03 novembro 2024

João Ubaldo Ribeiro, uma obra

Os 40 anos de 'Viva o Povo Brasileiro': o Brasil e o vazio
O grande país ainda não se fez, segue se digladiando nas próprias entranhas, e dessa luta surge quase milagrosamente o melhor de nós
Conceição Freitas/Folha de S. Paulo  

Neste Natal que se aproxima, completam-se 40 anos do lançamento de "Viva o Povo Brasileiro", obra magistral de João Ubaldo Ribeiro (1941-2014). O brasileiríssimo baiano de Itaparica era ele mesmo um personagem literário, a picardia combinada com a erudição (nunca tive qualquer contato pes soal com ele, mas aqui escrevendo ouço a voz rouca quase sempre dizendo alguma ironia, os gestos largos, um jeito botequeiro, um deixa estar pra ver como é que fica, um brasileiro quase caricato que ri da própria erudição).

Desde o making of, o livro já surgiu como a cara da gente brasileira. A começar pela foto de quando João Ubaldo, depois de três anos, entrega o texto ao editor, na era pré-digital. Cinco grossos volumes encadernados em espiral, tamanho A4, foram pesados numa bandeja de balança antiga, daquelas de prato, e o escritor sem camisa, pele puro bronze, sorri para a câmera ao lado de um homem com a camisa toda aberta. Os dois estão numa vendinha de prateleira e balcão de madeira. Se até então não se podia dizer que era um grande livro, sem dúvida já era um livro grande: 673 páginas, pesando 6,6 kg, o peso de um recém-nascido gigante. 

Sempre que perguntavam a João Ubaldo como surgiu "Viva o Povo Brasileiro", ele respondia: "Eu queria escrever um livro grande". A essa altura, 1984, o baiano já havia publicado sete títulos, dos quais três romances e dois livros de contos, conquistado prêmios, lançado edições estrangeiras, sido convidado para cursos e temporadas no exterior —todo o pacote de um escritor prestigiado. Já tinha vertido "Sargento Getúlio" para o inglês; coisa rara de se ver, um escritor com pleno domínio literário de duas línguas. Nenhum de seus livros, porém, havia passado das 200 e poucas páginas.

O novo precisava ser grande porque João Ubaldo queria responder ao pai, que não gostava de livros "que não ficam em pé". E também porque continuava engasgado com certo editor que lhe teria dito que os escritores brasileiros "só escrevem essas merdinhas que a gente lê na ponte aérea", segundo relato de Rodrigo Lacerda no prefácio da edição comemorativa dos 30 anos do lançamento de "Viva o Povo Brasileiro (ed. Alfaguara, 2014).

Para tentar se aproximar da alma brasileira, João Ubaldo juntou um mafuá de personagens: escravizados, pescadores, gente da roça, lavadeira, costureira, empresário, poeta, militares, padres e até um comunista chamado Stalin José, recriando assim miticamente um Brasil feito de Brasis, a partir do epicentro do romance, Itaparica. 

Leio "Viva o Povo Brasileiro" e reconheço o meu país, a mim mesma e aos do meu sangue antes de mim. Procuro o Brasil, procuramos o Brasil, como quem procura a si mesma, brasileira do pé à cabeça, neta de indígena, preta e portuguesa.

País tão extenso, múltiplo, inconcluso, fraturado, mestiço, musical, festeiro, afetivo, hospitaleiro, religioso, conservador, dissimulado, invasivo, cruel e ponha aí mais um tanto de adjetivos. Não é o Brasil, são os Brasis como no ensaio de Gilberto Freyre, "Brasis, Brasil, Brasília" (Record, 1968), outro que viveu de procurar o Brasil.

Depois de "Viva o Povo Brasileiro", dois livros grandes também se confirmaram grandes livros, e na mesma toada de contar histórias trágicas e míticas de um lugar gigante que virou um país. "Um Defeito de Cor" (952 páginas!), de Ana Maria Gonçalves, e "A Queda do Céu" (729 páginas), de Davi Kopenawa e Bruce Albert. Juntos, os três somam 2.354 páginas, que, naquela balança de Itaparica, entregues em papel ofício, pesariam 16 quilos e 475 gramas.

Pois não somos um país grande? Ocupar essa imensidão de território com a língua portuguesa, arrastando o espanhol para as bordas do continente, é um feito colonizador extraordinário.

Mas o grande país ainda não se fez, segue se digladiando nas próprias entranhas, e dessa luta segue surgindo quase milagrosamente o melhor de nós em forma de tudo o quanto é belo, bonito e verdadeiro —e não apenas na balança da literatura, mas dos muitos modos fabulosos com que o Brasil segue contando a si mesmo enquanto o céu não cai.

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