Deus, pátria e briga por canapés: por dentro de congressos da extrema direita europeia
Ali pude ver alianças sendo formadas, estratégias sendo criadas e projetos de lei nascerem
Andrea Dip/ICL Notícias
“Esquece, você não vai entrar”. Eu já estava há algumas semanas mandando e-mails para a organização do evento, para a embaixada do Brasil na Hungria, para a embaixada da Hungria no Brasil e nada. Conversava com amigos jornalistas com contatos mais importantes que os meus que também não tinham resposta.
Todos nós queríamos saber o que aconteceria naqueles três dias de reuniões entre representantes da cúpula da extrema direita mundial em maio de 2022. Na reunião estariam o primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orbán, o fundador do Partido Republicano chileno, José Antonio Kast, vários parlamentares e representantes de organizações ultraconservadoras dos Estados Unidos, Europa e América Latina.
Subi em um ônibus que saía de Berlim com pouco dinheiro e nenhuma certeza. 12 horas depois estava na Hungria.
“Pegue o trem de volta porque você está correndo risco aí. Todo mundo já foi embora, ativistas, jornalistas, professores. Orbán não tá pra brincadeira”, me alertou um membro do governo por telefone, enquanto eu tomava um café no lugar mais fresco que achei no centro de Budapeste e tentava, sem sucesso, fazer algum contato local. Mas eu já estava lá.
Botei o “disfarce” que tenho separado para entrevistar ultraconservadores, líderes religiosos e autoridades em geral (roupas que cobrem as tatuagens, basicamente), cheguei na porta do magnífico prédio da Hungarian Academy of Sciences e disse que estava lá pra assistir o evento. Perguntaram meu nome, disse o sobrenome que não uso como jornalista, jogaram no Google, não apareceu nada, me deixaram entrar.
Assim eu me infiltrei no meu primeiro congresso de extrema direita na Europa, o Transatlantic Summit IV Budapest 2022, que recebeu mais de 200 líderes políticos do mundo todo, coordenado pela organização Political Network for Values — que é tão chave para as movimentações da extrema direita no mundo que a organização de direitos humanos IPAS lançou um dossiê inteiro sobre ela em 2023. No documento, a organização define a rede como “o principal centro de networking e campo de treinamento para ativistas de extrema direita e líderes políticos que buscam diminuir ou extinguir os direitos das minorias e depreciar os sistemas multilaterais de direitos humanos” e aponta que alguns líderes e apoiadores do PNfV declararam afinidade com ditaduras históricas brutais e que suas raízes têm “origem no extremismo católico, paramilitar e messiânico, representado por organizações como El Yunque e Opus Dei”.
Para citar só um exemplo, entre os patrocinadores desse evento de 2022 estava a organização norte-americana Heritage Foundation, um think tank alinhado com o Partido Republicano e que promove islamofobia, é virulentamente anti-imigração e anti-refugiados, promove retórica e políticas anti-trans e, claro, apoia Donald Trump. A versão 2023 dessa conferência aconteceu na sede da ONU em NY — aquela na qual o deputado federal do PL Nikolas Ferreira discursou representando não apenas o Brasil mas a juventude da extrema direita mundial.
Mas em 2022 o presidente do Brasil ainda era Jair Bolsonaro e o país tinha uma comitiva no salão e um papel de destaque nesse metiê internacional, na figura da ex-secretária Nacional da Família, Angela Gandra. Na época, Gandra arrecadava assinaturas para o Consenso de Genebra, um acordo entre países para proibir o aborto em qualquer circunstância. Após a transição para o governo Lula, o Brasil deixou de fazer parte do acordo.
O combate à “ideologia de gênero” tomou grande parte das discussões. Viktor Orban, que desde 2010 transformou a Hungria no que o Parlamento Europeu denunciou como um “regime híbrido de autocracia eleitoral”, foi (e segue sendo) celebrado como um exemplo a ser seguido por governos autoritários de todo o mundo.
Ali eu pude ver alianças sendo formadas, estratégias sendo criadas e projetos de lei nascerem.
Desde então, me infiltrar nesses encontros, observar e entrevistar algumas destas figuras e até fazer cursos completos de formação conservadora para entender melhor esse crescimento acelerado da extrema direita no mundo, suas estratégias e conexões, se tornaram algo recorrente e importante para minhas investigações. Porque não se tratam de encontros entre conspiracionistas malucos, incels, coachs ou neonazistas carecas com suásticas costuradas nas jaquetas. Estes eventos, que acontecem com bastante frequência, têm financiamentos milionários e reúnem um pessoal com poder de tomada de decisão, gente que tem “a caneta na mão”.
Não é uma tarefa agradável na grande maioria das vezes. Mas algumas vezes é interessante — como, por exemplo, quando me infiltrei em uma conferência de nacionalistas conservadores em Bruxelas em que os palestrantes disparavam mensagens neonazistas e fascistas de ódio contra imigrantes, muçulmanos, contra a comunidade LGBTQIA+, os globalistas, as feministas, a União Europeia, George Soros, etc. e a polícia, a mando do prefeito que não concordava com o tom do evento, fechou a porta do prédio. Quem estava dentro podia sair, mas quem estava fora não poderia mais entrar. Passadas algumas horas de confinamento, na hora do almoço, o movimento antifascista local conseguiu boicotar a entrada de comida na conferência.
As cenas seguintes nunca mais vão sair da minha memória. Apareceram uns poucos petiscos que talvez estivessem guardados para o café da tarde no fundo do salão, e vi homens e mulheres correrem para disputar pedaços de salmão defumado, enfiando múltiplos canapés de camarão na boca, molho escorrendo nos ternos alinhados, enquanto as palestras seguiam acontecendo como se alguém estivesse ouvindo.
É sobre incursões nesse mundo da extrema direita, suas conexões transnacionais e estratégias para incidir diretamente sobre leis e direitos, e sobre qual é o lugar do Brasil nesse mapa, que pretendo escrever nesta nova coluna semanal no ICL Notícias. Te espero aqui às quartas-feira
Leia também: https://lucianosiqueira.blogspot.com/2024/06/resistencia-finlandesa.html
A extrema direita sempre existiu; a grande dificuldade, no entanto, está na subordinação causada pela falta de consciência de classe. Essa é apenas uma percepção enquanto leitora.
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