07 agosto 2024

Uma crônica de Cícero Belmar

J. Borges, Marlon e Zé Manoel
Cícero Belmar*   


No dia da morte de J. Borges, 26 de julho, fiquei pensando, entre uma e outra coisa do cotidiano, no poder de humanidade que possuímos. A generosidade daquele artista é a mesma virtude que encontrei no produtor cinematográfico Marlon Meirelles e no diretor de teatro José Manoel Sobrinho. Ambos, assim como o mestre da literatura de cordel e da xilogravura, são naturais de Bezerros, no Agreste pernambucano. Tenho histórias em comum com os três.

Através das generosidades, a nossa alma reencontra pedaços de si mesma. Aprendi com eles, por exemplo, que a grandeza de se dar é algo afetivo, espontâneo, uma atitude tomada muitas vezes de acordo com o senso de solidariedade. Conheci J. Borges através do poeta e diretor de teatro Manoel Constantino. Quando lancei a primeira edição do romance Umbilina e Sua Grande Rival, pedi ao meu amigo que levasse ao mestre popular um exemplar do meu livro. Achei pertinente, uma vez que se trata de uma história de cordel na prosa.

Deixei o tempo correr e, certa vez, quando estive em Bezerros, passei no ateliê de J. Borges. Ele, porém, estava na Europa, representando o País no Projeto Brasil-França, de arte e  cultura. Fui recebido pelo filho: “Pai vive agarrado com o seu livro, pra cima e pra baixo”. Naquele dia, fiquei sabendo que J. Borges se inspirou no livro para fazer 16 matrizes de xilogravura – escultura em madeira usadas na impressão em papel – com cenas do meu romance. Isso já me deixou radiante.

Dei um jeito de voltar em Bezerros, tempos depois, para bater um papo com o mestre e adquirir as matrizes. Acertamos que, se houvesse uma segunda edição, o material seria usado. Quando saiu a segunda edição, o livro teve capa de J. Borges e cada abertura de capítulo contou com uma xilogravura. O projeto foi financiado pelo Funcultura. J. Borges dedicou ao meu livro a mesma atenção que  dispensou às obras de José Saramago e de Eduardo Galeano.

Quando um artista se enxerga na arte do outro, acontece uma conexão de sensibilidades: a segunda edição de Umbilina foi produzida por Marlon Meirelles, através da Eixo Visual, e, a partir desse trabalho, fizemos um catálogo apresentando um levantamento da complexidade da produção artesanal de Bezerros. Além das xilogravuras e da literatura de cordel, a Terra dos Papangus produz máscaras em papel machê e colê, bonecas de pano, bordados, peças em barro e couro, brinquedos, entre outros.

Finalmente, Marlon Meirelles, que também é cineasta, fez um curta-metragem adaptado do meu romance Umbilina, com as consagradas atrizes Marcélia Cartaxo e Zezita Matos. O filme conta a peleja de uma mulher contra a morte. Umbilina é uma mulher vitoriosa enquanto vive, combate e resiste. Quando um artista recria a partir da arte do outro ele está dizendo que é preciso não acreditar em limites.

O terceiro bezerrense, José Manoel, foi uma luz que se acendeu para mim. Sei que a força da arte e o amor pela literatura foi quem primeiro moveu J. Borges, Marlon e Zé Manoel. Mas a disponibilidade que eles tiveram para recriar a arte e trabalhar a partir de um projeto original meu, não foi um dever; mas sim a disposição de fazer o bem e a sintonia dos interesses convergentes.

Enquanto foi diretor de Cultura do Sesc, Zé mostrou que o apoio dado à literatura era o caminho e que a solidariedade artística era a finalidade do seu ofício. Hoje, dedica-se a projetos pessoais e dirige peças de teatro. Uma dessas é Esquecidos por Deus, com texto de minha autoria, e atuação do ator Murilo Freire. Durante o processo da montagem, vi o quanto Zé é corajoso e aprendi que fazer teatro não pode ter amarras, autocensura ou medo de não agradar. Aprendizado que levo para a vida.

Com J. Borges, Marlon e Zé Manoel descobri que a generosidade, na arte, além de produzir alegria para as pessoas que vão consumi-la, também tem a magia de gerar, sem parecer simplório, bondade.

*Jornalista, escritor, membro da Academia Pernambucana de Letras

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