O papel do acaso na história
José Carlos Ruy, portal
Vermelho
A teoria da evolução e a ciência da história se defrontam com um
mesmo desafio: a contingência (o acaso), escreveu o biólogo Stephen Jay Gould
no livro “Vida Maravilhosa – O acaso na evolução
e a natureza da história”.A contingência, diz ele, é o “princípio
central de toda a história”. (Gould: 1990). Fundamenta assim uma compreensão de
inspiração dialética da evolução e da história.
A palavra contingência exige
uma pequena apresentação filosófica. Para os fins deste estudo, basta indicar
que significa aquilo que, para acontecer, depende das circunstâncias, que
indicam a possibilidade de fatos que, sendo possíveis, podem ou não ocorrer. A
contingência seria, de acordo com Gould, característica da história como
ciência – e também da teoria da evolução. Ele argumenta que, se fosse possível
refazer o caminho que levou do passado ao presente, nada garante que este se
repetiria exatamente da forma como ocorreu.
Gould polemizou em duas
frentes. Primeiro, enfrentou a visão do desenvolvimento histórico como
desdobramento necessário de um plano pré-estabelecido que conduziria do passado
ao presente. Depois, questionou as visões que exigem da história enquanto
ciência um poder de previsão que, nos detalhes, ela não pode ter.
No âmbito da teoria da evolução, Gould compreendeu o papel do
acaso na mudança dos seres vivos sob influência de fatores genéticos e de sua
interação com o meio ambiente. Influência ambiental que a biologia molecular
demonstrou ao ressaltar seu papel na variação das espécies (Gould: 1990; Mayr:
2009; Lewontin: 2000).
Gould distingue, entre os
princípios básicos das leis que regulam a evolução a contingência, que se
manifesta nos detalhes. E lembra que Darwin, ao debater com seu colaborador
estadunidense, o evolucionista Asa Gray – que tentou conciliar a teoria da
evolução com suas convicções religiosas – já havia reconhecido esta distinção.
A evolução é comandada por leis gerais, argumentou Darwin – mas o que determina
a sua particularidade é a contingência (o acaso). O universo, escreveu Darwin,
é regido pelas leis “com os detalhes, sejam bons ou ruins, deixados a cargo do
que podemos chamar de acaso” (cit. in Gould: 1990).
A outra questão é a
previsibilidade. Se a história como ciência não tem uma capacidade absoluta de
previsão, argumenta Gould, nem por isso o processo histórico será “algo
desprovido de sentido e de um padrão significativo”, como também ocorre com a
evolução dos seres vivos. Embora a “diversidade dos itinerários possíveis”
demonstre “claramente que os resultados finais não podem ser previstos no
início do processo”, cada etapa “tem a sua razão”. Da mesma forma como na
teoria da evolução, a “essência da história” é a contingência. Os complexos
eventos históricos – como os da evolução – não podem ser reduzidos “a simples consequências
das leis naturais” e, “embora os eventos históricos obviamente não violem
nenhum princípio geral acerca da matéria e dos movimentos, eles ocorrem no
âmbito dos detalhes contingentes” (Gould: 1990).
O reconhecimento do papel da contingência (do acaso) leva à
compreensão de que não há plano fixo e pré-determinado na história, à margem da
atividade prática dos homens e que oriente o rumo dos acontecimentos. Se há um
plano na história, Marx e Engels mostram que ele é elaborado cotidianamente
pelos homens durante o desdobramento de sua vida, no qual o acaso – o mesmo
acaso que Darwin reconheceu na evolução biológica – tem um papel importante. “A
história universal – escreveu Marx em 1852 – teria um caráter muito místico se
excluísse o acaso. Este acaso, bem entendido, faz parte do processo geral de
desenvolvimento, e é compensado por outras formas de acaso. Mas a aceleração ou
o atraso do processo dependem desses ‘acidentes’, incluindo o caráter
‘fortuito’ dos indivíduos que estão à cabeça do movimento na sua fase
inicial.”(Marx: 1969). Em uma carta, de 1877, Marx desenvolve essa ideia; chama
a atenção para o fato de que o reconhecimento do papel do acaso não autoriza
nenhum misticismo nem torna a história inacessível ao conhecimento. Ao
contrário, diz Marx, estudando “cada uma dessas evoluções separadamente e
então, comparando-as, é fácil encontrar a chave para a compreensão destes
fenômenos; mas nunca é possível chegar a esta compreensão usando o passe
partout (a chave-mestra) de alguma teoria histórico-filosófica
cuja grande virtude é permanecer acima da história” (cit. in Carr: 1982).
Este é um dos traços que
distinguem a história como ciência, que emprega “um tipo diferente de
explicação, baseado na comparação e na riqueza de dados provenientes da observação”,
diz Gould. A história não pode examinar diretamente o que aconteceu no passado,
da mesma forma como outras ciências (como a teoria da evolução ou a astronomia)
que se baseiam em inferências e nem sempre na “observação pura e simples”,
assegura. E defende, em outro patamar, a verificabilidade como critério
científico: “O que se exige com firmeza de todas as ciências – sejam históricas
ou convencionais – é uma verificabilidade confiável e não a observação direta
para efetuar os testes”. A explicação histórica, diz Gould, “não se baseia em
deduções diretas das leis da natureza, mas numa sequência imprevisível de
estados antecedentes onde qualquer grande alteração em qualquer etapa da
sequência teria modificado o resultado final que, portanto, depende ou está na
contingência de tudo o que aconteceu antes – a indelével e determinante
assinatura da história” (Gould: 1990).
O britânico Carr tratou deste
problema quando se referiu à previsibilidade na história. Inspirado em
formulações da física quântica, escreveu: “diz-se que não se aprendem lições da
história porque a história, ao contrário da ciência, não pode prever o futuro.
Esta questão está envolvida por um encadeamento de mal-entendidos”. Argumentou
que mesmo os cientistas já não estão “tão ansiosos como antes para falar sobre
as leis da natureza”. Carr se apoiou na física moderna (o princípio da
incerteza e a probabilística da física quântica) para dizer: mesmo os
cientistas convencionais “tratam apenas das probabilidades de ocorrerem
acontecimentos. A ciência hoje está mais inclinada a lembrar que a indução pode
logicamente levar apenas a probabilidades ou à crença razoável, e está mais
ansiosa em tratar seus pronunciamentos como regras gerais ou guias, cuja
validade pode ser testada apenas em ações específicas” (Carr: 1982).
Uma das consequências do reconhecimento do papel da contingência
(do acaso) no desenvolvimento histórico, é preciso enfatizar, é a compreensão
de que a história não tem um plano fixo e pré-determinado, à margem da
atividade prática dos homens.
A pergunta a se fazer, no exame
do passado, não é como ele deveria ter acontecido, mas como realmente
aconteceu; qual é o conjunto de fatos que precisam ser demonstrados e que
ilustram o caminho percorrido por uma sociedade até chegar ao que ela se tornou
hoje. Só assim se poderá compreender objetivamente o caminho percorrido pelo rio
das eras e demonstrar de forma científica seu
transcorrer, no qual a contingência tem papel tão decisivo. Marx, numa metáfora
inspirada comparou, no discurso que
pronunciou no aniversário do jornal operário inglês “The People’s Paper”, em 14
de abril de 1856, a revolução (e, por extensão, pode-se entender, a história) a
uma toupeira que cava sob a terra, sem que se saiba onde irá surgir. Mas
surgirá! (Marx: 1982).
Referências
Carr
Edward H. Carr. “Que é história?” Rio
de Janeiro, Paz e Terra, 1982
Gould,
Stephen Jay. “Vida Maravilhosa – O Acaso na Evolução e a Natureza da História”.
Cia das Letras, São Paulo, 1990
Lewontin,
Richard. “Biologia como ideologia: a doutrina do DNA”. Ribeirão Preto (SP),
Funpec, 2000.Marx,
Karl. “Discurso no aniversário de’The People’s Paper’ proferido em Londres, em
14 de abril de 1856”. In “Obras Escolhidas em três tomos”. Lisboa, Edições
Progresso, 1982
[Ilustração: Josef Albers]
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