Sobre a moça fantasma
Rubem Braga*
Carlos
Drummond de Andrade tem um poema sobre a Moça Fantasma, o que prova que ela
existiu. Com certeza não existe mais, e se existe não é mais uma jovem, e sim
uma dama quarentona – pois foi no começo dos anos 30 que nós a conhecemos.
A primeira
notícia que tivemos da Moça foi pela madrugada. Não me lembro de toda a roda: O
Newton Prates, diretor do vespertino, o Otávio Xavier, secretário da redação, e
pelo menos dois redatores, o falecido Orlando Rocha e eu; isso foi em Belo
Horizonte. Monzeca estava? Sim, Monzeca devia estar. O único realmente astral
de nós quatro era Orlando, chamado o Furioso. Tinha sido escoteiro, o que me
parecia espantoso, pois não tinha nenhum jeito de escoteiro. Era muito jovem,
mas viajado: fora a um Jamboree na Inglaterra. Acabada a reunião, todos os
milhares de escoteiros voltaram a seus países, mas cadê Orlando? A delegação
brasileira voltou, menos Orlando. Seu pai era um pintor, um homem bom que se
deleitava em fazer imensos crepúsculos caindo sobre o Rio S. Francisco;
conseguiu mobilizar nossos diplomatas em Londres para encontrar Orlando.
Londres é
imensa, e o rapaz custou a aparecer; estava sem uniforme, pois, encerrado o
Jamboree, considerara encerrada sua vida de escoteiro. Foi assim mesmo, ou será
que eu ainda conheci o Orlando vestido de escoteiro? Tenho a memória
fantasista; não sei. Lembro-me que uma senhora inglesa de meia-idade conhecera
o rapazola mineiro e resolvera, naquele mesmo dia, praticar uma boa ação;
tirou-o do acampamento, comprou-lhe roupa de paisano, levou-o para sua casa e
ficou morando com ele.
Como as
inglesas são muito sérias, é de supor que pretendesse se casar com ele, mas não
seria fácil casar alguém com passaporte de escoteiro; é possível que tenha
casado em alguma igreja de alguma religião, pois Orlando era muito de fazer
essas coisas, embora não gostasse de contá-las.
Essa dama de
Londres talvez fosse, ele também, fantasma; o fato é que reteve sua presa
vários meses; quando voltou a Belo Horizonte, Orlando estava nessa posição de
moço que não sabe exatamente o que vai fazer na vida, não tem vontade de
estudar nada, nem que pegar um trabalho sério: assim, como todos nós, resolveu
ser jornalista.
Bem, aquela
madrugada – havia mais alguém na mesa, talvez a mulher chamada Jesus, ou a
simpática e hoje defunta Alzira Caolha, ou a suave Leo? – apareceu um chofer de
praça muito espantado contando a história. A moça loura tomara seu carro no
centro e mandara tocar para o bairro da Serra. Como as ruas estavam vazias, ele
foi a toda velocidade, e se lembra de ter visto a moça – vestida de branco,
linda, com tranças louras – mais de uma vez, pelo espelhinho do carro.
— Rua do
Chumbo que a senhora disse? É esta aqui. Que número?
A moça não
respondeu porque a MOÇA NÃO ESTAVA NO CARRO. Ele voltou para ver se a
encontrava em alguma parte, caído pelo caminho. Nada. E as duas portas de trás
estavam perfeitamente fechadas.
Ouvimos toda a
história, houve quem fizesse perguntas, que se espantasse, quem desse de
ombros; Orlando tomou notas tranquilamente, e deixou na mesa do secretário, no
dia seguinte, a história da Moça Fantasma, já com uma ilustração feita pelo
desenhista do jornal. No outro dia me mandaram atender a um senhor de
meia-idade que queria falar com um redator; era um major aposentado da Força
Pública; vira a Moça Fantasma no seu jardim; ela lhe fizera um sinal, sorrira e
sumira. Na outra noite apareceu a duas irmãs solteironas, debaixo de uma
mangueira; e logo começou a circular, com seu longo vestido branco, suas
tranças louras e seu sorriso triste por todos os bairros de Belo Horizonte,
pobres ou ricos; essa visão de beleza apaixonou a cidade e, calhando uma lua
cheia, começou a ser vista de tal maneira que a gente muitas vezes tinha de
refugar uma testemunha: “meia-noite e meia no Calafate não é possível, minha
senhora; precisamente a esta hora ela foi vista na Paraúna por três pessoas,
inclusive um alto funcionário da Secretaria das Finanças; não podemos publicar
sua história”.
Drummond,
creio que a viu apenas uma vez, quis se fazer seu íntimo, e, como não
conseguiu, fez o que os poetas costumam fazer: um poema. E o nosso Orlando?
Bem, alguém teve a ideia de mandá-lo fazer reportagem em um terreiro de
macumba; ele foi e, evidentemente, não voltou mais. Aderiu, casou-se com a
mãe-de-santo, ficou espantosamente magro e, como ainda se usava naquele tempo,
morreu. Nós ficamos aqui, e engordamos com certo remorso.
[Ilustração: Edvard Munch]
*Rubem Braga, dito "príncipe da crônica brasileira", foi um dos maiores responsáveis pela consolidação desse genero literário no Brasil
Veja: Uma breve palavra sobre nossa conversa com o ex-presidente Lula https://bit.ly/3kbDHqq
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