05 fevereiro 2025

Perfil da massa golpista

Alienação dos golpistas fardados
Os golpistas podem ser vistos como sujeitos que no cotidiano usam predominantemente os limitados saberes empíricos, se apoiam nas noções vulgares, valorizam os parcos juízos partilhados nos grupos que integram, consomem notícias falsas, acolhem a desinformação, bem como inclinam-se para o lado da pós-verdade a qual minimiza o flanco objetivo da veridicidade e maximiza sua banda subjetiva com vistas a enunciá-la e a modelá-la de acordo com os seus interesses, pensamentos, desejos e intenções.
Antônio Carlos Will Ludwig/Le Monde Diplomatique 

No ano de 2022 e no início de 2023, figuras proeminentes do governo Jair Bolsonaro, saudosistas de 1964, lideraram diversas articulações com um segmento das Forças Armadas para tumultuar a transição de poder ao candidato eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, com o objetivo de impedi-lo de exercer o cargo desde o início do mandato.

De acordo com o relatório elaborado pela Polícia Federal, o chamado Gabinete Institucional de Gestão da Crise, comandado pelos generais Heleno e Braga Netto, assumiria imediatamente a direção do país e definiria as diretrizes do governo. A suposição predominante era de que, em data posterior, o poder seria devolvido ao então presidente. O planejamento incluía a prisão de integrantes do Poder Judiciário, o fechamento do Congresso Nacional e o assassinato de Lula, Alckmin e Alexandre de Moraes.

Felizmente, essa tentativa de golpe de Estado não alcançou o sucesso almejado pelos sediciosos. Segundo o mencionado relatório, o fracasso ocorreu devido a falta de apoio por parte dos comandantes do Exército, da Aeronáutica e do Alto Comando do Exército. Apenas o comandante da Marinha se mostrou disposto a colocar seus subordinados para atuarem a favor da insurgência. Mencione-se a figura do então comandante da Aeronáutica o qual asseverou que o ensaio golpista possivelmente teria se consumado se o comandante do Exército tivesse oferecido o esteio almejado.

Para obter maior clareza sobre tal evento, é preciso recorrer à Ciência Política, particularmente em relação aos seus saberes pertinentes às modalidades dos golpes. Encontra-se nela exposta a existência de dois tipos. O primeiro, denominado de golpe moderno, refere-se à destituição ilegal de um governante pelos fardados, a qual se caracteriza pela retirada expedita dele do poder e a colocação de militares para o exercício da gestão do Estado, de forma ditatorial e com permanência por vários anos. O segundo, chamado golpe pós-moderno, ocorre de salientes pressões exercidas pelos militares para forçar a renúncia do governante visado. Seu lugar não é ocupado por militares e sim por outros políticos civis que seguem dirigindo seus países de acordo com as normas democráticas. Pelas características expos tas, parece que a intenção dos insurgentes se voltava para a aplicação de um golpe de Estado moderno.

Com base nos registros históricos, verifica-se que, em nosso país, todos os golpes aplicados anteriormente se enquadram no modelo moderno, e o atual não fugiria à regra, mantendo essa tradição. Essas inadmissíveis e condenáveis formas de intervenção na política alternaram-se várias vezes com outra igualmente intolerável e execrável: o emprego do chamado poder moderador, considerado superior aos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, com o objetivo de exercer um papel de mediação e equilíbrio entre eles. Além disso, revezaram-se com um terceiro mecanismo, também inaceitável e reprovável, que pode ser denominado conduta rebelde, ou seja, a resistência ao poder estabelecido ou a contestação de uma autoridade legítima, como ocorreu na Revolta de Jacareacanga e na Revolta de Aragarças, ambas dur ante o governo de Juscelino Kubitschek.

A tentativa de barrar o andamento do governo Lula revelou duas peculiaridades marcantes. A primeira foi a incompetência dos golpistas, evidenciada por uma série de falhas: o fracasso do atentado a bomba no aeroporto de Brasília, a divulgação de cenas do vandalismo ocorrido na Praça dos Três Poderes nas redes sociais, a descoberta da minuta do golpe na casa de Anderson Torres, a tentativa de comprometer o juiz Alexandre de Moraes por meio de um senador, a contratação de um hacker para tentar um fragante, as inúmeras trocas de mensagens entre os envolvidos, que ficaram registradas em celulares e computadores, as diversas reuniões com dezenas de participantes gravadas por câmeras e sistemas de áudio e, sobretudo, a incapacidade de conquistar o apoio da cúpula das Forças Armadas.

Tais ações explicitam a outra peculiaridade, qual seja, a doidivana, ignóbil e impudica desenvoltura das condutas manifestadas por eles, com o firme apoio de um elevado conjunto de insurgentes que permaneceu acampado na frente dos quartéis. Eles se autodenominavam patriotas em razão de, ferrenhamente, se conceberem como salvadores do país, particularmente pela reversão da suposta fraude eleitoral e com o emprego de qualquer tipo de ação. Adotaram um senso de urgência catastrofista pois imaginavam a proximidade do fim e da destruição do Brasil pela implantação do comunismo, realizaram apelos a seres extraterrestres e fizeram súplicas a entidades transcendentes. Desenvolveram um afeto de esperança messiânica sustentado na intervenção m ilitar e assumiram a postura de tomar a história pelas próprias mãos. Aparenta ser razoável pensar então que agiram como voluntaristas insensatos ou pessoas crentes de que a vontade humana, isto é, a faculdade de querer, de escolher, de praticar livremente certos atos é muito mais relevante do que a razão, de que é possível adotar convicções e atitudes proposicionais de acordo com essa força interior impulsionadora e de que é viável tomar decisões e agir em função dela mesmo diante de dificuldades e desafios.

É bem possível que a desinibição e a agilidade desses golpistas, especialmente os fardados, tenham a ver com acontecimentos do passado. Com efeito, os sediciosos uniformizados de épocas anteriores nunca receberam qualquer tipo de punição. Aqueles que exerceram o poder moderador foram recompensados pelo sucesso de suas ações. E os revoltosos, bem como outros instauradores do regime ditatorial que durou mais de vinte anos, receberam a láurea da anistia. Ademais, em diversas ingerências na política, receberam o apoio de segmentos privilegiados da sociedade, inclusive de governantes e parlamentares. Pode-se supor, ainda, que possuíam uma dose elevada de confiança e nutriam ardorosamente o sonho do êxito da insurreição.

Outrossim, é preciso acrescentar que o perfil dos insurgentes contribuiu muito para o andamento das ações porquanto eram amotinados de extrema direita. Assim sendo, nele se encontram diversos e peculiares traços de personalidade, tais como a busca de certezas em questões sociais e políticas; o apego aos valores tradicionais ladeado pela resistência a mudanças e a preferência por soluções simplórias para problemas complexos. Junto a esses atributos acompanha uma postura em relação à democracia caracterizada pela oscilação e ambiguidade, haja vista que em determinadas condições podem valorizá-la superficialmente para alcançar seus objetivos políticos e noutras podem rejeitar seus princípios caso entrem em conflito com suas concepções ideológicas. A enaltecem na forma que consideram conveniente, além de direcionarem críticas às instituições que dela fazem parte, particularmente os tribunais e a imprensa, quando não se alinham com suas agendas.

A ojeriza às incertezas, a adesão ao consagrado, a contraposição às metamorfoses e a simpatia pela simplicidade são condutas próprias de pessoas retrógradas e, portanto, sujeitas ao adentramento num estado de alienação. Observe-se que este estado precisa ser devidamente explicitado para poder relacioná-lo aos golpistas. Segundo a Etimologia, a “alienação” tem origem no latim alienare cujo sentido é de tornar alguém alheio a alguém. Algumas menções que se seguem, auxiliam bastante na melhora do entendimento.

Nos escritos de Platão encontra-se a alegoria da caverna, usada por ele para mostrar a existência de um mundo ilusório, das pessoas que vivem no interior de uma caverna iluminada por luz de fogueira, as quais conduzem sua existência apoiadas nos saberes do senso comum. A existência de um mundo verdadeiro, daqueles que vivem fora dela iluminados pela luz solar, orientadas por conhecimentos mais genuínos tais como o filosófico e o científico. Na Psicologia significa um estado de apartação do indivíduo de si mesmo, de outros ou da sociedade. No pensamento marxista diz respeito à desunião que os trabalhadores sentem em relação ao processo de trabalho, ao produto de seu trabalho e de sua própria essência por causa do sistema capitalista. Na Sociologia é entendida como a sensação de isolamento ou falta de pertencimento a um grupo ou comunidade. Embora s ejam exemplos singulares e divergentes, todos se aproximam em uma característica marcante, qual seja, uma desconexão que emerge em certos momentos no transcorrer do tempo.  Desta forma, pode ser dito que uma pessoa alienada é alguém que traz dentro de si uma afincada predisposição ao estranhamento, ao distanciamento de si, de outrem, de situações e de coisas.

Os golpistas fardados podem ser vistos como sujeitos que no cotidiano usam predominantemente os limitados saberes empíricos, se apoiam nas noções vulgares, valorizam os parcos juízos partilhados nos grupos que integram, consomem notícias falsas, acolhem a desinformação, bem como inclinam-se para o lado da pós-verdade a qual minimiza o flanco objetivo da veridicidade e maximiza sua banda subjetiva com vistas a enunciá-la e a modelá-la de acordo com os seus interesses, pensamentos, desejos e intenções. Assim sendo, é possível dizer que eles são pessoas desconectadas e divorciadas dos conhecimentos considerados verídicos sobre diversos aspectos da realidade social em movimento, impedidores do surgimento de compreensões distorcidas, e que a ignorância alusiva a eles colaborou sobremaneira para os atos que externalizaram. Porém, se os retinham não c oncederam a eles a relevância merecida. Destarte, é possível encará-los então como indivíduos fortemente inclinados para o lado da alienação devido, provavelmente, carecerem ou deixarem de lado concepções atualizadas e fidedignas sobre as Forças Armadas, a democracia e o cenário internacional.

Em relação às Forças Armadas cabe dizer inicialmente que desde a década de oitenta do século passado, quando seus integrantes cederam às fortes pressões e encerraram o período ditatorial, até os dias que correm, sofreram um continuado processo de renovação, porque diversas gerações de pessoas adentraram em suas fileiras e os remanescentes da ditadura se encaminharam para a reserva. Consequentemente, novos modos de pensar, sentir e agir certamente emergiram e avançaram, particularmente na esfera política. É válido supor que os benfazejos influxos da democracia que se espargiram pelo país tenham atingido os fardados, contribuindo para o afastamento de concepções execráveis e incompatíveis ao regime democrático, tais como os atos revoltosos, o uso do poder moderador e a aplicação de golpes de Estado. A fa vor dessa suposição tem-se as sucessivas décadas de comportamento militar voltado para as tarefas previstas em lei, a qual começou a ser minada com a assunção de Bolsonaro ao cargo presidencial. É válido recordar que nesse lapso enfrentaram constrangimentos decorrentes da diminuição do prestígio social, da submissão a chefias civis no Ministério da Defesa, da atuação da Comissão Nacional da Verdade e da convivência com governantes petistas, que devem ter provocado sensações expiatórias influenciadoras de suas condutas.

Houve o ressuscitamento do falecido anticomunismo, encarado como algo semelhante a um arquétipo do inconsciente coletivo, mas ele não afetou os colegas da caserna conforme o desejado porque não possuía mais o poder mobilizador. O general Heleno, que gostava de utilizá-la disse nas redes sociais que os bolsonaristas estavam tentando evitar a volta do comunismo. A vitória de Petro na Colômbia levou o deputado Eduardo Bolsonaro alertar os eleitores brasileiros sob a expansão dos países cobertos com os símbolos da foice e do martelo. Em seguida, a deputada Zambelli mencionou o alerta de Eduardo para reforçar a lembrança.

Na campanha eleitoral, Jair Bolsonaro discursou várias vezes contra a presença e o avanço do comunismo. Sem dúvida, o uso dessas falas estava fadado a não mostrar eficiência alguma, porque a ameaça comunista foi uma ocorrência do passado inserida no contexto da Guerra Fria, que se encerrou na década de noventa e provocou a derrocada da União Soviética. Na atualidade, apenas alguns países pouco expressivos tentam seguir a cartilha comunista tais como Vietnã, Cuba e Coreia do Norte. A China possui o partido comunista, mas adota uma economia de mercado. Ademais, sabe-se que nunca existiu um país genuinamente comunista, isto é, fiel à doutrina elaborada por Marx e Lênin. O que realmente acontece, é que nos dias atuais vicejam movimentos progressistas defensores da justiça econômica, da equidade racial e da sustentabilidade ambiental; emergem manifesta ções favoráveis à economia solidária, que prioriza a cooperação e a autogestão; aparecem críticas aos excessos do capitalismo, especialmente a desigualdade crescente e a exploração do trabalho; partidos que se identificam como socialistas democráticos defendem a combinação de uma economia de mercado com políticas sociais robustas garantidoras da concretização de direitos.

Os uniformizados e os vanguardistas paisanos da insurreição, ambos certamente alienados, também devem ignorar ou não se importar com o poderoso e irrefreável processo de civilinização que acomete as Forças Armadas há muito tempo, o qual provoca a instauração de concepções civis e faz a aproximação entre os militares e civis.  Esse acometimento apesar de estar trazendo contribuições positivas tem provocado outras interferências. Uma delas se refere à terceirização, que se encontra em estágio bastante avançado, pois as atividades em hospitais, ranchos, limpezas e reparação de equipamentos, dentre outras, estão sendo realizadas por empresas externas. Embora, tenha a capacidade de liberar os aquartelados para se dedicarem a funções essenciais e favorecer a obtenção de maior eficiência em operações, ela pode dificultar a integração entre os militares e os trabalhadores contratados e tornar possível a ocorrência de uma afetação no espírito de corpo.

Considerando que os contratados não possuem os mesmos níveis de treinamento e disciplina que os funcionários de uniforme podem emergir diferenças perceptíveis como divisões dentro da tropa. Por sua vez, a intelecção de que certas incumbências consideradas como relevantes estão sendo terceirizadas, tem a possibilidade de engendrar o sentimento de que certas capacidades caminham rumo à desvalorização e o entendimento de que se encontra manifestando uma falta de confiança em determinadas habilidades, ambos confrangedores do moral da tropa. Infere-se, portanto, que a terceirização tem o potencial de fragilizar a prontidão e a coesão nas fileiras que são imprescindíveis no momento da sua mobilização voltada para aplicação de um golpe de Estado.

Outra, se refere aos militares temporários cuja quantidade é elevada e continua crescendo. Com efeito, o número de cabos, sargentos e oficiais enquadrados nessa categoria já chega a mais da metade do contingente total. A contratação deles é atrativa porque atende aos requerimentos das organizações bélicas, possuem direitos reduzidos e são menos onerosos. No entanto, a conduta deles é diferente dos efetivos. Enquanto estes revelam um senso de lealdade mais forte e uma identificação mais profunda com a missão ou a finalidade constitucional das Forças Armadas, os temporários inclinam-se a focar em suas obrigações contratuais e na duração do seu serviço. Devido o preparo mais adequado, treinamento mais extenso e experiência armazenada, os efetivos exibem capacidade de liderança e reações congruentes frente a situações de pressão que são raras entre os temporários. Os efetivos podem estar motivados pelo senso de dever, carreira e benefícios de longo prazo, enquanto os temporários podem estar motivados por recompensa financeira ou ganho de experiência profissional. Efetivos encaminham-se rumo à formação de vínculos robustos com seus colegas ao longo do tempo, a qual beneficia a coesão grupal. Dependendo da duração do serviço os temporários podem apresentar dificuldades de integração e embaraços nessas relações. Isto posto, não fica difícil de perceber que os militares temporários apresentam um perfil singular, mais próximo da silhueta paisana e afastado da imagem convencional própria dos efetivos.

Portanto, é a formação alongada, a vivência acumulada, a atitude de comprometimento, a adoção efetiva de valores consuetudinários, a perenidade do comportamento uniforme e a duradoura submissão à hierarquia, próprias dos efetivos, auxiliam sobremaneira o ato de liderar a tropa, pois está frequentemente respondendo de forma imediata e conjunta ao brado do comandante. Embora essa conduta coletiva automática ainda seja válida para algumas operações militares, é possível, que isto, não venha a acontecer no momento da aplicação de um golpe de Estado por causa da sua ilegalidade, implicações e consequências. Apareceriam dissidências arruinadoras. Veja-se que na ditadura implantada em 1964, milhares de fardados ficaram na oposição e foram objeto de perseguições e punições. Obviamente, tal conduta, seria muito mais difícil de emergir no grupo prevalente dos temporários.

Uma terceira envolve a presença das mulheres militares que vem aumentando no decorrer do tempo e já constituem um grande grupo haja vista que somente na Força Aérea, nos últimos anos, mais de cinquenta por cento dos incorporados como temporários foram do sexo feminino, em diversas áreas tais como na administração, enfermagem, nutrição e radiologia. Atualmente, somam dez por cento do contingente das três armas. Vale observar que, o comportamento profissional das mulheres apresenta determinadas particularidades além das mencionadas anteriormente. Elas têm que enfrentar atitudes machistas e pelejas contra seus colegas masculinos, se esforçam em criar um ambiente de trabalho mais respeitoso e colaborativo, se mostram compromissadas com um exercício profissional sólido e com desempenhos vistosos, apesar de muitas terem que conciliá-lo com as obrigaçõ es familiares, e quando assumem posições de chefia tendem a valorizar a inclusão e a diversidade de expectativas na tomada de decisões. Portanto, são funcionárias totalmente focadas em seus afazeres diários e dedicadas às tarefas domésticas.

Esse perfil laboral não predispõe a atender chamamentos golpistas, pois envolver-se em uma aventura política contribui para a perturbação do cotidiano que é carregado de exigências. Aliás, vale supor que as mesmas, além de se negarem a participar, poderiam exibir condutas de antagonismo, porquanto em outros países isto já aconteceu. A título de ilustração mencione-se que no Camboja, em 1997, com o acirramento dos conflitos entre partidos políticos emergiu um golpe de Estado, e muitas fardadas não só o rejeitaram como manifestaram atos de resistência e apoio as forças democráticas. Do mesmo modo ocorreu no Egito em 2013, resultando na deposição do presidente Mohamed Morsi. Servidoras uniformizadas se opuseram a ele, enfrentaram a onda repressiva, criticaram as ações do governo castrense e se envolveram com movimentos s ociais.

A democracia brasileira é outra área a ser examinada, indica que o bando de insurgentes fardados a deixou de lado. De fato, parece que eles se encontram alijados de conhecimentos fidedignos sobre a consolidação do nosso regime democrático que começou em 1985 com a eleição de Tancredo Neves para a presidência da república. Logo a seguir, em 1988 foi promulgada uma nova Constituição que fixou direitos civis, políticos e sociais, a divisão de poderes com suas estruturas de freios e contrapesos, a criação de mecanismos de controle institucional como o Ministério Público independente e os Tribunais de Contas. Em 1989, ocorreu a primeira eleição direta com o envolvimento de partidos políticos assentados e atuantes. Três anos adiante aconteceu o impeachment de Collor, que demonstrou o vigor do Congresso Nacional e do Poder Judiciár io. Nas décadas seguintes, manifestou-se a alternância pacífica no poder por meio de eleições diretas e regulares bem como emergiram avanços significativos no combate à pobreza e à desigualdade social. Outro impeachment se concretizou em 2016, contra Dilma Rousseff, com a preservação de ordem constitucional, apesar da suposição de que se tratou de uma urdida manobra parlamentar.

Mencione-se que as atuações do poder judiciário, das instituições de controle, da imprensa e da sociedade civil ajudaram sobremaneira o processo de asseguramento da estabilidade democrática. Outrossim, deve ser ressaltado a relevante participação popular através da democracia direta em dois plebiscitos, um em 2011 sobre a divisão do Estado do Pará e outro em 2014 a respeito da criação de distritos no município de Campinas; em dois referendos, sendo um em 2005 pertinente a armas de fogo e outro em 2010 alusivo ao fuso horário vigente no Estado do Acre e em três projetos de iniciativa popular, isto é, o de crimes hediondos em 1994, o da ficha limpa em 2010 e o de combate à corrupção em 2016. Cite-se ainda a pujança dos inúmeros movimentos sociais que pipocaram pelo país, tais como o das diretas já, o da defesa do Siste ma Único de Saúde, o da luta pelo reconhecimento de terras indígenas, o da luta pelas prerrogativas da comunidade LGBTQIA+ e os protestos de junho, quando milhões de pessoas foram às ruas bramir contra o aumento das tarifas de transporte. E uma nova mobilização popular poderia ter surgido contra o golpe caso ele tivesse vingado, haja vista, que isto aconteceu em outros lugares tais como no Sudão em 2021 contrária à junta militar e na Turquia em 2016 que ajudou a frustrar os planos dos insurgentes. Complete-se com uma pesquisa recente de opinião a qual aponta que aproximadamente setenta por cento da população prefere o regime democrático a qualquer outra forma de governo.

Igualmente não atentaram para o fato de que a poderosa burguesia industrial do passado, tradicional aliada em golpes, perdeu a posição de liderança para a burguesia financeira que a qualquer momento pode retirar os ativos financeiros aplicados e enviá-los para outros países isentos de crises sociais e políticas. Ao seu lado predomina também o crescente setor de serviços. Além disso, o elevado grupo de operários do passado se contraiu bastante por causa da automação, seus sindicatos enfraqueceram muito e sua facção agitadora, outrora objeto de repressão, caminha rumo ao desaparecimento. O empreendedorismo cresce de forma rápida e os profissionais movidos por aplicativos aumentam a cada dia que passa.

Do mesmo modo que a democracia, o cenário internacional parece ser desconhecido ou rejeitado pela súcia dos revéis. Certamente dessabem que a globalização neoliberal está favorecendo a contenção do funcionamento dos Estados Nacionais. A autonomia e a soberania deles, se fragilizam na medida em que o tempo passa. Assim sendo, seu papel de agente do desenvolvimento econômico e sua função de garantir a coesão e a integração social e nacional também estão se fragilizando. Quase todas as nações do planeta encontram-se bastante atreladas entre si por força da assinatura de documentos internacionais. O nosso país constitui um caso típico, porquanto é signatário de muitas dezenas de acordos, tratados, convenções e protocolos bilaterais e multilaterais que condicionam ostensivamente sua conduta tanto no âmbito in terno, quanto no externo. Dentre a elevada quantidade de convênios podem ser citados o Acordo de Paris sobre mudança climática, o Pacto de São José relacionado a direitos humanos, o Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares, o Mercosul, o Acordo de Livre Comércio do Sul, o Acordo de Facilitação do Comércio da OMC e o Acordo de Cooperação Econômica com a União Africana.

Essa contínua proximidade age como um poderoso freio a qualquer iniciativa unilateral que possa vir a colocar em risco os compromissos assumidos por meio das resoluções, especialmente a aplicação de um golpe de Estado. Ademais muitos países comprometidos com o vigor e a perenidade do regime democrático costumam reagir incisivamente contra qualquer tentativa de supressão da democracia ou de desferimento de sérios danos a ela, inclusive com a aplicação de sanções como os casos de Cuba e Venezuela, vítimas de longevos escarmentos econômicos aplicados pelos Estados Unidos e nações europeias.  No ano de 2009, no transcorrer do golpe em Honduras, a Organização dos Estados Americanos suspendeu a ajuda militar e econômica.  No golpe acontecido na Guiné em 2021, a União Europeia proibiu viagens e bloqueou os ativos do país. Nesse ano, aconteceu em Myanmar e os Estados Unidos restringiram o acesso a bens e recursos financeiros. Quanto ao Brasil, ninguém levou em conta a fala do presidente Biden no mês de julho de 2022, em uma reunião entre os chefes da pasta de Defesa do Brasil e dos Estados Unidos, na qual sinalizou aos militares que eles não teriam o respaldo de Washington caso optassem por uma aventura golpista. E ressalte-se que, a corja dos beócios, planejava utilizar adidos militares alocados em diversos países para explicar e justificar o emprego do golpe com vistas a aplacar a ira da comunidade internacional, quiçá apoiada na tola crença de que daria certo.

Os ineptos insurgentes uniformizados já se encontram na órbita da justiça e certamente serão processados e punidos com muitos anos de prisão. Prevê-se que, no decorrer do tempo poderão obter amenização das penas, com base na lei de execução penal, por meio da participação em cursos. Tendo em vista essa possibilidade, a título de colaboração apresentamos uma proposta direcionada a esse abrandamento. Sugerimos que os futuros aprisionados realizem um extenso curso de atualização composto de três unidades, quais sejam, Filosofia da Ciência, com o estudo dos tópicos relativos a concepções de realidade, tipos de conhecimento, refutação de teorias e significado de verdade. Teoria Política, com a abordagem dos assuntos pertinentes a Estados Nacionais, globalização, formas de governo, ideologias, cid adania e democracia. Forças Armadas, com o exame dos temas concernentes à finalidade das instituições castrenses, relações entre civis e fardados, processo de civilinização e ética militar. Tão importante quanto a diminuição do tempo de prisão é a expectativa desse curso contribuir significativamente para a redução do atrofiamento das suas faculdades intelectivas, a atenuação da acentuada incultura e o desengate do estado de alienação que se revela muito prejudicial às suas vidas.

Antônio Carlos Will Ludwig é professor aposentado da Academia da Força Aérea, pós-doutorado em educação pela USP e autor de Democracia e Ensino Militar (Cortez) e A Reforma do Ensino Médio e a Formação Para a Cidadania (Pontes).

[Ilustração: Dia 8 de janeiro de 2023 tem como marca os golpistas invadiram a rampa de acesso ao Palácio do Planalto. Foto: Joedson Alves/Agencia Brasil]

Leia: Rubens Paiva era torturado ao som de “Jesus Cristo” https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/02/uma-cronica-de-urariano-mota.html

Minha opinião

A forma e o conteúdo 
Luciano Siqueira 
instagram.com/lucianosiqueira65

Lá atrás, fazendo autópsia rigorosamente científica da sociedade capitalista, Karl Marx já advertia que se a aparência fosse igual à essência não haveria necessidade da ciência.

Ou seja, frequentemente o que parece ser não é. 

Daí soar ridícula qualquer suposição de que é extrema direita vigente seja “antissistema”.

Parece, mas não é. 

O capitão Jair Bolsonaro, por exemplo, construiu sua notoriedade se dizendo radicalmente contra o que está estabelecido. 

"Antissistema", portanto.

E ao governar o país por quatro terríveis anos colocou na condição de super ministro da economia precisamente um empedernido guardião do sistema, o reles operador do mercado financeiro Paulo Guedes. 

Demais, porta vozes do bolsonarismo dos mais diversos quilates — entre pastores neopentecostais e coachs e influencers — seguem brandindo a mais retrógrada agenda de costumes. 

Apesar de todas as evidências, analistas do complexo midiático dominante (alguns ostentando seus vínculos acadêmicos) seguem usando a categoria "antissistema" para qualificar a extrema direita no Brasil. 

O mesmo conto do vigário em que alguns caíram quando do surgimento do nazi-fascismo, acreditando que Hitler e Mussolini, assim como Franco e Salazar, representavam contestação da ordem capitalista dominante. 

Pelo visto, teremos que conviver com essa lorota por algum tempo, que seja de resistência, acúmulo de forças e, adiante, vitórias.

Leia também: Indispensáveis relações com o povo https://lucianosiqueira.blogspot.com/2024/12/minha-opiniao_42.html

Gaza: a dimensão do genocídio

Cessar-fogo na Palestina: o que não podemos esquecer deste genocídio?
Enquanto a guerra por meio de tecnologias de informação desempenhava seu papel, crianças palestinas passavam fome, perdiam membros, familiares e, muitas vezes, suas vidas
Iara Moura, Olivia Bandeira e Pedro Vilaça/Le Monde Diplomatique 

De acordo com as autoridades de saúde da Palestina, são mais de 46 mil pessoas mortas no conflito de Gaza desde outubro de 2023. Esta contagem pode ser muito maior. Novas análises feitas pela revista The Lancet, conduzida por acadêmicos da Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres, da Universidade de Yale e de outras instituições, falam em mais de 64 mil palestinos mortos.

O cessar-fogo iniciado no último domingo, 19 de janeiro de 2025, não apaga os relatos da barbárie a que boa parte do mundo assistiu incólume. A narrativa de “guerra” ofusca e sustenta o genocídio do povo palestino em curso parecendo anestesiar cada um de nós num misto de tristeza e horror. A narrativa transmídia vai da rede social às redes de TV assentando apatia. Por que as imagens produzidas e compartilhadas mundo afora pareceram incapazes de gerar esforços coletivos pelo fim do genocídio?

A aceleração da vida conectada, a profusão de conteúdos muitas vezes sensacionalistas e pouco aprofundados, os vieses racistas dos algoritmos das redes sociais, que lucram com discurso de ódio e conteúdos falaciosos, e a cobertura parcial dos veículos de mídia, pró-Israel, são alguns dos fatores que respondem a essa questão, legitimando a defesa israelense.

A guerra pela informação, muito além das fake news

A era da aceleração, da digitalização e do domínio das big techs impõe uma vida desumanizada em diferentes escalas. Nesse contexto, novas estratégias de conquista, colonização e exploração se fortalecem pelas tecnologias de comunicação e informação, dominadas pela concentração de mídia, seja na radiodifusão, seja no modelo das grandes plataformas digitais, que predomina na internet. Na geopolítica da barbárie, a desordem informativa também é uma arma poderosa e, em período recente, Israel soube bem se utilizar dela, com apoio da grande mídia ocidental e das big techs.

Na internet, são milhares de mentiras que circulam e incentivam o ódio aos palestinos. Entre elas, foram desmentidas as informações de que o Hamas decapitou dezenas de bebês. Também é falsa a informação de que um bebê foi assado no forno, ou que um outro foi arrancado à faca do útero da mãe.

A desinformação que circula pelas redes, reforçada pelos algoritmos desenhados pelas grandes plataformas digitais, é apenas uma das violações do direito à informação e à comunicação identificadas no conflito atual e antes dele.

O Observatório Palestino de Violações de Direitos Digitais, coordenado pela organização 7amleh – The Arab Center for the Advancement of Social Media, possui uma plataforma online para monitorar, documentar e acompanhar as violações dos direitos digitais dos palestinos. De 2021 a 2025, a plataforma recebeu e encaminhou cerca de 10.200 violações de direitos contra palestinos em hebraico e árabe em plataformas de mídia social. Dessas, a maior parte se refere à incitação à violência contra palestinos por parte de contas existentes nas redes sociais (40,44%), seguido de censura de conteúdo palestino por parte das plataformas (35,34%), discurso de ódio (10,05%), remoção de conteúdo (3,70%), campanha difamatória (3,34%), fake news (2,66%), hackeamento (1,90%), v iolência baseada em gênero (1,76%), entre outros.

Relatório lançado pela organização em setembro de 2024 documenta mais de 5.100 casos de censura digital e disseminação de conteúdo prejudicial em grandes plataformas como Meta e X entre 7 de outubro de 2023 e setembro de 2024. As plataformas digitais também lucraram financeiramente com conteúdo publicitário prejudicial, como mostra o relatório: “O Facebook, de propriedade da Meta, veiculou anúncios direcionados incitando o assassinato de indivíduos e defendendo a expulsão forçada de palestinos da Cisjordânia para a Jordânia. Além disso, as políticas de publicidade do YouTube foram consideradas não compatíveis com os padrões de direitos humanos. O Minist& eacute;rio das Relações Exteriores de Israel promoveu anúncios sobre a guerra em andamento em Gaza no YouTube, refletindo sua ideologia para públicos na França, Alemanha e Reino Unido, com um orçamento de US$ 7,1 milhões em duas semanas após 7 de outubro de 2023, em violação às próprias políticas da plataforma”.

Além das violações de direitos por parte das plataformas digitais, o documento cita ainda o uso extensivo de tecnologia nas violações de direitos humanos pelo governo israelense, como o emprego de inteligência artificial para atingir os palestinos e a promoção de apagões de internet e comunicação sem fio como uma tática de guerra ilegal durante a campanha militar de Israel em Gaza. O ataque às infraestruturas de telecomunicações e a interrupção de serviços vitais de internet e comunicação geraram um grande obstáculo para documentar graves violações de direitos humanos em Gaza e salvar vidas. Sem telecomunicação, Gaza está desconectada do mundo e cada vez mais isolada. Além de afetar a liberdade de expressão e o acesso a informações vitais, o problema ainda prejudica as ajudas humanitárias, que já são dificultadas por Israel.

Disputas de visão de mundo na mídia ocidental

A guerra informativa não se limita às redes sociais. Casos amplamente divulgados pela grande mídia ocidental, mesmo que categoricamente desmentidos, são comuns e assustam pela força que se espalham, apesar da inconsistência.

Em análise recente, o filósofo Murilo Seabra aponta a tendenciosa cobertura da mídia ocidental sobre a pauta. Mostra, por exemplo, como o New York Times reanimou uma notícia cuja falsidade já havia sido comprovada: a de que os membros da brigada Al-Qassam cometeram “estupros em massa”. A matéria foi desmentida pela família da suposta vítima.

Em outro texto publicado no Le Monde Diplomatique, o jornalista Alex Hercog, do Intervozes, analisa que os veículos brasileiros também produzem uma cobertura enviesada ao invisibilizar o debate sobre o “apartheid” existente em Gaza, ignorando o contexto histórico do conflito e encobrindo os crimes cometidos por Israel. O texto “A contribuição da mídia para o ciclo de violência” também destaca exemplos dessa parcialidade, como o uso predominante de fontes israelenses nas matérias.

Em resposta a esse contexto, no Brasil, o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) publicou, em novembro de 2024, recomendação sobre a cobertura da ofensiva israelense. O texto pede que os jornais impressos, digitais e, principalmente, TVs e rádios, que administram concessões públicas de radiodifusão, garantam maior diversidade de vozes e equilíbrio de fontes na cobertura do conflito.

A recomendação alerta para o risco de uso de expressões que possam aumentar o preconceito a religiões ou grupos étnicos, como o qualificativo “extremista” ou “terrorista”. Apesar das recomendações, parte importante da cobertura jornalística no país segue enviesada.

Nos últimos dias, após o anúncio do possível cessar-fogo, veículos da mídia brasileira e internacional têm destacado como as “duas partes” irão cumprir acordos. Nesse contexto, referem-se ao Hamas como responsável por “reféns” e a Israel como detentor de “prisioneiros”. O termo “refém” carrega uma conotação pejorativa, enquanto “prisioneiro” sugere algo mais aceitável dentro de parâmetros legais do que seria uma guerra e ganha aparência de moral e civilizado. Contudo, como considerar razoável o fato de Israel deter pessoas, principalmente palestinos, que sequer recebem informações sobre os motivos de sua prisão?

O número de palestinos em cárcere está na faixa de dezenas de milhares, enquanto algumas centenas encontram-se detidas pelo Hamas. As prisões arbitrárias, incluindo de mulheres e de crianças, mantidas como garantia para acordos futuros também têm sido prática corrente de Israel. Essa prática se encaixa na definição de “refém” conforme o dicionário de Oxford: “Aquele que fica, contra sua vontade, em poder de outrem, como garantia de que alguma coisa será feita”.

Jornalistas na mira 

Outro fator que contribui para essa guerra por meio das informações é a violência contra jornalistas e comunicadores que se tornaram vítimas no conflito e, porque não dizer, alvo. Segundo o Comitê de Proteção a Jornalistas, desde o começo do conflito, 166 jornalistas foram mortos em Gaza. Outras fontes indicam mais de 200 mortes.

Em 2023, cerca de 75% dos jornalistas mortos no mundo foram vítimas da ofensiva na Palestina. Em março de 2024, a ONG Repórteres Sem Fronteiras (RSF) denunciou que, em cinco meses, ao menos 103 jornalistas foram mortos em Gaza por ataques israelenses, incluindo pelo menos 22 no exercício de suas funções. A RSF classificou o conflito como um dos mais letais para jornalistas.

A terra dos homens é, como vós afirmais, de todos os homens?”

A pergunta tirada de poema de Mahmoud Darwish, poeta palestino falecido em 2008, provoca que é preciso seguir lembrando e questionando o genocídio e a barbárie.

A imagem das poderosas big techs participando da posse de Trump na última segunda-feira, 20 de janeiro, logo após o anúncio do cessar-fogo, é, mais que simbólica, aceno à ideologia autoritária nazifascista bélica e imperialista. É a demonstração contundente da aliança tecnopolítica de podres poderes no rumo de uma humanidade desumanizada. O anúncio de Zuckerberg de novas políticas de moderação de conteúdo explicitamente favorecedoras da difusão de ainda mais ódio a grupos vulnerabilizados também vem nessa toada e coloca os palestinos em risco, como alerta a organização Jewish Voice for Peace.

É urgente quebrar a apatia que entristece e anestesia pela retomada das humanidades e isso passa pelo desmantelo do poder político-econômico e técnico das big techs e grandes grupos econômicos do ramo midiático.

BOX

O que a mídia não conta

1- A ofensiva de Israel é um processo histórico de colonização
Para entender as raízes históricas e geopolíticas dessa barbárie é indispensável observar os mapas que mostram a expansão do Estado de Israel ao longo das décadas e como os palestinos foram ficando em territórios cada vez menores (em verde no mapa). Isso já em 2020, antes do atual conflito. 


Esses dados deixam explícito: o que estamos presenciando é um processo de colonização. Embora possua características específicas do momento histórico em que vivemos, ele carrega elementos comuns a outros processos coloniais: invasão de território, roubo de riquezas e o extermínio da população.
Compreender isso é fundamental para acabar com um dos maiores equívocos ao tratar desse massacre: a ideia de que Israel está apenas “respondendo a ataques”. Não. Israel é o invasor.

Apesar da confusão promovida por parte da mídia ocidental, incluindo a brasileira, a própria ONU classifica a ocupação dos territórios palestinos como ilegal. Em uma resolução de setembro de 2024 adotada pela Assembleia Geral, foi exigido que Israel “ponha fim sem demora à sua presença ilegal” nos territórios ocupados, estabelecendo um prazo de 12 meses para cumprir a determinação. A resolução foi aprovada por 124 votos favoráveis, 14 contrários e 43 abstenções.

Além da apropriação de terras, há outros interesses econômicos em jogo. Os territórios palestinos possuem vastas reservas de petróleo e gás natural, como apontado pelo relatório da Agência das Nações Unidas para o Comércio e Desenvolvimento (Unctad). A bacia próxima à Faixa de Gaza contém cerca de 122 trilhões de pés cúbicos de gás natural, avaliados em 453 bilhões de dólares. Israel é o único a explorar esses campos, e essa cifra assusta.

2-“Toda criança vivendo em Gaza está traumatizada”. – Ricardo Pires, Unicef.

A invasão e a disputa territorial ganham contornos ainda mais desumanos quando as crianças viram alvo. Os ataques indiscriminados de Israel contra civis transformaram as crianças em suas principais vítimas.

Mais de 14 mil crianças já foram mortas, e todas que sobreviveram carregam traumas profundos. Mais de 2.000 tiveram suas pernas amputadas, muitas delas sem anestesia, devido às restrições impostas por Israel. A Al Jazeera relata que mais de 700 bebês, com menos de um ano de idade, foram mortos em Gaza.

Segundo o Escritório de Direitos Humanos da ONU, quase 70% das vítimas na Faixa de Gaza são mulheres e crianças. A organização classificou as violações como sistemáticas e falou em números sem precedentes.

“Um número extremamente elevado de crianças em Gaza continua a morrer, a ser mutilado, ferido, desaparecido, deslocado, a ficar órfão e ser vítima da fome, da desnutrição e de doenças”, diz o Comitê dos Direitos da Criança das Nações Unidas.

3-As condições dos aprisionados palestinos são desumanas

O historiador Sayid Marcos Tenório, em entrevista ao Brasil de Fato, destacou:
“Pouco se fala sobre a bestialidade com que Israel trata os presos palestinos, privados dos mais elementares direitos assegurados por Convenções Internacionais e submetidos às mais indignas, duras e violentas condições de encarceramento”.

Alaa Daraghme, em reportagem para a BBC, detalha o sistema de “detenção administrativa” de Israel, no qual uma pessoa pode ser detida sem acusações formais ou julgamento, prática que atinge principalmente palestinos.

A ONU e a Save the Children denunciam que entre 500 e 700 crianças palestinas entram anualmente no sistema de detenção militar israelense. Mesmo antes da escalada do atual conflito, os palestinos já eram tratados como reféns, enquanto a mídia comercial se mantinha em silêncio.

Iara Moura é jornalista, mestra em comunicação e coordenadora executiva do Intervozes. Olivia Bandeira é jornalista, doutora em Antropologia e coordenadora executiva do Intervozes. Pedro Vilaça é redator publicitário e coordenador executivo do Intervozes. 

[Ilustração: Intervoses]

Leia: O documento do Ministério da Inteligência de Israel sobre a ocupação total de Gaza https://lucianosiqueira.blogspot.com/2023/10/detalhe-do-conflito-israel-x-palestina.html 

Futebol: gangorra

Novos tempos: jogadores brilham em um clube e vão para outro do mesmo dono
Sonho do Botafogo de conquistar títulos seguidos fica distante com desmanche
Tostão/Folha de S. Paulo   

O futebol brasileiro tem evoluído nas estratégias de jogo, na intensidade e na qualidade individual por causa da chegada de fora de muitos bons treinadores, dos altíssimos investimentos, da contratação de jogadores caríssimos e do pagamento de grandes salários, com parte do dinheiro vindo de casas de apostas. A dúvida é se haverá continuidade e se alguns clubes ou SAFs vão quebrar.

São Paulo e Corinthians fizeram um ótimo jogo apesar do momento de início de temporada. A partida estava equilibrada até o começo do segundo tempo, quando aconteceram dois momentos pontuais com dois gols do São Paulo. Nos clássicos, detalhes decidem as partidas.

Os dois times jogam com uma dupla de atacantes pelo centro, o que é hoje pouco frequente. O São Paulo possui ainda dois jogadores pelos lados, Lucas e Oscar, que se movimentam por todo o campo, estão sempre próximos ao gol e ainda recuam para marcar pelos lados. Lucas é muito bom nisso. O Corinthians joga com um meia ofensivo centralizado próximo da dupla de atacantes e mais um trio no meio-campo. Quase sempre há quatro perto do gol adversário. Estão na moda quatro atacantes. Nessa formação não há pontas, que, às vezes, fazem falta. 

Oscar mostrou classe, elegância, toques bonitos e eficientes. Pode jogar pela esquerda e pelo centro e certamente vai melhorar a qualidade da equipe. Está melhor do que eu imaginava. Ele e Hulk, que estavam no 7 a 1, são destaques no futebol brasileiro. Bernard, do Galo, também estava presente. Só falta o Fred voltar a jogar e formar o quarteto ofensivo de 2014.

São Paulo e Corinthians, provavelmente, estarão nesta temporada entre os principais times brasileiros, junto com Flamengo, Palmeiras, Inter e Botafogo. Os seis e mais Fortaleza e Bahia vão disputar a Libertadores.

O Botafogo vive uma indefinição por causa da saída do técnico e de vários de seus principais jogadores. O sonho dos torcedores de que o Botafogo, após ganhar a Libertadores e o Brasileirão, manteria o time, conquistaria outros títulos seguidos e se tornaria uma das grandes equipes da história será pouco provável com o desmanche da equipe. São os novos tempos. Alguns jogadores brilham em um clube e vão para outro do mesmo dono.

No meio da temporada passada, o Cruzeiro contratou vários jogadores, nenhum especial, e criou a ilusão de que a equipe daria um salto de qualidade. O time piorou, e o jovem e promissor técnico Seabra, que fazia bom trabalho, foi dispensado. A história se repete. O clube contratou alguns jogadores de prestígio e achou que, rapidamente, formaria um timaço. Nada aconteceu, e Fernando Diniz foi dispensado. O clube e os torcedores estão muito ansiosos, apressados.

Apesar da evolução científica do futebol brasileiro, da presença de tantos estudiosos analistas de desempenho espalhados pelos grandes clubes, que mapeiam todas as estatísticas dos jogadores e treinadores, penso que ainda ocorre um excessivo número de contratações equivocadas e/ou de custos muito acima dos benefícios, mesmo considerando que no futebol existem muitas incertezas.

É preciso olhar mais para o campo e conhecer de maneira melhor os detalhes técnicos, físicos, táticos, emocionais e comportamentais dos atletas. É necessário enxergar os detalhes, saber ver.

Leia também: Aviso aos navegantes https://lucianosiqueira.blogspot.com/2024/11/meus-textos-mais-longos.html 

Editorial do 'Vermelho'

Câmara e Senado sob nova direção e o árduo desafio de governar sem maioria
A extrema-direita e seus sócios, que dispõem de força do Congresso Nacional e na sociedade, sabem que o êxito do governo em 2025 praticamente descartaria a possibilidade de o país ser vítima da volta do neofascismo ao governo da República.
Editorial do 'Vermelho'  


A eleição de Hugo Motta (Republicanos-PB) e de Davi Alcolumbre (União-AP) para as presidências da Câmara dos Deputados e do Senado, respectivamente, refletiu a correlação de forças no Congresso Nacional. Ambos, paradoxalmente, tiveram apoios tanto da base aliada do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva quanto da oposição de extrema-direita. Eles são da articulação centrista que vem de longa data, com configurações variadas.

Na manhã da segunda-feira (3), Hugo Motta e Davi Alcolumbre foram recebidos pelo presidente Lula no Palácio do Planalto, numa demonstração de “compromisso com a democracia”, segundo o presidente. O novo presidente da Câmara informou que o Congresso Nacional estará à disposição para construir “pautas positivas” e que o diálogo entre os poderes garantirá a independência e a harmonia previstas na Constituição.

Hugo Motta, quando de sua vitória, fez um discurso de compromisso com o regime democrático: “Estaremos sempre com a democracia, pela democracia e com a democracia. E seus inimigos encontraram no Legislativo uma barreira como sempre encontraram na história.” Já Davi Alcolumbre disse que o encontro com Lula foi um gesto de aproximação e de maturidade institucional entre os poderes Executivo e Legislativo em prol do benefício para o povo brasileiro. A relação com o presidente da República será “verdadeira, profícua e duradoura”, afirmou. Lula respondeu que eles “não terão problemas na relação política com o Executivo”.

Sabe-se que este recíproco tratamento cordial passará por situações de turbulências e conflitos próprios de uma acirrada luta política, que tende a se agudizar. A base dessa constatação é a pesquisa Genial/Quaest, divulgada segunda-feira, na qual, ao contrário do protagonismo pessimista de Gilberto Kassab – presidente do Partido Social Democrático (PSD), também da articulação centrista, que vaticinou dificuldades para a reeleição de Lula –, o presidente aparece à frente nos cenários simulados para o segundo turno das eleições presidenciais de 2026. Seria vitorioso contra possíveis nomes da direita ou da extrema-direita. Mesmo longe das eleições, esse resultado joga gasolina no já aceso confronto político no país.

Na sua mensagem ao Congresso, saudando a abertura dos trabalhos legislativos, Lula disse que o país precisa da ação conjunta do Executivo com o Legislativo para que se prossiga com a semeadura “em busca de colheitas ainda mais generosas.”

Acontece que a extrema-direita e seus sócios que dispõem de força do Congresso Nacional e na sociedade sabem que o êxito do governo em 2025 praticamente descartaria a possibilidade de o país ser vítima da volta do neofascismo ao governo da República. Com a cobertura, explicita ou não, de Donald Trump, o presidente de extrema-direita dos Estados Unidos, essas forças recrudescerão a sabotagem ao país, tentarão erguer obstáculos, impor derrotas ao governo e bloquear as pautas do governo com matérias da chamada “pauta de costumes” e o famigerado projeto que propõe anistia aos envolvidos nos atentados golpistas de 8 de janeiro de 2023 para tumultuar a articulação política governista e insuflar a mobilização de suas bases sociais.

Daí a importância de uma relação altiva, mas cuidadosa, do governo com os presidentes das duas casas do Congresso. Sem maioria no parlamento, o governo terá de agir com habilidade redobrada na articulação política para aprovar os projetos necessários à realização do programa eleito em 2022.

O mais urgente é a Lei Orçamentária Anual, que deveria ter sido votada no ano passado. Mas não só. Há, entre outras matérias, a regulamentação da Reforma Tributária, a modernização dos regimes de concessão e parceria público-privada e, com destaque, a isenção de Imposto de Renda (IR) de trabalhadores que ganham até R$ 5 mil por mês e a tributação sobre os rendimentos mensais provenientes de lucros e dividendos superiores a R$ 50 mil.

Para destravar a aprovação de suas matérias, entra em tela o tema de uma reforma ministerial, que passou a se destacar na agenda política pelas mãos do presidente Lula, logo após o resultado das eleições municipais do ano passado. O presidente, na primeira reunião ministerial do ano, sinalizou qual régua e compasso irão nortear as mudanças. “Temos vários partidos políticos, eu quero que esses partidos continuem junto, mas estamos chegando no processo eleitoral e a gente não sabe se os partidos que vocês representam querem continuar trabalhando conosco ou não”, ponderou.

A reforma cumprirá o que se pretende desde que reforce efetivamente a governabilidade, votos seguros às matérias do governo, e que, mesmo considerando a falta de unidade dos partidos de centro-direita, indique compromissos com a sucessão presidencial de 2026. E, finalmente, que a reforma contribua para o isolamento da extrema-direita.

O fator principal, no momento, que trava a pauta legislativa é o impasse referente às emendas parlamentares ao Orçamento, que Davi Alcolumbre classificou como “tensões e desentendimentos” entre os poderes. Corretamente, o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou que as emendas devem obedecer à Constituição, o princípio da transparência e rastreabilidade. Alguns passos foram dados na direção de uma solução negociada, porém, no mínimo, é necessário que o povo saiba quem propôs emendas parlamentares e para onde vai o dinheiro público.

No âmbito do parlamento, os setores progressistas têm o desafio de avançar em sua coesão para que possam, com mais eficácia, atuar na formação de um amplo campo unitário e heterogêneo que resulte na aprovação dos projetos do governo. Para além disso, cabe à esquerda, com sagacidade e firmeza, demarcar com a extrema-direita e atuar em sintonia com a mobilização popular, procurando sempre fortalecê-la.

Leia: 'Mergulhar fundo para avançar na superfície" Mergulhar fundo para avançar na superfície https://grabois.org.br/2024/11/18/luciano-siqueira-mergulhar-fundo-para-avancar-na-superficie/

Postei no X

EUA deixaram de ser maiores parceiros comerciais do Brasil há mais de 10 anos, perdendo espaço para a China. De todo modo, em 2024 o comércio entre os dois países girou em torno de 40 bilhões de dólares. Por enquanto, Trump ainda não nos atingiu com o seu tarifaço ensandecido. 

Leia: Trump, negacionismo ao extremo https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/02/minha-opiniao.html

Enio Lins opina

Quando o crime impune bate à porta da sociedade globalizada
Enio Lins  


MAGINE SE AL CAPONE (1899/1947) tivesse tido, entre 1929 e 1931, poder para demitir Eliot Ness (1903/1957) e toda equipe dos “Intocáveis”, e deletar as investigações sobre seus crimes. Imaginou? Pois é isso o que está acontecendo neste ano da impunidade americana de 2025. Al Trump, no dia 27, “demitiu todos os procuradores federais de carreira designados para integrar a equipe do procurador especial Jack Smith, que foi encarregada de investigar e processar o então ex-presidente Donald Trump”, conforme noticiou o site conjur.com.br e todos os demais veículos de mídia no mundo.

“DEMISSÃO DE PROCURADORES DE CARREIRA que processaram Trump abre era de retaliações políticas” é o título da reportagem do conjur.com.br. Por sua vez, a circunspecta BBC, em sua versão original, britânica, noticiou: “O governo do presidente dos EUA, Donald Trump, demitiu mais de uma dúzia de advogados do Departamento de Justiça que trabalharam em dois processos criminais contra ele”, e foi além reproduzindo uma declaração da ex-procuradora dos EUA Joyce Vance à NBC News, “Demitir promotores por causa de casos em que foram designados para trabalhar é simplesmente inaceitável. É contra o Estado de Direito; é contra a democracia”. Arremata a BBC que “os advogados [demitidos] faziam parte da equipe do ex-promotor especial Jack Smith, que investigou o suposto manuseio incorreto de documentos confidencia is por Trump e sua suposta tentativa de reverter sua derrota eleitoral de 2020”.

COMO ESTÃO ESSES PROCESSOS contra Donald? Foram pro lixo. Explica a BBC: “os casos foram encerrados após sua vitória eleitoral em novembro. Os promotores escreveram que os regulamentos do departamento de justiça não permitem o processo de um presidente em exercício”. Incrível! O inquilino da Casa Branca está acima da lei. É a farra verdadeira do crime organizado americano. E pensar que os Estados Unidos posavam de modelo mundial... Um desses processos, hoje destruídos, tratava da tentativa de golpe trumpista em 6 de janeiro de 2021, quando hordas de seguidores de Trump, sob orientação do dito cujo, invadiram o Capitólio para tentar impedir a proclamação de Joe Biden como presidente eleito. Daquela fuzarca, resultaram cinco mortes (dois terroristas e três policiais) e 140 agentes de segurança feridos. O Departamento de Justi&ccedi l;a dos Estados Unidos indiciou mais de 725 tumultuadores trumpistas, e desses “Ao menos 225 indivíduos foram indiciados por agressão ou impedimento da aplicação da lei e 165 se confessaram culpados de crimes federais – dos quais 22 cometeram crimes graves, segundo informações oficiais do governo” relatou a CNN em reportagem veiculada em 6 de janeiro de 2022, quando o inusitado atentado completou um ano. Em janeiro de 2025, Trump passou a borracha em seu crime, apagando o delito dos anais jurídicos, perdoando a si próprio e a todos os seus cúmplices.

EM JANEIRO DE 2025, Trump não só perdoou a si mesmo, mas condenou quem ousou lhe aplicar a lei. É o exemplo mais eloquente da desenvoltura de um delinquente no poder. Igualmente, é o exemplo mais escandaloso de um Estado frágil, vulnerável, de uma nação que expõe a supremacia da Lei e da Ordem como mera cenografia e peça publicitária de campanha enganosa. Isso seria um desastre ético em qualquer país, mas estamos falando da principal potência militar do planeta, de uma das duas economias mais pujantes da terra, de um país que espalha sua cultura e seu modo de vida como paradigmas para a civilização contemporânea. É a supremacia da barbárie, cujas consequências são preocupantemente previsíveis.

Leia: Trump toma posse com ameaças externas, tensões internas e apoio à extrema-direita mundial https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/01/editorial-do-vermelho_18.html 

Postei no Threads

Queda do dólar e safra recorde devem ser os pilares da redução dos preços dos alimentos, afirma o ministro Fernando Haddad. Porém há dois fatores de perturbação em potencial, acrescento: a especulação financeira e a ação gananciosa do agronegócio exportador. Veremos. 

Leia: Lula na frente, mas ainda é cedo https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/02/minha-opiniao_4.html

China x EUA & IA

DeepSeek prova que 'quintal pequeno, cerca alta' não pode atrapalhar a inovação
Global Times  


A empresa chinesa de inteligência artificial (IA) DeepSeek lançou seu mais recente modelo grande, DeepSeek-R1, que alcançou avanços em várias áreas a um custo inesperadamente baixo, ganhando popularidade entre usuários em vários países. Este é um desenvolvimento positivo no campo da IA, mas alguns setores e indivíduos nos EUA mostraram hostilidade e agressão ao DeepSeek. No entanto, se o governo dos EUA tentar bloqueá-lo com tarifas, controles de exportação ou reivindicações de propriedade intelectual, tais ações não apenas prejudicariam o progresso geral da tecnologia de IA, mas também seriam prejudiciais ao desenvolvimento saudável e ordenado da tecnologia de IA nos próprios EUA.
O surgimento do DeepSeek realmente prova que, sob o pretexto da chamada segurança nacional, as tentativas de monopolizar a tecnologia e suprimir o progresso tecnológico da China estão fadadas ao fracasso. Desde 2022, o governo dos EUA restringiu a exportação de chips de ponta da Nvidia para a China em uma tentativa de atrasar o desenvolvimento da IA ​​da China por meio da estratégia de "quintal pequeno, cerca alta". No entanto, o DeepSeek conseguiu um avanço sob baixo poder computacional, o que mais uma vez valida o paradoxo de "sanções impulsionando a inovação". 

Como o economista Tyler Cowen declarou, embora a proibição de chips tenha atrasado o acesso da China ao hardware, ela forçou o desenvolvimento de alternativas mais eficientes, criando "consequências secundárias não intencionais". Além disso, esse fenômeno de "igualdade tecnológica" prejudica a estratégia dos EUA centrada no controle de chips. Outros países poderiam imitar o modelo do DeepSeek, obrigando os EUA a reavaliar o equilíbrio custo-benefício de suas sanções.

O nascimento do software de IA carrega atributos nacionais, mas os benefícios derivados de conquistas tecnológicas pertencem a toda a humanidade. Divisões internas surgiram dentro de think tanks em relação à estratégia dos EUA para a China: uma facção defende a colaboração para aproveitar "sinergias", enquanto a outra insiste em escalar o confronto e o "desacoplamento". No entanto, o CEO da Microsoft, Satya Nadella, e outros líderes da indústria reconhecem que os avanços do DeepSeek tornarão a IA mais acessível. Se os EUA insistirem em um jogo de soma zero, acelerarão seu próprio isolamento. Em última análise, a competição tecnológica sem regras estabelecidas só evoluirá para "confronto". Somente por meio da cooperação tecnológica podemos buscar o bem-estar de toda a humanidade. 

Usar métodos geopolíticos do século XX para abordar a revolução tecnológica do século XXI só fará com que os EUA percam oportunidades valiosas de desenvolvimento. Se focar em bloqueios e cercos ou buscar novas maneiras de se destacar da competição levará a resultados totalmente diferentes. 

É importante reconhecer que a pressão trazida pelo DeepSeek provavelmente se tornará um catalisador para o avanço tecnológico - a Microsoft e a OpenAI estão acelerando iterações de modelos, a Meta anunciou otimizações para treinamento de consumo de energia e até mesmo alguns gigantes da tecnologia tecnologicamente fechados do Vale do Silício estão começando a reavaliar suas estratégias de código aberto. Quem pode dizer que dentro da auto-reforma desses gigantes da tecnologia americanos, um novo avanço não surgirá? Ao mesmo tempo, é certo que o "desacoplamento" da China inevitavelmente levará a uma reação contra as empresas americanas.

Nos últimos anos, apesar de enfrentar bloqueios e repressões externas, a China ainda alcançou realizações tecnológicas notáveis. Isso justifica a reflexão de certos indivíduos em Washington: o que as tentativas de impedir o progresso da China por meio de restrições e supressão trouxeram para a China e os EUA? A legislação de restrição de chips prejudicou repetidamente as empresas de tecnologia americanas, a Emenda Wolf criou barreiras para a pesquisa espacial dos EUA e o bloqueio contra a Huawei não interrompeu seu ritmo de pesquisa e inovação. Esta verdade, repetidamente comprovada pela história, foi mais uma vez demonstrada a Washington pelo DeepSeek hoje: nunca subestime a inteligência e a engenhosidade do povo chinês, e nunca subestime a firme determinação da China pela abertura e autoaperfeiçoamento.

Agora, à luz de avanços tecnológicos como o DeepSeek, alguns nos EUA continuam a se apegar a uma mentalidade de bloquear o progresso tecnológico de outros países, revelando sua ansiedade em manter a hegemonia e suas estratégias míopes. De uma perspectiva de economia política, as sanções falharam em conter a inovação; em vez disso, elas catalisaram caminhos alternativos. Do ponto de vista do sistema de comércio internacional, o unilateralismo acelerou a reestruturação das regras e a revolução das cadeias de suprimentos. Washington deve reconhecer que uma abordagem de "quintal pequeno, cerca alta" não pode obstruir o ritmo de inovação da China. No avanço da tecnologia de IA, a China e os EUA estão na vanguarda. Os dois países podem explorar a cooperação em áreas como formulação de padrões éticos de IA, governança de dados transfronteiriços e respostas conjuntas a ataques cibernéticos, o que beneficiaria ambas as nações e o mundo.

Leia também: Luciana Sabtos diz que conceito do plano brasileiro de IA é ser inclusivo https://lucianosiqueira.blogspot.com/2024/08/palavra-da-ministra-luciana.html

Palavra de poeta: Lila Ripoll

CANÇÃO DE AGORA
Lila Ripoll  

Ontem meu peito chorava.
Hoje, não.
Também cansa a desventura.
Também o sol gasta o chão.

Estava ontem sozinha,

tendo a meu lado, sombria,
minha própria companhia.
Hoje, não.

 

Morreu de tanto morrer
a pena que em mim vivia.
Morreu de tanto esperar.
Eu não.

 

Relógios do tempo andaram
marcando o tempo em meu rosto.
A vida perdeu seu tempo.
Eu não.

 

Também cansa a desventura.
Também o sol gasta o chão.

[Ilustração: imagem gerada por IA]

Leia também: Percepção turva e decadente https://lucianosiqueira.blogspot.com/2024/11/minha-opiniao_28.html  

Cláudio Carraly opina

Uma abordagem para um Brasil mais seguro

Cláudio Carraly*  

Nos últimos 30 anos, a segurança pública tem sido uma das principais preocupações dos brasileiros, o aumento da criminalidade, a sensação de insegurança e a violência nas ruas afetam profundamente a qualidade de vida de milhões de pessoas. Para compreender a complexidade desse problema, é essencial adotar uma abordagem multidisciplinar, que vá além da perspectiva policial e integre análises sociológicas, econômicas e culturais, bem longe das retóricas politiqueiras e das soluções simplistas.

A evolução da criminalidade no Brasil nas últimas décadas está intrinsecamente ligada à expansão das facções criminosas e às crescentes desigualdades sociais, ancoradas pelo enorme abismo de renda entre os mais ricos e os mais pobres no Brasil. Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública revelam que o país apresenta uma taxa de homicídios de cerca de 27 por cada 100 mil habitantes, uma das mais elevadas do mundo. Além disso, estudos do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) demonstram a forte correlação entre falta de renda, altos índices de desemprego, baixa escolaridade e a perpetuação da violência.

Fatores estruturais como a desigualdade social, a exclusão econômica e a educação precária são determinantes na dinâmica do ciclo da criminalidade. A falta de oportunidades formais e a vulnerabilidade dos jovens em contextos de informalidade favorecem o aliciamento por organizações criminosas, nesse sentido, políticas públicas integradas, envolvendo habitação, saúde e assistência social, são imprescindíveis para romper o ciclo de exclusão e violência.

Esses fatores da diminuição de violência não são nada desconhecidos, porém lamentavelmente a incompetência dos governos estaduais, cuja responsabilidade formal da segurança pública foi determinada na constituição de 1988, isso agravado pelo desinteresse dos municípios e das sucessivas administrações federais, ressaltando que os demais entes políticos da República não querem trazer esse “problema para o seu colo”.

Casos internacionais demonstram que políticas integradas podem transformar realidades marcadas pelo crime. Medellín, na Colômbia, por exemplo, investiu em infraestrutura urbana, educação e programas culturais, conseguindo reduzir os índices de homicídios em mais de 80% ao longo de duas décadas, Em Los Angeles, a presença efetiva de um policiamento comunitário, bem como o uso inteligente dos dados coletados, melhoraram substancialmente os níveis de sensação de segurança no estado. Tais exemplos oferecem lições valiosas, mas devem ser adaptados à realidade brasileira, considerando as especificidades regionais e a diversidade cultural do país.

Para que iniciativas como o policiamento comunitário e os programas de prevenção à violência em escolas se tornem sustentáveis, é necessário definir etapas claras de implementação, como monitoramento contínuo da segurança, com indicadores reais que permitam avaliar a eficácia das políticas adotadas. Ainda a criação de fundos específicos para projetos de prevenção, garantindo recursos constantes em uma ação de Estado que não possa sofrer solução de continuidade pela administração seguinte, além do envolvimento de lideranças populares, ONGs e universidades na concepção, execução e monitoramento das políticas, garantindo maior aderência e adaptação às necessidades locais.

A corrupção e a impunidade corroem a eficácia das políticas de segurança. Para reverter esse cenário, a criação ou fortalecimento de entidades existentes que fiscalizem a gestão dos recursos públicos destinados à segurança, além da implementação de tecnologias que garantam a transparência dos processos e agilizem a aplicação da lei, reduzindo assim a sensação de impunidade. Estabelecendo mecanismos rigorosos de responsabilização e prestação de contas, onde agentes públicos e privados respondam civil e criminalmente por desvios e má gestão dos recursos.

A tecnologia desempenha um papel crucial na modernização da segurança pública, as novas tecnologias utilizadas de forma eficiente e respeitando os direitos individuais e a privacidade dos cidadãos são e serão cada vez mais fundamentais. A aplicação de algoritmos para identificar padrões de criminalidade, garantindo assim a atuação preventiva fundamental, assim como o uso ético de câmeras e sistemas inteligentes para mapear áreas de risco, utilizando a identificação facial de condenados pela justiça, além de otimizar o patrulhamento, remanejando-o para áreas de perigo iminente.

A segurança pública é uma responsabilidade coletiva. É necessário garantir a participação ativa da população, a criação de espaços de diálogo entre governo, forças de segurança e comunidade, onde as demandas e sugestões sejam discutidas e implementadas. O incentivo à educação cidadã sobre os direitos e deveres na defesa da paz e da não violência, promovendo a colaboração entre todos os segmentos da sociedade, garantindo ainda mecanismos que permitam à população opinar sobre as políticas de segurança e sugerir melhorias de forma estruturada.

O Brasil precisa repensar sua política de segurança pública de maneira abrangente e integrada. É fundamental que os governos e a sociedade atuem de forma conjunta para promover reformas estruturais, combater a corrupção e implementar soluções inovadoras, como a desmilitarização das polícias estaduais e consequente unificação à polícia civil, para que o sistema de segurança tenha apenas um corpo e comando diretivo único. Cada cidadão tem um papel essencial nessa transformação, seja participando de conselhos comunitários, pressionando por maior transparência ou engajando-se em iniciativas locais de prevenção à violência. Somente com um esforço coletivo e coordenado poderemos construir um país mais seguro, justo e solidário.

*Cláudio Carraly - Advogado, ex-secretário executivo de Direitos Humanos de Pernambuco.

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