14 maio 2020

E assim caminha Humanidade


O papel do acaso na história
José Carlos Ruy, portal Vermelho

A teoria da evolução e a ciência da história se defrontam com um mesmo desafio: a contingência (o acaso), escreveu o biólogo Stephen Jay Gould no livro “Vida Maravilhosa – O acaso na evolução e a natureza da história”.A contingência, diz ele, é o “princípio central de toda a história”. (Gould: 1990). Fundamenta assim uma compreensão de inspiração dialética da evolução e da história.
A palavra contingência exige uma pequena apresentação filosófica. Para os fins deste estudo, basta indicar que significa aquilo que, para acontecer, depende das circunstâncias, que indicam a possibilidade de fatos que, sendo possíveis, podem ou não ocorrer. A contingência seria, de acordo com Gould, característica da história como ciência – e também da teoria da evolução. Ele argumenta que, se fosse possível refazer o caminho que levou do passado ao presente, nada garante que este se repetiria exatamente da forma como ocorreu.
Gould polemizou em duas frentes. Primeiro, enfrentou a visão do desenvolvimento histórico como desdobramento necessário de um plano pré-estabelecido que conduziria do passado ao presente. Depois, questionou as visões que exigem da história enquanto ciência um poder de previsão que, nos detalhes, ela não pode ter.
No âmbito da teoria da evolução, Gould compreendeu o papel do acaso na mudança dos seres vivos sob influência de fatores genéticos e de sua interação com o meio ambiente. Influência ambiental que a biologia molecular demonstrou ao ressaltar seu papel na variação das espécies (Gould: 1990; Mayr: 2009; Lewontin: 2000).
Gould distingue, entre os princípios básicos das leis que regulam a evolução a contingência, que se manifesta nos detalhes. E lembra que Darwin, ao debater com seu colaborador estadunidense, o evolucionista Asa Gray – que tentou conciliar a teoria da evolução com suas convicções religiosas – já havia reconhecido esta distinção. A evolução é comandada por leis gerais, argumentou Darwin – mas o que determina a sua particularidade é a contingência (o acaso). O universo, escreveu Darwin, é regido pelas leis “com os detalhes, sejam bons ou ruins, deixados a cargo do que podemos chamar de acaso” (cit. in Gould: 1990).
A outra questão é a previsibilidade. Se a história como ciência não tem uma capacidade absoluta de previsão, argumenta Gould, nem por isso o processo histórico será “algo desprovido de sentido e de um padrão significativo”, como também ocorre com a evolução dos seres vivos. Embora a “diversidade dos itinerários possíveis” demonstre “claramente que os resultados finais não podem ser previstos no início do processo”, cada etapa “tem a sua razão”. Da mesma forma como na teoria da evolução, a “essência da história” é a contingência. Os complexos eventos históricos – como os da evolução – não podem ser reduzidos “a simples consequências das leis naturais” e, “embora os eventos históricos obviamente não violem nenhum princípio geral acerca da matéria e dos movimentos, eles ocorrem no âmbito dos detalhes contingentes” (Gould: 1990).
O reconhecimento do papel da contingência (do acaso) leva à compreensão de que não há plano fixo e pré-determinado na história, à margem da atividade prática dos homens e que oriente o rumo dos acontecimentos. Se há um plano na história, Marx e Engels mostram que ele é elaborado cotidianamente pelos homens durante o desdobramento de sua vida, no qual o acaso – o mesmo acaso que Darwin reconheceu na evolução biológica – tem um papel importante. “A história universal – escreveu Marx em 1852 – teria um caráter muito místico se excluísse o acaso. Este acaso, bem entendido, faz parte do processo geral de desenvolvimento, e é compensado por outras formas de acaso. Mas a aceleração ou o atraso do processo dependem desses ‘acidentes’, incluindo o caráter ‘fortuito’ dos indivíduos que estão à cabeça do movimento na sua fase inicial.”(Marx: 1969). Em uma carta, de 1877, Marx desenvolve essa ideia; chama a atenção para o fato de que o reconhecimento do papel do acaso não autoriza nenhum misticismo nem torna a história inacessível ao conhecimento. Ao contrário, diz Marx, estudando “cada uma dessas evoluções separadamente e então, comparando-as, é fácil encontrar a chave para a compreensão destes fenômenos; mas nunca é possível chegar a esta compreensão usando o passe partout (a chave-mestra) de alguma teoria histórico-filosófica cuja grande virtude é permanecer acima da história” (cit. in Carr: 1982).
Este é um dos traços que distinguem a história como ciência, que emprega “um tipo diferente de explicação, baseado na comparação e na riqueza de dados provenientes da observação”, diz Gould. A história não pode examinar diretamente o que aconteceu no passado, da mesma forma como outras ciências (como a teoria da evolução ou a astronomia) que se baseiam em inferências e nem sempre na “observação pura e simples”, assegura. E defende, em outro patamar, a verificabilidade como critério científico: “O que se exige com firmeza de todas as ciências – sejam históricas ou convencionais – é uma verificabilidade confiável e não a observação direta para efetuar os testes”. A explicação histórica, diz Gould, “não se baseia em deduções diretas das leis da natureza, mas numa sequência imprevisível de estados antecedentes onde qualquer grande alteração em qualquer etapa da sequência teria modificado o resultado final que, portanto, depende ou está na contingência de tudo o que aconteceu antes – a indelével e determinante assinatura da história” (Gould: 1990).
O britânico Carr tratou deste problema quando se referiu à previsibilidade na história. Inspirado em formulações da física quântica, escreveu: “diz-se que não se aprendem lições da história porque a história, ao contrário da ciência, não pode prever o futuro. Esta questão está envolvida por um encadeamento de mal-entendidos”. Argumentou que mesmo os cientistas já não estão “tão ansiosos como antes para falar sobre as leis da natureza”. Carr se apoiou na física moderna (o princípio da incerteza e a probabilística da física quântica) para dizer: mesmo os cientistas convencionais “tratam apenas das probabilidades de ocorrerem acontecimentos. A ciência hoje está mais inclinada a lembrar que a indução pode logicamente levar apenas a probabilidades ou à crença razoável, e está mais ansiosa em tratar seus pronunciamentos como regras gerais ou guias, cuja validade pode ser testada apenas em ações específicas” (Carr: 1982).
Uma das consequências do reconhecimento do papel da contingência (do acaso) no desenvolvimento histórico, é preciso enfatizar, é a compreensão de que a história não tem um plano fixo e pré-determinado, à margem da atividade prática dos homens.
A pergunta a se fazer, no exame do passado, não é como ele deveria ter acontecido, mas como realmente aconteceu; qual é o conjunto de fatos que precisam ser demonstrados e que ilustram o caminho percorrido por uma sociedade até chegar ao que ela se tornou hoje. Só assim se poderá compreender objetivamente o caminho percorrido pelo rio das eras e demonstrar de forma científica seu transcorrer, no qual a contingência tem papel tão decisivo. Marx, numa metáfora inspirada comparou, no discurso que pronunciou no aniversário do jornal operário inglês “The People’s Paper”, em 14 de abril de 1856, a revolução (e, por extensão, pode-se entender, a história) a uma toupeira que cava sob a terra, sem que se saiba onde irá surgir. Mas surgirá! (Marx: 1982).
Referências
Carr Edward H. Carr. “Que é história?” Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1982
Gould, Stephen Jay. “Vida Maravilhosa – O Acaso na Evolução e a Natureza da História”. Cia das Letras, São Paulo, 1990
Lewontin, Richard. “Biologia como ideologia: a doutrina do DNA”. Ribeirão Preto (SP), Funpec, 2000.Marx, Karl. “Discurso no aniversário de’The People’s Paper’ proferido em Londres, em 14 de abril de 1856”. In “Obras Escolhidas em três tomos”. Lisboa, Edições Progresso, 1982

[Ilustração: Josef Albers]

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