Mergulhar fundo para avançar na
superfície
Luciano Siqueira*/Fundação Maurício Grabois www.grabois.org.br
O imediatismo e a superficialidade sempre conspiraram contra a atividade política consequente. No passado, sob muitas formas; no tempo presente, acrescidas do impacto dos avanços tecnológicos e das transformações no mundo do trabalho e no modo como as pessoas se informam e formam opinião, sob forte influência da comunicação digital.
Há como que uma conspiração permanente contra a análise concreta da
realidade na profundidade que a luta transformadora reclama.
Entretanto, mais do que nunca, aos que se batem pela causa
revolucionária há que se se inspirar nos bons poetas: a partir de cada fato,
muitas vezes aparentemente fortuito, estabelecer as relações entre o particular
e o geral e deslindar o que há de essencial nos fenômenos presentes — sob o
crivo da teoria marxista-leninista renovada e do descortino político
consequente.
Parece óbvio, mas não é — a julgar pelo persistente comportamento espontaneista
e fragmentário dominante na militância de esquerda.
ELEIÇÕES MUNICIPAIS, UM EXEMPLO
Tão logo se fecharam as urnas no segundo turno do último pleito
municipal, surgiram as mais diversas análises do que se tem denominado “derrota
da esquerda”.
O mapa geral das eleições até confirma essa assertiva. Pelo menos cinco
grandes legendas de centro e de centro-direita (incluindo a extrema direita) – PSD,
PP, MDB, PL e União Brasil - conquistaram nada menos do que 68 prefeituras das
103 cidades com 200 mil eleitores e mais (incluindo as capitais), correspondentes
a 38% do eleitorado nacional (60,5 milhões de eleitores), conforme dados
oficiais do TSE-Tribunal Superior Eleitoral.
Fácil identificar quem ganhou e quem perdeu. Complexo é compreender as
razões.
Daí a escapatória, por parte de analistas de diversas colorações, ao
concentrarem o foco no que consideram "discurso defasado da
esquerda", a ponto de se colocar a plano absolutamente secundário, por
exemplo, o uso das emendas ao Orçamento, discricionárias, que põem nas mãos dos
parlamentares poderoso instrumento passivo de práticas “fisiológicas”
destinadas a manter e ampliar o controle do poder municipal.
“Em termos nominais, as emendas
parlamentares saíram de R$ 6,14 bilhões em valores empenhados em 2014 para um
montante autorizado de R$ 44,67 bilhões em 2024. As emendas, que correspondiam
a 3,95% do conjunto das despesas discricionárias em 2014, chegaram a um pico de
28,78% em 2020 e, em 2024, devem representar 20,03% das discricionárias. Em
2014, das transferências federais diretas para municípios, estados e entidades
privadas, isto é, dos recursos discricionários não executados diretamente pela
União, 83% foram feitas pelo Executivo federal e 17% foram emendas do
Legislativo (esses valores não incluem fundos de participação). Em 2023, as
transferências do Executivo foram 54% do total, e as do Legislativo (emendas),
46%”. (1), uma das expressões mais contundentes do que Ronald Freitas caracteriza
como “parlamentarismo informal”, uma das faces da "disfuncionalidade do Estado”
hoje operante no país (2).
Demais, a absurda disparidade de recursos financeiros postos à
disposição das legendas partidárias mediante o Fundo Partidário e o Fundo
Eleitoral, proporcionalmente ao tamanho atual das bancadas parlamentares, há
que ser considerada importante fator de desigualdade na disputa pelo voto.
Isto em ambiente dominante no país em que, apesar da reconquista da
presidência da República, com a eleição de Lula, a correlação de forças se mantém
essencialmente adversa.
FENÔMENO MUNDIAL
É certo que há também outras razões que contribuem para o
enfraquecimento das correntes de esquerda no Brasil. Uma delas, o
distanciamento progressivo da militância partidária em relação às massas trabalhadoras
e ao povo, concomitantemente com o enfraquecimento das entidades
representativas, a partir dos sindicatos e envolvendo outras organizações da
luta popular.
Porém o buraco é mais embaixo, como se costumava dizer no século passado,
e se insere numa conjuntura mundial adversa.
A título de exemplo, tomemos como referência as últimas eleições para o
Parlamento Europeu, onde se verifica que predomina naquele continente tendência
à direita e à extrema direita.
A extrema
direita tem crescido de forma
constante na Europa desde a virada do século. Hoje é a principal força política
na Itália (Frères d’Italie), na França (RN), na Hungria (Fidesz-Hungarian Civic
Union), na Holanda (PVV Partij voor de Vrijheid, de Geert Wilders) e na Áustria
(FPÖ). E a segunda maior força na Alemanha (AFD) e na Bélgica (3).
E sob multifacetado cenário de agravamento da crise do sistema
capitalista imperante, onde pontificam a ultra concentração da produção, da
renda e da riqueza e a exclusão do mundo produtivo de crescentes massas
trabalhadoras, o sistema mobiliza variados e complexos mecanismos no sentido de
manter a ordem vigente e dificultar a revolta dos excluídos.
No exercício do poder, o capital financeiro internacional imbricado com
a classe dominante dos países em desenvolvimento (no caso do Brasil, sobretudo
em aliança com o rentismo e o grande agronegócio exportador), impõe às
economias desses países rígido arcabouço ultraliberal, de que o dogma do
chamado equilíbrio fiscal faz parte como instrumento de pressão sobre os
governos (4).
Demais, crescente e multifacetada é a combinação entre os meios
tradicionais de dominação ideológica e a comunicação digital, sob controle das big techs,
que lastreiam mecanismos como a chamada guerra cultural e a manipulação e venda
de dados como fator de acumulação do capital e refinada extração da mais-valia mediante
a dominação dos trabalhadores pela algoritimização da vida (5).
Na vida cotidiana, uma pressão permanente pela dispersão na consciência
do indivíduo, dificultando não apenas referências de espaço, tempo e lugar; como
atropelando a tomada de consciência de classe.
Sem dúvida, fatores que conspiram, no limite atual das democracias
liberais, para o descendente desempenho eleitoral das esquerdas, e dos
comunistas em particular, na maioria dos países da Europa e da América do Sul.
NOVAS FORMAS DE LUTA E DE ORGANIZAÇÃO
Nessas circunstâncias, vale a assertiva de Lênin de que cada conjuntura
implica na possibilidade de novas formas de luta e de organização, obviamente
sem negar práticas que persistem como válidas (6).
O competente exercício da relação entre teoria e prática, portanto, se
apresenta hoje marcado por desafios de ordem a) teórica (evolução do pensamento
estratégico compatível com a nova luta pelo socialismo); b) política
(reafirmação do proletariado como força de vanguarda sob novas condições, no
exercício de orientação tática verdadeiramente ampla, flexível e consequente) e
c) reinvenção da ação militante coletiva
no seio do movimento de massas real.
Portanto, desafio muito mais complexo e bem além do que a reducionista
"solução" do ajuste da agenda imediata para dar conta da influência
crescente do ideário retrógrado disseminado pela extrema direita.
Referências
(1)
Schymura, Luiz Guilherme: Aumento de emendas sinaliza necessidade de nova
cultura orçamentária. IBRE (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação
Getúlio Vargas). Revista Conjuntura Econômica, 9/4/2024
(2) Freitas,
Ronald: O Estado brasileiro e seus desafios no século XX! (uma breve história).
Fundação Maurício Grabois/Editora Observador Legal
(3) Eric
Tousaint: Versão 2.0: Uma Europa rumo à direita e à extrema direita. Comitê
para a abolição das dívidas ilegítimas, 1 de agosto de 2024
(4) Grupo de Pesquisa
Desenvolvimento Nacional e Socialismo da Fundação Maurício Grabois: Cortes
defendidos pelo mercado financeiro trarão menos crescimento e mais
desigualdade. Portal da Fundação Maurício Grabois www.grabois.org.br 14.11.24
(5) Salles,
Herbert: Algoritmização: controle social na era da economia digital. Le Monde
Diplomatique, maio de 2024
(6) Lênin,
Vladimir Ilitch: Que fazer? – problemas candentes do nosso movimento (capítulo
III). Edições Avante.
Luciano Siqueira é membro do Comitê Central do PCdoB, integrante do Grupo de Pesquisa da Fundação Maurício Grabois sobre a Extrema-Direita e o Neofascismo.
[Ilustração: imagem Premium gerada por IA/domínio público)
Leia: O mundo cabe numa organização de base https://lucianosiqueira.blogspot.com/2023/05/minha-opiniao_18.html
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