20 setembro 2024

Cláudio Carraly opina

Viena–Áustria, 1913: a cidade dos destinos cruzados
Cláudio Carraly* 

No ano de 1913, Viena era uma cidade em efervescência, uma metrópole na encruzilhada de antigas tradições e inovações modernistas, um caldeirão de ideias onde culturas e ideologias se misturavam, era também o lar temporário de figuras que, embo ra ainda não soubessem, moldariam profundamente todo século XX. Entre os mais notáveis residentes dessa época estavam Sigmund Freud, Leon Trotsky, Joseph Stalin e Ludwig Wittgenstein, cada um em diferentes estágios de suas jornadas pessoais, mas todos movidos por uma busca insaciável por entendimento e transformação.
 
Sigmund Freud, o pioneiro da psicanálise, estava em Viena há décadas, onde sua prática clínica e suas teorias sobre o inconsciente estavam desafiando as noções tradicionais sobre a mente humana. Freud via essa cidade como o epicentro de uma revoluç&a tilde;o silenciosa na compreensão do comportamento humano, uma revolução travada nas profundezas da psique humana.
 
Leon Trotsky, na época, estava exilado da Rússia czarista, e residia em Viena enquanto escrevia para um jornal revolucionário, ele estava bastante ocupado com a articulação de suas ideias sobre a revolução socialista e o papel da classe trabalhadora na luta contra a opressão da monarquia Russa. Para Trotsky, Viena representava um lugar de relativa liberdade para organizar a oposição no exilio e planejar um futuro grandioso na sua pátria.
 
Joseph Stalin, ainda conhecido como Koba, estava em Viena por um breve período, também exilado e em busca de refúgio da perseguição do Império Russo. Era um verdadeiro trabalhador em prol da revolução, estava profundamente envolvido com as atividades do partido, observando atentamente seus colegas e o cenário político internacional, ele sem dúvidas dos citados, era ainda um nome menos conhecido, mas suas ambições já eram evidentes para aqueles que o conheciam.
 
Ludwig Wittgenstein, um jovem filósofo austero e introspectivo, estava na cidade durante uma pausa de seus estudos em Cambridge. Wittgenstein, que passava seus dias absorvido em questões filosóficas, lógica e linguagem, já começava a delinear as ideias que mais ta rde formariam a base de seus estudos, para ele, Viena era um lugar onde as questões sobre o significado e a expressão podiam ser exploradas em meio ao ruído e à confusão do mundo real.

O Lorde Rudolf von Lichtenberg, um aristocrata excêntrico e mecenas da intelectualidade vienense, fascinado por debates, decidiu convidar algumas mentes brilhantes para discutir e buscar influenciar o futuro da Europa e talvez, do mundo, a reunião visava juntar esses quatro personagens, Von Lichtenberg, conhecido por suas excentricidades, estava convencido de que a força de ssas ideias em ebulição poderia dar origem a uma nova era, ou ao menos lançar luz sobre os tempos conturbados que se aproximavam muito rapidamente. A carta-convite enviada aos participantes era direta, mas provocativa: “Em tempos de transformação, as mentes que melhor compreendem o passado e desafiam o presente são as únicas capazes de moldar o futuro. Reúnam-se em meu salão, a história pede sua contribuição.”
O salão estava repleto de livros antigos e mobília de época, com um leve aroma de tabaco impregnado no ar. Após algumas formalidades, a conversa se volta rapidamente para os tópicos que mais consumiam suas mentes: o iminente colapso do mundo como eles conheciam e as poss ibilidades de construir algo novo a partir das cinzas. Antes do início dos debates um serviçal serve bebidas, charutos e quitutes a todos, ficando apostos no canto da sala, para não deixar que nada falte aos ilustres convidados.  
 
Freud abre o debate, visivelmente preocupado: "Estamos diante de uma época de tensões incontroláveis, tanto dentro do indivíduo quanto na sociedade, a guerra não é apenas uma possibilidade, é uma consequência inevitável das repressõ es internas que cada um carrega. A psique humana está em um estado de conflito perpétuo, e a civilização não é mais do que uma camada fina que esconde nossos instintos mais primitivos. Vejam, por exemplo, o nacionalismo crescente — é um exemplo evidente do retorno ao instinto tribal, do desejo de destruir o 'diferente'."
 
Trotsky, profundamente idealista, contesta: "Camarada, a psique, como você a descreve, é moldada pelas condições materiais da sociedade. É o sistema de opressão que gera essas tensões internas, liberte o homem das correntes do capitalismo e ele floresce rá em algo novo, algo melhor, um novo ser humano em todo seu potencial. A verdadeira causa do conflito está fora, portanto, externo, não dentro, a Revolução Francesa, por exemplo, foi impulsionada pela necessidade pela de sobrevivência e justiça, não por impulsos inconscientes."
 
Stalin, analisando de forma prática, interrompe com uma voz firme: "Libertar o homem é um conceito romântico e muito subjetivo, o poder nas mãos dos trabalhadores isso sim é real. E quem detém o poder hoje são as elites burguesas e essas controlam a soc iedade, controlando assim as ideias, portanto até mesmo a psique humana que você tanto fala, Freud. Com esse controle opressivo, toda essa conversa é apenas filosofia simplista. Basta olhar para a Rússia: sem a disciplina do partido, qualquer movimento revolucionário cairá em uma semana."
 
Freud, não ficando intimidado, responde: "E é precisamente esse controle que alimenta o conflito, o que você chama de poder, Koba, é apenas uma outra forma de repressão. A mente humana não se submete facilmente; ela se rebela, e é isso que estamos prest es a ver em uma escala global, não é apenas uma revolução externa, mas interna, uma revolta contra os limites impostos à nossa liberdade. Veja o movimento expressionista na arte, que busca romper com as formas tradicionais — é a psique buscando desesperadamente se libertar."
 
Wittgenstein, até então observando com calma, finalmente intervém com uma reflexão aparentemente mais abstrata: "O que todos vocês parecem ignorar é que nossas discussões são, em última análise, sobre a forma como entendemos o mundo através da linguagem. 'Revolução', 'poder', 'psique' — essas palavras moldam nosso entendimento, mas são apenas representações figurativas. Nossa luta não é apenas contra as estruturas do poder ou os impulsos reprimidos, mas contra as limitações do nosso próprio pensamento. Pensem na confusão gerada por termos vagos como 'justiça' e 'liberdade'; o que significam, realmente? Será que significam o mesmo para cada um de nós aqui nessa sala? Já pensaram nisso?"
 
Trotsky, intrigado, desafia: "Wittgenstein, está sugerindo que nosso maior inimigo é a semântica? Qual palavra usamos para articular nossos sonhos de liberdade e justiça? Isso não parece uma questão prática no mundo real, para os milhões de traba lhadores que enfrentam a opressão diariamente. A linguagem não muda a necessidade de pão e dignidade, a linda experiência da Comuna de Paris não foi derrotada por palavras, mas por balas e canhões."
 
Wittgenstein, sem se abalar, responde: "Exatamente, o que você não percebe é que não há discordância concreta entre nossos pensamentos, a prática e a teoria não estão tão separadas quanto você faz imaginar. A forma como pensamo s determina a forma como agimos. Se não compreendermos os limites de nossas próprias concepções, estaremos destinados a repetir os mesmos erros, apenas mudando as bandeiras e os slogans, mas cometendo os mesmíssimos erros. A guerra que parece se aproximar é o resultado de conceitos nacionais e étnicos mal definidos, até fundamentalmente inexistentes, usados para mobilizar massas em nome de um 'inimigo' que na verdade foi inventado por interesses inconfessáveis."
 
Stalin, visivelmente impaciente, retruca: "Palavras não ganham batalhas, muito menos derrubam governos. Apenas agitação, organização e propaganda fazem isso, e apenas dessa forma podemos fazer a revolução, e assim levar as massas ao poder, você, Wittgenstein, fala de limites de pensamento, mas não vê que a história é feita pela ação, pela força e em último caso pela aniquilação do velho regime, sem isso, a revolução que Trotsky tanto deseja nunca passará de uma utopia frustrada, fadada apenas a virar literatura de ficção."
 
Freud, tentando mediar os extremos, propõe uma síntese: "Talvez o que precisamos seja uma compreensão mais holística. Sim, o poder é necessário para a ação, mas sem um entendimento profundo das motivações humanas, das forças inconscientes, qualquer revolução está fadada inevitavelmente a se tornar apenas mais uma forma de tirania. E, Wittgenstein, sua ênfase na linguagem é válida, mas devemos lembrar que, por trás das palavras, há emoções e desejos que as moldam. Aceito que a  verdadeira mudança precisa considerar tanto o interno quanto o externo, a tragédia das guerras são a repetição dos mesmos impulsos de poder que sempre dominaram a história."
 
Trotsky, aproveitando a deixa, comenta: "Então chegamos ao acordo que qualquer transformação verdadeira deve ser tanto interna quanto externa, mas não podemos esquecer que há uma urgência. O mundo está à beira de um colapso, e as massas nã o podem esperar por uma revolução do espírito, elas precisam de comida, trabalho e dignidade. E isso exige ação concreta, imediata, não apenas reflexão."
 
Freud, assentindo: "E talvez seja aí que resida o verdadeiro desafio, como equilibrar as necessidades prementes do presente com a compreensão mais profunda das raízes de nossos conflitos? Porque, sem essa compreensão, qualquer vitória será superficial e tempo rária, o conflito que se avizinha não será apenas um conflito entre nações, mas um reflexo das tensões internas de toda nossa civilização, as armas, destruição e mortes – tudo isso será apenas uma manifestação externa dos nossos impulsos mais primitivos reprimidos."
 
Trotsky, refletindo sobre as palavras de Freud, acrescenta: "Talvez, mas a história nos ensina que as condições materiais moldam a consciência, a  Independência  Americana, Revolução Francesa, todas foram movidas pela fome, pela opressão tangível. A teoria é vital, Freud, mas o impulso revolucionário nasce das ruas, fábricas, do campo, ou seja, da vida como ela se apresenta de verdade. Como eu disse lá atrás a Comuna de Paris caiu porque faltou uma organização centralizada e disciplinada, não porque falharam em compreender os desejos internos dos homens."
 
Stalin, concordando com Trotsky, complementa: "Exatamente, isso Camarada, a história não é feita por teóricos em salões confortáveis, mas por aqueles dispostos a sujar as mãos e fazer o que deve ser feito. As concessões que ocasionalmente possam os fazer, podem ser necessárias para ganhar um apoio mais amplo, mas, eventualmente, deverá ser o partido quem ditará os termos pelo bem do povo. A psique humana que você tanto explora, Freud, é apenas um detalhe que será superado quando o povo detiver os modos de produção, e romper os grilhões da opressão burguesa."
 
Freud, claramente insatisfeito com a simplificação de Stalin, responde com uma intensidade renovada: "O que você vê como um detalhe é, na verdade, o cerne de toda a nossa civilização, se ignorarmos a natureza humana – os desejos, os medos, os traum as – a construção de qualquer ordem social, seja socialista, nacionalista ou capitalista, estará sempre condenada a falhar. O inconsciente coletivo buscará formas de expressar sua insatisfação, e se isso não for compreendido e integrado, surgirão novos conflitos, e tudo recomeçará novamente e novamente, seja como revolução ou mais uma guerra."
 
Wittgenstein, tentando aproximar os pontos de vista com uma perspectiva mais filosófica, sugere: "E se todos nós estivermos presos a um erro fundamental? Vocês falam de revoluções externas e internas como se fossem processos separados, mas o verdadeiro limite pode se r a nossa incapacidade de ver além das nossas próprias e limitada categorias de pensamento. Tomemos o conceito de 'poder': para Stalin, é força; para Freud, é um jogo entre repressão e expressão; para Trotsky, é uma ferramenta de emancipação popular, mas, e se 'poder' for apenas uma palavra vazia que muda de forma conforme a nossa necessidade de sentido? Será que não deveríamos primeiro questionar o próprio alicerce sobre o qual estamos construindo essas ideias?"
 
Trotsky, movido pela provocação, rebate: "De verdade aceito a sua premissa, Wittgenstein, o que sugere, então? Que abandonemos a luta porque nossas palavras são imperfeitas? E que podem não refletir em completude o conceito individual que pensamos cada um e todos n& oacute;s? A sociedade não pode esperar por uma resolução final linguística enquanto morre hoje de fome. Sim a linguagem pode ser limitada, mas a necessidade de mudança é urgente e podemos precifica-la em vidas perdidas todos os dias."
 
Wittgenstein, com um sorriso enigmático, retruca: "Não sugiro inação, mas consciência, entender que nossas ações são moldadas pela forma como pensamos sobre elas pode evitar que caiamos nos mesmos erros de nossos antecessores. Considere a ascens& atilde;o dos nacionalismos extremistas: elas prosperam sobre a simplificação da linguagem – 'pureza', 'ordem', ‘deus’, 'pátria', ‘família’. A linguagem cria realidades, mas também as distorce, precisamos estar atentos a como definimos nossos propósitos e a quem servem essas definições."
 
Stalin, impaciente com os jogos de palavras, levanta-se abruptamente: "Enquanto vocês perdem tempo com abstrações, toda Europa está se armando para a guerra, cada dia de inação é um dia perdido para resolver o conflito antes que esse comece, eu, por exe mplo, prefiro estar no campo de batalha onde as decisões realmente são tomadas, onde a vitória não depende de palavras, mas de ação, se for preciso tenho determinação para tomar essas decisões, por mais difícil que possam ser. Como sei também, que nenhum de vocês teria estomago para fazer o mesmo."
 
Freud, observando Stalin, murmura com uma voz cheia de presságio: "Essa é exatamente a antessala da tragédia, a crença ilusória de que a força bruta e voluntarismo é a solução para os problemas humanos, isso historicamente é o que nos leva aos mesmos ciclos de violência. A mente humana é um campo de batalha muito mais complexo do que pensam, e sem uma verdadeira compreensão e integração e enfrentamento de nossos próprios demônios, continuaremos a repetir as mesmas tragédias, apenas com novas roupagens em um eterno círculo vicioso."
 
Trotsky, pensativo, conclui com um tom de esperança cautelosa: "Talvez, então, o verdadeiro desafio de nossa geração seja tentar unir essas perspectivas, reconhecer que precisamos da mão firme de Koba, da compreensão da mente humana de Freud e da cautela filo sófica de Wittgenstein, a utopia, como compreendo agora, não é um estado estático, ou um projeto definitivo, mas um esforço contínuo para equilibrar, o poder, compreensão e a sabedoria, em um processo tanto coletivo quanto individual de crescimento de toda humanidade."
 
Wittgenstein, olhando para o horizonte além das janelas do salão, murmura quase para si mesmo: "Ou talvez a utopia seja simplesmente um jogo de linguagem, uma meta que muda conforme tentamos defini-la, e ao chegar ao ponto que buscávamos ela já não está mais lá e sim muito mais a frente, e assim sucessivamente. Talvez, ao buscar respostas definitivas, estejamos perdendo de vista a verdadeira questão: como viver com nossas incertezas, como fazer paz com os paradoxos que somos e ainda assim aceitar nossas incertezas."
 
A conversa continua em uma teia complexa de ideias e confrontos intelectuais, refletindo as diversas visões e os brilhos individuais que definem cada um dos participantes. Trotsky visualiza um mundo sob a utopia proletária, Stalin vê a necessidade de fortalecer cada conquista antes de seguir adiante, Freud insiste na importância basilar de entender o inconsciente sem o qual nenhuma possibilidade de completude é possível, já Wittgenstein desafia a todos a repensar as bases de suas certezas, questionando até os fundamentos do que chamamos de realidade.
 
Enquanto o debate flui, de pé no fundo do salão, quase imperceptível aos olhares das grandes personalidades, estava o serviçal do Lorde, ele está atento a cada palavra da acalorada discussão, embora sua presença fosse insignificante aos convidados, ele abso rvia tudo com muito interesse e um profundo silêncio. Esse jovem, cujo destino se entrelaçaria tragicamente com o futuro da Europa, era  chamado Adolf Hitler. Pintor fracassado que, sem conseguir se destacar, havia aceitado o trabalho humilde na casa de Lichtenberg. Nos intervalos entre suas tarefas, ele se dedicava a leituras ultranacionalistas, alimentando uma visão cada vez mais sectária e odiosa do mundo. Desconhecido pelos gigantes que ali debatiam o futuro do mundo, sua sombra em breve começaria a se projetar sobre o futuro.

Ao final da tarde o anfitrião Von Lichtenberg, observa atentamente seus convidados se despedirem ao final dos debates, e este reflete sobre o peso histórico daquele encontro, embora sua tentati va de influenciar diretamente os destinos de seu tempo fosse ambiciosa, ele sabia que cada uma daquelas personalidades deixaria marcas indeléveis na história, por caminhos distintos, mas inevitavelmente marcantes. Cada um desses homens sairia para seguir seu próprio destino, levando consigo as marcas daquele encontro: uma reunião improvável de mentes em um momento de crises e oportunidades.

Viena naqueles dias, tornara-se um ponto de convergência para algumas das ideias mais poderosas e perigosas do século, um microcosmo das tensões que logo iriam explodir no palco da história global. A cidade, como seus célebres moradores, estava à beira de uma trans formação — uma transformação que seria tanto uma promessa quanto uma ameaça, conforme o velho mundo começava a desmoronar e um novo, cheio de incertezas e esperanças, começava a emergir.

Quanto ao jovem pintor fracassado que vagueava pelas sombras, este deixaria de ser apenas uma figura marginal, brevemente no futuro se tornaria a figura mais trágica e destrutiva de todas, conduzindo o mundo à maior guerra que a humanidade já havia testemunhado. Como Freud previra, essa guerra seria alimentada pelas forças reprimidas do inconsciente coletivo — um conflito nascido da luta pelo poder, do ressentimento e do ódio forjado na distorção da linguagem e na exclusão do outro.

Assim Viena, em 1913, era o prenúncio de uma tempestade, as pessoas que ali viveram, intelectuais, revolucionários e ditadores em potencial, carregavam em si as sementes de um século de conflitos e revoluções. E a cidade, que um dia fora o epicentro do pensamento livre e da cultura, ficaria para se mpre associada a um momento na história, ao ponto de virada que transformou o mundo para sempre.
 
*advogado, ex-Secretário Executivo de Direitos Humanos de Pernambuco

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