas por cozinheiros que organizavam banquetes para uma pequena massa de aristocratas sibaritas que não poupavam despesas. As orgias romanas são um exemplo desta cozinha política, onde a comida se come, se saboreia e é mostrada como espelho do poder . Estas sociedades hierárquicas com cozinhas diferenciadas não podiam promover um corpo único, mas em vez disso geraram “corpos de classe”: pessoas ricas e gordas e pessoas pobres e magras, cada uma com formas diferentes de adoecer e morrer. Os primeiros sofrerão das doenças da abundância (sobrepeso, obesidade, gota, diabetes mellitus) e os segundos, das doenças da escassez (desnutrição, pelagra, anemia). Nos últimos cinco mil anos, o tamanho da cintura coincidiu com a classe social, e não é surpreendente que o excesso de peso fosse visto como uma coisa boa, mas também como um sinal de boa saúde: evidências empíricas alertavam que as pessoas gordas adoeciam menos e recuperavam melhor e mais rapidamente a saúde, por isso se tornaram motivo de desejo e sinônimo de beleza.

O corpo do mercado

A expansão colonial das potências europeias encontrará na África, na América e na Ásia não só o ouro que financiou o seu desenvolvimento, mas também a possibilidade de cultivar o alimento mais caro da sua pirâmide de preços: o açúcar, que deixará de adoçar as refeições da realeza para reforçar a alimentação dos pobres. O sistema de plantation do Caribe inaugura o comércio em grande escala de escravos africanos (sequestrados para remediar o genocídio dos nativos). Tanto na América como no Sudeste asiático, as plantações de açúcar (com os seus engenhos de açúcar para cristalizá-las) expandiram-se à custa de selvas e culturas. A partir do século XVII, o açúcar barato inundou as cozinhas de todo o mundo e financiou metabolicamente a Revolução Industrial e – ao destilar melaço para produzir aguardente – tornou-se tanto numa arma de dominação territorial como num “matador da fome” proletária 10 .

Se o capitalismo mercantil ampliou o comércio de açúcar para todo o mundo, o capitalismo industrial aproveitou-o ao máximo. As fábricas são construídas com base no planejamento espacial dos engenhos. A energia dos trabalhadores metropolitanos foi assegurada com infusões baratas vindas do exterior. A energia – proveniente do açúcar – e a sensação de saciedade e calor – proveniente da água quente – deram aos trabalhadores o que necessitavam para suportar longas jornadas de trabalho mal remunerado. Como a aristocracia se apropriou da maior parte da produção alimentar, os trabalhadores aceitaram de bom grado o açúcar barato. Não devemos esquecer que o sabor doce, precisamente porque era escasso quando se formou a anatomia da espécie, não vai ser rejeitado, como verificaram os abolicionistas europeus quando apelaram – com pouco sucesso – a um boicote ao consumo de açúcar para acabar com o infame comércio de escravos.

Ainda hoje, depois de meio século de pressão sanitarista que visa reduzir o açúcar nas dietas, dada a magnitude e as consequências nefastas do seu consumo, o objetivo dificilmente é alcançado pela substituição por adoçantes. Praticamente todos os alimentos industrializados contêm açúcares (sendo a sacarose e o xarope rico em frutose entre os mais comuns) porque aumentam a palatabilidade e a preservação, e também estão presentes de forma “invisível” em alimentos salgados que não se espera que o contenham.

O transporte de espécies que se seguiu à expansão colonial europeia remodelou os ecossistemas ao promover 15 gêneros à escala planetária, destruindo a paisagem e a organização local em prol da rentabilidade comercial. A indústria alimentícia que emergiu desta abundância transformou os alimentos através da conservação, mecanização, transporte, segurança controlada por sistemas especializados, publicidade e marketing baseados em redes globais de atacado e varejo. Hoje, mais do que indústrias, existem 250 holdings altamente diversificadas (empresas agrícolas, laboratórios de sementes, bancos, empresas de transporte, portos, supermercados, etc.) à escala global que decidem a dieta dos comensais nas sociedades atuais 11 . E como a escala baixa o preço, é produzido em massa e vendido globalmente e, assim, os argentinos, chineses, franceses, nigerianos compram os mesmos produtos industrializados para comer. Longas cadeias de comércio levam as embalagens a todos os cantos do planeta e transformam comensais em consumidores. São bens “bons para vender e não bons para comer” 12 porque, apesar da diversidade de marcas, todas contêm a mesma coisa. O sucesso de um alimento industrializado é que ele é produzido com baixo custo para que, embora o consumidor não saiba, há coisas dentro da embalagem que não vão faltar porque barateiam custos: carboidratos, gorduras, sal e açúcar, juntamente com conservantes, aromatizantes e corantes 13 , entre as substâncias permitidas, e resíduos de plástico, medicamentos e pesticidas entre as não permitidas. A norma do nosso tempo é comer sozinho produtos desconhecidos, em embalagens individuais e, sobretudo, comer sem parar (24 horas por dia, sete dias por semana) em qualquer lugar e a qualquer hora.

Os alimentos processados substituíram os produtos naturais, reduzindo o tempo gasto para se cozinhar (numa sociedade que gradualmente deslegitimou as tarefas reprodutivas), os alimentos ultraprocessados substituíram refeições inteiras (como a “barra de cereais” que substituiu o almoço no escritório). Essa situação benéfica para a indústria custou muito caro ao consumidor, pois esse tipo de dieta (juntamente com a redução de movimentos) é considerada responsável pelas doenças crônicas não transmissíveis (diabetes, hipertensão, colesterolemia, acidente vascular cerebral, etc.) que afligem o mundo hoje a ponto de se transformarem em pandemias: a obesidade é a primeira pandemia não infecciosa declarada como tal pela Organização Mundial da Saúde (OMS) 14 .

Num artigo anterior, abordamos a crise alimentar 15 , que hoje se apresenta como estrutural (afeta simultaneamente a produção, a distribuição e o consumo), paradoxal (com alimentos para todos, há 800 milhões de pessoas subnutridas 16 ) e terminal (a poluição provavelmente excedeu as capacidades de neurorregeneração de todos os ecossistemas).

Na produção, enfrentamos uma crise de qualidade (excesso de carboidratos, gorduras e açúcares com situação crítica em micronutrientes como vitaminas, ferro e cálcio) e de sustentabilidade (se o modelo extrativista de agricultura química, pecuária farmacológica e pesca predatória, a deterioração do meio ambiente compromete a produção futura). Dado que a distribuição é feita através de mecanismos de mercado, há uma crise de equidade, porque os alimentos não vão onde são necessários, mas onde podem ser comprados, com consequências desastrosas para a população, como o subconsumo e o sobreconsumo, ambos insalubres. E no que diz respeito ao consumo, vivemos uma crise de comensalidade, uma vez que a alimentação industrial substituiu todos os padrões locais, boicotando as identidades alimentares (que fazem parte da identidade) e apagando a comida caseira e a mesa numa bicada permanente de “ocnis”: objetos comestíveis não identificados 17 .

O extraordinário crescimento da disponibilidade de alimentos no século XXI não garantiu o fim da fome ou das doenças de origem alimentar. Com uma disponibilidade aparente de 3.200 kcal/pessoa/dia como média global (o que implica uma produção capaz de alimentar 10 bilhões de pessoas), os oito bilhões de pessoas que hoje habitam o planeta deveriam ter acesso às 2.000 kcal/pessoa/dia recomendadas pelos nutricionistas. Oculta-se que 30% dos alimentos produzidos são perdidos no transporte e na industrialização, desperdiçados (devido ao mau manuseio) ou jogados fora (para manter os preços). E esconde-se que à medida que o sistema alimentar se globalizou até se tornar, como hoje, um sistema mundial, com enclaves produtivos e nichos de mercado, a fome já não dependia de causas naturais (secas, inundações), mas de causas econômicas (acesso aos alimentos), e entre aqueles que podem comprar, os corpos de classe do passado foram invertidos: agora os pobres têm maior probabilidade de serem obesos, enquanto os ricos podem permanecer magros, ambos com doenças específicas associadas a esses corpos.

Hoje é mais fácil encontrar excesso de peso e obesidade na pobreza do que na riqueza. Porque os pobres do mundo compram (ou recebem) alimentos de alto rendimento (processados pela indústria global), cheios de energia (baratos) e carentes de micronutrientes (caros). Esta desnutrição também tem sido chamada de fome oculta: porque esconde com abundância (de pão, batata, gordura e açúcar) todos os males da escassez (de carne, laticínios, frutas e vegetais). O triste é que as próprias vítimas não questionam a natureza social da sua pena, porque séculos de associação de corpos opulentos com bem-estar significam que o excesso de peso não funciona como um alerta de saúde; no máximo, é visto como um incômodo estético.

Podemos ver esta desnutrição induzida pela indústria (porque é a oferta hegemônica nas cidades) como funcional ao desenvolvimento da vida social, econômica e política. Com esta configuração de consumo, todos parecem obter algum benefício: a população, o mercado e o Estado, só que neste tipo de jogo perverso o ser humano está condenado a perder antecipadamente pelo simples fato de o jogar.

Para os pobres é lucro porque, ao contrário do que aconteceu no passado, agora comem. Ruim, mas eles comem. Eles podem desenvolver suas vidas, aprender, trabalhar, reproduzir, participar de atividades sociais, etc. É uma organização de consumo pouco saudável, mas inclusiva. Deficiências de micronutrientes, imunossupressão ou infecção tornam-se visíveis a longo prazo e como adoecimento individual (maior sensibilidade a infecções, menor nível de aprendizagem, baixo peso ao nascer, anemia, etc.). O sistema médico tem respostas clínicas (individuais). Cuida, controla, legitima, regula e medica, o que resulta na ampliação de suas funções (desde tratar doenças até controlar a saúde). A indústria farmacêutica se expande com a medicalização dos alimentos (fortificados). A desnutrição também é funcional para o sistema agroalimentar, pois mesmo o consumo limitado dos pobres permite a criação de um mercado que produz lucros (e sem dúvida mais lucros do que a ausência de consumo por uma população faminta ou do que o consumo num sistema alternativo, informal, autoprodução e autoconsumo).

Quando o consumo das famílias cai para níveis críticos, o Estado complementa o seu consumo pouco saudável com os mesmos alimentos insalubres. Seja pela economia (barato), pela logística (seco, embalado, fácil de transportar) ou pela aceitação (são os mesmos macarrão, óleos e açúcares que comem quando podem comprá-los), para o mercado eles até simplificam a demanda. São também funcionais ao componente político, que gera clientela partidária através de planos que reduzem o conflito social.

São funcionais para a organização econômica porque os desnutridos trabalham, produzindo mesmo com baixa produtividade, nos mercados de trabalho urbano formal e informal. Funcionais às concepções que diferentes setores têm sobre si e sobre os outros, porque marcam, delimitam, relacionam, opõem e complementam visões de vida, de sociedade e de corpo, em parte marcando, em parte mascarando as relações entre eles.

Se a nossa análise foi acertada, é necessário repensar a dieta atual na sua totalidade e agir agora. Porque dadas as vantagens sistêmicas da desnutrição, da baixa estatura, da obesidade e das deficiências de micro e macronutrientes, e dado que, apesar do sofrimento individual, são funcionais ao desenvolvimento da vida social, então, devemos esperar que esta seja a nova forma da fome no novo milênio.


Notas

  • 1. P. Aguirre: Una historia social de la comida, Lugar Editorial, Buenos Aires, 2017.
  • 2. Los chimpancés buscan raíces y extraen termitas con ramas, usan piedras para abrir o aplastar semillas y cazan otros monos con palos.
  • 3. José Campillo Álvarez: El mono obeso. La evolución humana y las enfermedades de la opulencia, Crítica, Barcelona, 2010.
  • 4. Julio Montero: «Alimentación paleolítica en el siglo XXI» en Revista de la Sociedad Argentina de Nutrición vol. 13 No 1, 2010.
  • 5. P. Aguirre: Una historia social de la comida, cit.
  • 6. Sarah A. Tishkoff et al.: «Convergent Adaptation of Human Lactase Persistence in Africa and Europe» en Nature Genetics No 39, 2007.
  • 7. Marvin Harris: Bueno para comer. Enigmas de alimentación y cultura, Alianza, Madrid, 1985.
  • 8. Francis Berdan: «Comercio y mercados en los Estados pre-capitalistas» en Stuart Plattner: Antropología económica, Alianza / Patria, Ciudad de México, 1991.
  • 9. Jack Goody: Cocina, cuisine y clase. Un estudio de sociología comparada, Gedisa, Barcelona, 1985.
  • 10. Sidney Mintz: Dulzura y poder. El lugar del azúcar en la historia moderna, Siglo XXI Editores, Madrid, 1996.
  • 11. Raj Patel: Obesos y famélicos. Globalización, hambre y negocios en el nuevo sistema alimentario mundial, Marea, Buenos Aires, 2008.
  • 12. M. Harris: ob. cit.
  • 13. Marion Nestle: Food Politics: How the Food Industry Influences Nutrition and Health, University of California Press, Berkeley, 2003.
  • 14. Margaret Chan: «Alocución de la Dra. Margaret Chan, Directora General, a la 66.ª Asamblea Mundial de la Salud», 20/5/2013, disponible en www.who.int/dg/speeches/2013/world_health_assembly_20130520/es.
  • 15. P. Aguirre: «Alternativas a la crisis global de la alimentación» en Nueva Sociedad No 202, 3-4/2016, disponible en www.nuso.org.
  • 16. FAO, FIDA, UNICEF, PMA y OMS: «El estado de la seguridad alimentaria y la nutrición en el mundo. Fomentando la resiliencia climática en aras de la seguridad alimentaria y la nutrición», Roma, 2018.
  • 17. Claude Fischler: El (h)omnívoro. El cuerpo, la cocina y el gusto, Anagrama, Barcelona, 1995.

Imagem: Giuseppe Arcimboldo

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