05 dezembro 2024

Abraham Sicsú opina

Jogada de mestre
Abraham B Sicsu  

Diz-se muito da polaridade irreconciliável entre a extrema direita e a esquerda no Brasil. País dividido e sem nenhuma perspectiva de entendimento. Eu mesmo escrevi alguns textos sobre isso e o mal que causa ao desenvolvimento, à busca de melhoria de condições de vida no país.

Verdade, não tenho dúvida. Porém, acredito que há uma outra polaridade tão nociva quanto. Um projeto social defendido por um Governo eleito versus uma sociedade rentista defendida pelo dito mercado financeiro. Desde a eleição, mesmo antes da posse, a querela, a discordância estabelecida, se fez notar.

Querer impor um governo meramente fiscalista, em que o objetivo principal seja a manutenção da escorchante margem de lucro das aplicações financeiras, em que se ignore um programa de campanha que se baseava em busca de maior dignidade aos menos favorecidos, é o discurso dos próceres da Faria Lima.

Com um grande poder sobre o Banco Central, sobre a mídia nacional, sobre os meios de comunicação, vende-se a idéia de que o país está em situação terrível, que vai se tornar ingovernável, um país perdulário e sem direção.

Um ex ministro da Fazenda, Guedes, chegou a afirmar que se fossem assumidas visões propaladas pelo Governo de esquerda, o “Brasil pode virar a Argentina em seis meses e a Venezuela em um ano e meio... “, em 2022, quando a Argentina ainda tinha uma concepção política não ligada ao campo ideológico da extrema direita.

Uma semana de terror. A vivida nesta semana. O prenúncio do caos. Tudo vai desmoronar. O dólar foi às alturas, a Bolsa caiu vertiginosamente. O Mercado Financeiro se manifesta de uma maneira explosiva. No meu entender nada que não seja temporário, não há nenhuma razão para esta postura. A não ser a insatisfação com um pacote de corte de gastos que vem no sentido de não desvirtuar a proposta do plano de governo. Queria-se outro perfil e não foi o que se viu.

Cortar as áreas de saúde, educação, ciência e tecnologia, era o que se propagava. Diziam que era necessário voltar aos princípios neoliberais, à idéia preconcebida de que o único caminho era uma postura fiscalista que obrigasse a diminuição do Estado como regulador da atividade econômica, que fizesse com que os programas sociais fossem desativados e reduzidos ao máximo, que diminuísse o ritmo do crescimento, que permitisse uma valorização crescente do capital especulativo e financeiro.

Estranho salientar que esta semana, a mesma do caos, os dados divulgados, contrariam em muito essa visão.

O desemprego foi ao menor nível da série histórica, a expectativa de vida cresceu a índice maior do que havia na pré pandemia, o crescimento econômico se manteve bem acima das expectativas do início do ano. Mesmo a inflação, embora em alta, ainda se mantém dentro da banda pré-definida. Isso tudo, com a dita política do “caos” aventada pelos meios de comunicação.

Neste cenário, cabe uma reflexão sobre o que vem ocorrendo politicamente e como vem se administrando a situação.

Evidentemente não é nada cômodo estar em minoria nas duas Câmaras do Parlamento. Difícil implementar uma política econômica que contradiz os preceitos de teorias que vem no mercado a solução para todos os desajustes, mesmo estruturais.

Sempre há reações contrárias e desvirtuamento das medidas propostas pelo Governo. É necessário um gênio político para saber como enfrentá-los, saber o momento certo, como não permitir ser direcionado por preconceitos econômicos liberais. Preciso ter posturas que, às vezes, são incompreensíveis no primeiro olhar do cidadão comum, fundamentais para não cair nas armadilhas dos que não querem que o plano vitorioso eleitoral seja implantado..

No início do Governo, fundamental era retirar o Teto de Gastos, o qual praticamente impedia ações nas áreas sociais e mesmo ambientais. Também, era importante fazer uma reforma financeira voltada para minorar distorções fragrantes como os subsídios excessivos ao capital. Mais, minorar ao máximo as fraudes, os usos políticos de programas sociais, as distorções advinda de emendas parlamentares obscuras. Não se conseguiu tudo e muito menos se aproximou do ideal. Mas, o ajuste fiscal e a reforma tributária avançaram, foi importantíssimo para manter propostas do plano de governo.

As críticas continuaram com uma ferocidade impressionante. “É um governo gastador, só faz ajustes pelo aumento das receitas, nada se propõe para o ajuste das despesas.”

Uma longa e árdua negociação se inicia. Um gênio político se manifesta. É ano eleitoral, não se deve mexer muito. Deixemos para depois das eleições. Mas, começam as articulações, começam os debates. Mais de seis meses de conversa. E o Presidente não se manifesta publicamente. Mas, articula, muito bem, nos bastidores.

Notícias tenebrosas começam a sair. A educação sofrerá muito. A saúde terá fortes cortes em seus limites constitucionais. Ciência e tecnologia terão os seus fundos que foram reconstituídos recentemente, novamente contigenciados. O desmonte da proposta era claro. O Governo teria que abandonar seus sonhos de um país menos desigual e retornar ao modelo ultra liberal. Não haveria o que fazer. Todos que acreditaram numa mudança ficariam frustrados.

Esta semana, novas reuniões e, finalmente seria apresentado o pacote. Os mercados eufóricos, não viam como não serem atendidos, não conseguiam observar outro caminho. Reclamavam da demora, mas tinham a convicção de que tudo se arranjaria a seu modo.

Últimas reuniões. Presidente participa e tem que dar seu aval. Reúne-se com lideranças, com os presidentes do parlamento e até o futuro presidente do Banco Central participa.

Um pronunciamento em rede televisiva. Cabe ao Ministro da Fazenda fazer o anúncio. Começam a vazar as informações. A perplexidade se impõe. Não é bem o esperado. Uma jogada de mestre é dada, idealizada por um gênio político.

Vai ser anunciado um corte nas despesas, claro. Mas se anunciaria, também, uma reforma no perfil da renda. A tributação mudaria.

Os de classe média baixa, aqueles que ganham até 5 mil reais mês, teriam a perspectiva de não serem tributados a partir de 2026, promessa de campanha. Em compensação, os de renda mais alta, aqueles que ganham mais de 50 mil reais mês começariam, sim, porque até hoje são quase isentos, a contribuir para o desenvolvimento da nação. Evidentemente se poderia aprofundar isso, acabando, por exemplo, com os subterfúgios que protegem os super salários no setor público,  mas, sem dúvida, é um avanço difícil de ser contraditado.

Reações começam a existir. O presidente da Câmara já disse que tem que ser analisado com ”muita calma”, o mercado financeiro colocou o dólar nas alturas. A Bolsa flutua negativamente. Mas, é quase impossível se opor publicamente aos princípios que regem essa reforma na renda.

Quanto ao corte das despesas, ele é duro e traz dificuldades no curto prazo. As medidas do salário mínimo e do abono salarial têm impactos não só econômicos, mas sociais também. No entanto, atrelar aumento das ementas parlamentares a regras do arcabouço fiscal, segurar subsídios a segmentos apaniguados atrelando ao aumento de receitas, faz acreditar num país mais justo e mais ético.

O anúncio, que desagradou ao mercado financeiro e à mídia, vem trazer um resgate das propostas de campanha e do plano que está acontecendo. Que faz com que se tenha mais dignidade, em que o desemprego chega a níveis menos explosivos, em que a inflação não foge do controle, em que a renda e a expectativa de vida crescem.

Esta jogada não foi prevista pela Faria Lima, pelos desejosos do caos para os outros para melhor se locupletarem. Apenas um gênio político esperaria os seis meses e atrelaria as mudanças ao que realmente importa no seu plano de governo: Um País menos desigual.

*Professor aposentado do Departamento de Engenharia de Produção da Universidade Federal de Pernambuco e pesquisador aposentado da Fundação Joaquim Nabuco

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