Jogada de mestre
Abraham B Sicsu
Diz-se muito da polaridade irreconciliável entre a extrema direita e a esquerda no Brasil. País dividido e sem nenhuma perspectiva de entendimento. Eu mesmo escrevi alguns textos sobre isso e o mal que causa ao desenvolvimento, à busca de melhoria de condições de vida no país.
Verdade, não tenho
dúvida. Porém, acredito que há uma outra polaridade tão nociva quanto. Um
projeto social defendido por um Governo eleito versus uma sociedade rentista
defendida pelo dito mercado financeiro. Desde a eleição, mesmo antes da posse,
a querela, a discordância estabelecida, se fez notar.
Querer impor um
governo meramente fiscalista, em que o objetivo principal seja a manutenção da
escorchante margem de lucro das aplicações financeiras, em que se ignore um
programa de campanha que se baseava em busca de maior dignidade aos menos
favorecidos, é o discurso dos próceres da Faria Lima.
Com um grande poder
sobre o Banco Central, sobre a mídia nacional, sobre os meios de comunicação,
vende-se a idéia de que o país está em situação terrível, que vai se tornar
ingovernável, um país perdulário e sem direção.
Um ex ministro da
Fazenda, Guedes, chegou a afirmar que se fossem assumidas visões propaladas
pelo Governo de esquerda, o “Brasil pode virar a Argentina em seis meses e a
Venezuela em um ano e meio... “, em 2022, quando a Argentina ainda tinha uma
concepção política não ligada ao campo ideológico da extrema direita.
Uma semana de terror.
A vivida nesta semana. O prenúncio do caos. Tudo vai desmoronar. O dólar foi às
alturas, a Bolsa caiu vertiginosamente. O Mercado Financeiro se manifesta de
uma maneira explosiva. No meu entender nada que não seja temporário, não há
nenhuma razão para esta postura. A não ser a insatisfação com um pacote de
corte de gastos que vem no sentido de não desvirtuar a proposta do plano de
governo. Queria-se outro perfil e não foi o que se viu.
Cortar as áreas de
saúde, educação, ciência e tecnologia, era o que se propagava. Diziam que era
necessário voltar aos princípios neoliberais, à idéia preconcebida de que o
único caminho era uma postura fiscalista que obrigasse a diminuição do Estado
como regulador da atividade econômica, que fizesse com que os programas sociais
fossem desativados e reduzidos ao máximo, que diminuísse o ritmo do
crescimento, que permitisse uma valorização crescente do capital especulativo e
financeiro.
Estranho salientar
que esta semana, a mesma do caos, os dados divulgados, contrariam em muito essa
visão.
O desemprego foi ao
menor nível da série histórica, a expectativa de vida cresceu a índice maior do
que havia na pré pandemia, o crescimento econômico se manteve bem acima das
expectativas do início do ano. Mesmo a inflação, embora em alta, ainda se
mantém dentro da banda pré-definida. Isso tudo, com a dita política do “caos” aventada
pelos meios de comunicação.
Neste cenário, cabe
uma reflexão sobre o que vem ocorrendo politicamente e como vem se
administrando a situação.
Evidentemente não é
nada cômodo estar em minoria nas duas Câmaras do Parlamento. Difícil
implementar uma política econômica que contradiz os preceitos de teorias que
vem no mercado a solução para todos os desajustes, mesmo estruturais.
Sempre há reações
contrárias e desvirtuamento das medidas propostas pelo Governo. É necessário um
gênio político para saber como enfrentá-los, saber o momento certo, como não
permitir ser direcionado por preconceitos econômicos liberais. Preciso ter
posturas que, às vezes, são incompreensíveis no primeiro olhar do cidadão
comum, fundamentais para não cair nas armadilhas dos que não querem que o plano
vitorioso eleitoral seja implantado..
No início do Governo,
fundamental era retirar o Teto de Gastos, o qual praticamente impedia ações nas
áreas sociais e mesmo ambientais. Também, era importante fazer uma reforma
financeira voltada para minorar distorções fragrantes como os subsídios
excessivos ao capital. Mais, minorar ao máximo as fraudes, os usos políticos de
programas sociais, as distorções advinda de emendas parlamentares obscuras. Não
se conseguiu tudo e muito menos se aproximou do ideal. Mas, o ajuste fiscal e a
reforma tributária avançaram, foi importantíssimo para manter propostas do
plano de governo.
As críticas
continuaram com uma ferocidade impressionante. “É um governo gastador, só faz
ajustes pelo aumento das receitas, nada se propõe para o ajuste das despesas.”
Uma longa e árdua
negociação se inicia. Um gênio político se manifesta. É ano eleitoral, não se
deve mexer muito. Deixemos para depois das eleições. Mas, começam as
articulações, começam os debates. Mais de seis meses de conversa. E o
Presidente não se manifesta publicamente. Mas, articula, muito bem, nos
bastidores.
Notícias tenebrosas
começam a sair. A educação sofrerá muito. A saúde terá fortes cortes em seus
limites constitucionais. Ciência e tecnologia terão os seus fundos que foram
reconstituídos recentemente, novamente contigenciados. O desmonte da proposta
era claro. O Governo teria que abandonar seus sonhos de um país menos desigual
e retornar ao modelo ultra liberal. Não haveria o que fazer. Todos que acreditaram
numa mudança ficariam frustrados.
Esta semana, novas
reuniões e, finalmente seria apresentado o pacote. Os mercados eufóricos, não
viam como não serem atendidos, não conseguiam observar outro caminho.
Reclamavam da demora, mas tinham a convicção de que tudo se arranjaria a seu
modo.
Últimas reuniões.
Presidente participa e tem que dar seu aval. Reúne-se com lideranças, com os
presidentes do parlamento e até o futuro presidente do Banco Central participa.
Um pronunciamento em
rede televisiva. Cabe ao Ministro da Fazenda fazer o anúncio. Começam a vazar
as informações. A perplexidade se impõe. Não é bem o esperado. Uma jogada de
mestre é dada, idealizada por um gênio político.
Vai ser anunciado um
corte nas despesas, claro. Mas se anunciaria, também, uma reforma no perfil da
renda. A tributação mudaria.
Os de classe média
baixa, aqueles que ganham até 5 mil reais mês, teriam a perspectiva de não
serem tributados a partir de 2026, promessa de campanha. Em compensação, os de
renda mais alta, aqueles que ganham mais de 50 mil reais mês começariam, sim,
porque até hoje são quase isentos, a contribuir para o desenvolvimento da
nação. Evidentemente se poderia aprofundar isso, acabando, por exemplo, com os
subterfúgios que protegem os super salários no setor público, mas, sem dúvida, é um avanço difícil de ser
contraditado.
Reações começam a
existir. O presidente da Câmara já disse que tem que ser analisado com ”muita
calma”, o mercado financeiro colocou o dólar nas alturas. A Bolsa flutua
negativamente. Mas, é quase impossível se opor publicamente aos princípios que
regem essa reforma na renda.
Quanto ao corte das
despesas, ele é duro e traz dificuldades no curto prazo. As medidas do salário
mínimo e do abono salarial têm impactos não só econômicos, mas sociais também.
No entanto, atrelar aumento das ementas parlamentares a regras do arcabouço
fiscal, segurar subsídios a segmentos apaniguados atrelando ao aumento de
receitas, faz acreditar num país mais justo e mais ético.
O anúncio, que
desagradou ao mercado financeiro e à mídia, vem trazer um resgate das propostas
de campanha e do plano que está acontecendo. Que faz com que se tenha mais
dignidade, em que o desemprego chega a níveis menos explosivos, em que a
inflação não foge do controle, em que a renda e a expectativa de vida crescem.
Esta jogada não foi
prevista pela Faria Lima, pelos desejosos do caos para os outros para melhor se
locupletarem. Apenas um gênio político esperaria os seis meses e atrelaria as
mudanças ao que realmente importa no seu plano de governo: Um País menos
desigual.
*Professor aposentado do Departamento de Engenharia de Produção da Universidade Federal de Pernambuco e pesquisador aposentado da Fundação Joaquim Nabuco
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