Fascismo e mercado
O mesmo aparelho midiático
ideológico decisivo na deposição de Dilma Rousseff, flagrantemente aposto à
eleição de Jair Bolsonaro concentra nova artilharia ultraliberal como
camuflagem do neofascismo hodierno. Antes ainda da posse do presidente eleito
Lula.
A. Sérgio Barroso, Vermelho www.vermelho.org.br
Trágica, a
estratégia de tentar devastar a economia brasileira, durante os quatros anos do
governo Bolsonaro-Guedes resume: estagnação, inflação, juros proibitivos aos
investimentos, forte queda dos salários reais, selvageria privatizante,
desestruturação financeira da educação e da saúde públicas pela absurda
compressão das despesas primárias (“teto de gasto”), avanço da
desindustrialização, elevadíssimo desemprego, recriação de 33 milhões de
famintos etc.
Para se ter breve
ideia da gravidade da situação das classes trabalhadoras, o Brasil foi
considerado, pela OIT (Organização Internacional de Trabalho) “como exemplo
mundial” da queda violenta dos salários de 18% (entre 2019 e novembro de 2022),
por combinar estagnação e recessão econômica com inflação. Já no que se refere
ao avanço desindustrialização, é emblemática a nota emitida pela Associação
Brasileira da Indústria Elétrica Eletrônica (Abinee, março de 2022), de que o
governo Bolsonaro “escolheu o caminho da desindustrialização” do país, ao ter
decretado à nova redução da tarifa de imposto de importação em 10% sobre bens
de informática e de telecomunicações, como computadores, tablets e celulares, e
também bens de capital.
Assim, as recentes
indicações do presidente eleito Lula à área econômica constituem um alento à
retomada da visão desenvolvimentista no Brasil. Alento – está escrito. Todavia,
não surpreende que o significado dos primeiros nomes anunciados por Lula
(Fernando Haddad, Gabriel Galípolo, Aloizio Mercadante e Bernardo Appy), ao
setor da economia passou a sofrer um furioso ataque da ‘grande mídia’, de
maneira praticamente unânime.
Notemos que,
associado à passagem a uma posição crítica à conduta destrutiva da democracia
por Bolsonaro e sua gangue de fascistas, essa mesmíssima ‘grande mídia’ passou
esses últimos quatro anos rezando de cócoras na cartilha fundamentalista do
mercado financeiro neoliberal, deliberadamente retocada e aplicada pelo seu
ministro da Economia.
Observe-se,
contudo, que os objetivos estratégicos dessa companha aberta e interesseira
conseguiu êxitos: em 2020, ano em que a economia brasileira encolheu 3,9% (depressão),
especialmente pelos efeitos da pandemia, os bancos (Banco do Brasil, Bradesco,
Itaú Unibanco e Santander) lucraram, juntos, R$ 61,6 bilhões. Já em 2019,
primeiro ano do governo Bolsonaro, o lucro somado das quatro instituições fora
de R$ 81,5 bilhões. E em 2021 o sistema bancário obteve o lucro de R$ 132
bilhões – recorde histórico! -, segundo o banco central do Brasil.
Bem mais: em abril de 2022 o Brasil tinha 4 bancos dentre os 10 mais lucrativos do capitalismo global!
Mercado e Neofascismo
Evidente: o tal “mercado” é uma construção hominídea, sócio-histórica, portanto, política. Muito mais ainda o mercado neoliberal-financeiro. Sua “mão invisível” é uma ficção outrora mal debitada ao grande escocês Adam Smith, percussor da economia política clássica. Transmutou-se em dogma, pois Smith via na produção, no aumento produtividade e na divisão do trabalho os fatores causais do crescimento na economia capitalista emergente. E a financeirização neoliberal do “mercado” é, sobretudo, farsesca, contra Smith! Como bem afirmou Silvia Possas,
“[hoje] não faz muito sentido tentar utilizar autoridade do nome de Smith para atacar a intervenção estatal, em moldes em que ocorre no presente” (“Valor, capital e riqueza nos primórdios da economia política”, 2002).
Exatamente por tais razões é simultaneamente cínico e escandaloso que Mario Draghi, ex-vice presidente e diretor-executivo do Goldman Sachs (2002-2005) seguiu a ser presidente do BC italiano, depois presidente do Banco Central Europeu (BCE), e, “finalmente”, ex-primeiro-Ministro da Itália (2021-2022). Draghi foi simplesmente imposto pela grande finança ao cargo político mais importante da nação italiana! E Draghi deu lugar à primeira-Ministra Giulia Meloni – declaradamente fanática por Mussolini -, desde outubro de 2022. Cravou-se a estaca do neofascismo no coração da Europa.
Lembrando que o papa do neoliberalismo Friedrich Hayek se entusiasmara a ponto de exclamar a capacidade “de uma experiência muito corruptora”, a do ‘ideological monetarism’, o economista português Antônio Avelãs assinala a natureza relâmpago da propaganda sem paralelo do império do pensamento único – Thatcher dizia “Não há alternativa”, recorda. Mais à frente, cita ele o sociólogo alemão Ulrich Beck (1944-2015): as políticas de austeridade “salvam bancos com quantias de dinheiro inimagináveis, mas desperdiçam o futuro das gerações jovens”; elas “mergulharam dezenas de milhões de cidadãos nas profundezas de uma depressão comparável à da década de 1930”, dando origem a “um dos piores desastres econômicos auto-infligidos jamais observados”; elas condenaram os países devedores (“a nova classe baixa da UE”) a sofrer “perdas de soberania e ofensas à sua dignidade nacional”. (Ver: https://suffragium.tre-ce.jus.br/suffragium/article/view/115/50)
Nessa direção, comentando há pouco sobre como funcionava a FTX (uma das maiores corretoras de criptomoeda do mundo, que chegou a valer cerca de US$ 32 bilhões em ações bolsistas (2022), e afundou a zero), o destacado economista norte-americano Michael Hudson desvelou o seguinte:
1. O FMI e o Congresso dos EUA têm pago grandes quantias de dinheiro ao governo da Ucrânia e aos seus cleptocratas de serviço; jornais relatam que muito desse dinheiro foi entregue ao FTX – que se tornou o segundo maior financiador do Partido Democrata.
2. O Congresso dos EUA vota a favor de fundos para a Ucrânia, que colocava algum desse dinheiro em cripto moeda FTX para pagar ou para financiar a campanha política de políticos pró-Ucranianos.
Conforme asseverou Hudson,
“O crime é o que fez da cripto um setor em crescimento no decurso dos últimos anos. Os investidores compravam cripto porque é um veículo para as fortunas que se fazem no tráfico internacional de droga, no comércio de armas, noutros crimes e na evasão fiscal. Estes são os grandes sectores de crescimento pós-industrial nas economias ocidentais”. (Ver aqui: https://www.odiario.info/michael-hudson-da-uma-entrevista-a/ )
Noutra angular, reponha-se não existir uma muralha separando liberalismo e fascismo, até porque essas categorias advêm do tronco da ideologia da burguesia e do capital; o que não quer dizer serem homônimas. O talentoso teórico comunista búlgaro Georg Dimitrov, por exemplo, conceituava o fascismo como ditadura terrorista do capital financeiro, uma definição atual, em sua essência.
Não à toa o pensador alemão Wolfagang Streeck escreveu que, no âmbito da União Europeia, foram a Alemanha e a França que jogaram as suas fichas para sustentar o neofascista Matteo Renzi, ex-primeiro-ministro, na mesma Itália, quando a resistência popular se insurgiu contra ele, apesar da “ajuda secreta do Banco Central Europeu”. No caso Alemão-Europeu – diz Streeck -, os valores legitimadores desse “império liberal” são idênticos ao do liberalismo político: “democracia liberal, governo constitucional e liberdades individuais. Junto deles vêm amarrados, para serem utilizados quando for conveniente, o livre mercado e a livre concorrência (isto é, liberalismo econômico, que no caso atual se chama neoliberalismo)”. Simultaneamente, a AfD (“Alternativa pela Alemanha”), da extrema-direita alemã, “vem se tornando o maior partido da oposição desde a crise dos refugiados, em 2015”, constata Streeck. (Ver aqui: https://outraspalavras.net/eurocentrismoemxeque/europa-radiografia-de-um-imperio-em-pedacos/ )
Mercado e mídia sem escrúpulos
Ora, num retrocesso que data à citada Thatcher, a mão visível da mídia brasileira que apedreja, em pensamento único, passa a esculhambar a própria ideia do desenvolvimento nacional. Mais primitivo ainda: a reindustrialização do país seria “uma quimera”! Quer-se o Brasil na gandaia especulativa da financeirização [1] e rendido às suas trapaças ou crimes. O objetivo geral é a marcha-à-ré do país de volta à República Velha.
Vergonhosamente, escreveu a FSP em Editorial (‘O pior do PT”): “Ao que já era temerário acrescentou-se a desfaçatez com a investida contra a Lei das Estatais, na calada da noite desta terça-feira (13), a fim de facilitar a nomeação de um companheiro de campanha eleitoral para o comando do BNDES — o banco oficial de fomento que protagonizou desastres intervencionistas nos governos do PT”.
“O Estado de S. Paulo”, conhecidíssimo pelo seu arqui-golpismo, ressaltou igualmente em editorial, na mesma data (“Lula, fiel ao atraso”) que, “A confirmação de Mercadante para o cargo despertou o temor de que a instituição retome a concessão de empréstimos subsidiados pelo Tesouro, marca da gestão Dilma Rousseff”.
Assim, ao processo crescente de financeirização da economia brasileira, muitas vezes financiadas com verbas públicas os negócios escusos e obscuros revelam com nitidez os interesses da chamada grande mídia [2]. E na atual quadra histórica é explícita a aliança entre uma determinada visão de mercado e as tendências neofascistas. O que se acelerou desde a grande crise capitalista iniciada em 2007-8.
No radical embate eleitoral que consagrou a vitória de Lula, com o protagonismo absolutamente indispensável da Frente Ampla, o povo brasileiro conquistou um êxito político-ideológico memorável. Democracia e desenvolvimento, eis os desafios centrais do novo governo.
NOTAS
[1]
Nos gráficos, o crescimento dos ativos financeiros não-monetários ou
intangíveis, podem expressar a “revalorização rentista-financeira”, assim como
a relação direta entre a elevação da taxa básica de juros e aqueles ativos. Ver
o excelente estudo de Miguel Bruno, “A Financeirização como Limite Estrutural
ao Desenvolvimento Brasileiro: fundamentos teóricos, indicadores e
prognósticos”, de maio de 2022. Ver aqui: https://fonacate.org.br/wp-content/uploads/2022/05/Domina%CC%82ncia-Financeira-e-Privatizac%CC%A7a%CC%83o-das-Financ%CC%A7as-Pu%CC%81blicas-no-Brasil.pdf ,
R. Marques e J. Cardoso Jr. (orgs.).
[2]
Ademais, “todas as corporações jornalísticas mantêm a sete chaves seus dados
sobre desempenho financeiro, estruturas acionárias, lucro e operações
financeiras, uma vez que não são legalmente obrigadas a disponibilizá-los — no
caso específico da radiofusão, as empresas de rádio e TV que têm concessões
públicas. (…) Prova disso é que dos 50 veículos listados entre os de maior
audiência no Brasil, nenhum deles respondeu aos questionamentos feitos pela
pesquisa sobre balanços financeiros”, diz Olívia Bandeira, pesquisadora do
Coletivo Intervozes. (Ver aqui: https://www.obeltrano.com.br/portfolio/quem-controla-midia-no-brasil/)
O instigante mundo atual https://bit.ly/3Ye45TD
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