Alienação dos golpistas fardados
Os golpistas podem ser vistos como sujeitos que no cotidiano usam predominantemente os limitados saberes empíricos, se apoiam nas noções vulgares, valorizam os parcos juízos partilhados nos grupos que integram, consomem notícias falsas, acolhem a desinformação, bem como inclinam-se para o lado da pós-verdade a qual minimiza o flanco objetivo da veridicidade e maximiza sua banda subjetiva com vistas a enunciá-la e a modelá-la de acordo com os seus interesses, pensamentos, desejos e intenções.
Antônio Carlos Will Ludwig/Le Monde Diplomatique
No ano de 2022 e no início de 2023, figuras proeminentes do governo Jair Bolsonaro, saudosistas de 1964, lideraram diversas articulações com um segmento das Forças Armadas para tumultuar a transição de poder ao candidato eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, com o objetivo de impedi-lo de exercer o cargo desde o início do mandato.
De acordo com o relatório elaborado pela Polícia Federal, o chamado Gabinete Institucional de Gestão da Crise, comandado pelos generais Heleno e Braga Netto, assumiria imediatamente a direção do país e definiria as diretrizes do governo. A suposição predominante era de que, em data posterior, o poder seria devolvido ao então presidente. O planejamento incluía a prisão de integrantes do Poder Judiciário, o fechamento do Congresso Nacional e o assassinato de Lula, Alckmin e Alexandre de Moraes.
Felizmente, essa tentativa de golpe de Estado não alcançou o sucesso almejado pelos sediciosos. Segundo o mencionado relatório, o fracasso ocorreu devido a falta de apoio por parte dos comandantes do Exército, da Aeronáutica e do Alto Comando do Exército. Apenas o comandante da Marinha se mostrou disposto a colocar seus subordinados para atuarem a favor da insurgência. Mencione-se a figura do então comandante da Aeronáutica o qual asseverou que o ensaio golpista possivelmente teria se consumado se o comandante do Exército tivesse oferecido o esteio almejado.
Para obter maior clareza sobre tal evento, é preciso recorrer à Ciência Política, particularmente em relação aos seus saberes pertinentes às modalidades dos golpes. Encontra-se nela exposta a existência de dois tipos. O primeiro, denominado de golpe moderno, refere-se à destituição ilegal de um governante pelos fardados, a qual se caracteriza pela retirada expedita dele do poder e a colocação de militares para o exercício da gestão do Estado, de forma ditatorial e com permanência por vários anos. O segundo, chamado golpe pós-moderno, ocorre de salientes pressões exercidas pelos militares para forçar a renúncia do governante visado. Seu lugar não é ocupado por militares e sim por outros políticos civis que seguem dirigindo seus países de acordo com as normas democráticas. Pelas características expos tas, parece que a intenção dos insurgentes se voltava para a aplicação de um golpe de Estado moderno.
Com base nos registros históricos, verifica-se que, em nosso país, todos os golpes aplicados anteriormente se enquadram no modelo moderno, e o atual não fugiria à regra, mantendo essa tradição. Essas inadmissíveis e condenáveis formas de intervenção na política alternaram-se várias vezes com outra igualmente intolerável e execrável: o emprego do chamado poder moderador, considerado superior aos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, com o objetivo de exercer um papel de mediação e equilíbrio entre eles. Além disso, revezaram-se com um terceiro mecanismo, também inaceitável e reprovável, que pode ser denominado conduta rebelde, ou seja, a resistência ao poder estabelecido ou a contestação de uma autoridade legítima, como ocorreu na Revolta de Jacareacanga e na Revolta de Aragarças, ambas dur ante o governo de Juscelino Kubitschek.
A tentativa de barrar o andamento do governo Lula revelou duas peculiaridades marcantes. A primeira foi a incompetência dos golpistas, evidenciada por uma série de falhas: o fracasso do atentado a bomba no aeroporto de Brasília, a divulgação de cenas do vandalismo ocorrido na Praça dos Três Poderes nas redes sociais, a descoberta da minuta do golpe na casa de Anderson Torres, a tentativa de comprometer o juiz Alexandre de Moraes por meio de um senador, a contratação de um hacker para tentar um fragante, as inúmeras trocas de mensagens entre os envolvidos, que ficaram registradas em celulares e computadores, as diversas reuniões com dezenas de participantes gravadas por câmeras e sistemas de áudio e, sobretudo, a incapacidade de conquistar o apoio da cúpula das Forças Armadas.
Tais ações explicitam a outra peculiaridade, qual seja, a doidivana, ignóbil e impudica desenvoltura das condutas manifestadas por eles, com o firme apoio de um elevado conjunto de insurgentes que permaneceu acampado na frente dos quartéis. Eles se autodenominavam patriotas em razão de, ferrenhamente, se conceberem como salvadores do país, particularmente pela reversão da suposta fraude eleitoral e com o emprego de qualquer tipo de ação. Adotaram um senso de urgência catastrofista pois imaginavam a proximidade do fim e da destruição do Brasil pela implantação do comunismo, realizaram apelos a seres extraterrestres e fizeram súplicas a entidades transcendentes. Desenvolveram um afeto de esperança messiânica sustentado na intervenção m ilitar e assumiram a postura de tomar a história pelas próprias mãos. Aparenta ser razoável pensar então que agiram como voluntaristas insensatos ou pessoas crentes de que a vontade humana, isto é, a faculdade de querer, de escolher, de praticar livremente certos atos é muito mais relevante do que a razão, de que é possível adotar convicções e atitudes proposicionais de acordo com essa força interior impulsionadora e de que é viável tomar decisões e agir em função dela mesmo diante de dificuldades e desafios.
É bem possível que a desinibição e a agilidade desses golpistas, especialmente os fardados, tenham a ver com acontecimentos do passado. Com efeito, os sediciosos uniformizados de épocas anteriores nunca receberam qualquer tipo de punição. Aqueles que exerceram o poder moderador foram recompensados pelo sucesso de suas ações. E os revoltosos, bem como outros instauradores do regime ditatorial que durou mais de vinte anos, receberam a láurea da anistia. Ademais, em diversas ingerências na política, receberam o apoio de segmentos privilegiados da sociedade, inclusive de governantes e parlamentares. Pode-se supor, ainda, que possuíam uma dose elevada de confiança e nutriam ardorosamente o sonho do êxito da insurreição.
Outrossim, é preciso acrescentar que o perfil dos insurgentes contribuiu muito para o andamento das ações porquanto eram amotinados de extrema direita. Assim sendo, nele se encontram diversos e peculiares traços de personalidade, tais como a busca de certezas em questões sociais e políticas; o apego aos valores tradicionais ladeado pela resistência a mudanças e a preferência por soluções simplórias para problemas complexos. Junto a esses atributos acompanha uma postura em relação à democracia caracterizada pela oscilação e ambiguidade, haja vista que em determinadas condições podem valorizá-la superficialmente para alcançar seus objetivos políticos e noutras podem rejeitar seus princípios caso entrem em conflito com suas concepções ideológicas. A enaltecem na forma que consideram conveniente, além de direcionarem críticas às instituições que dela fazem parte, particularmente os tribunais e a imprensa, quando não se alinham com suas agendas.
A ojeriza às incertezas, a adesão ao consagrado, a contraposição às metamorfoses e a simpatia pela simplicidade são condutas próprias de pessoas retrógradas e, portanto, sujeitas ao adentramento num estado de alienação. Observe-se que este estado precisa ser devidamente explicitado para poder relacioná-lo aos golpistas. Segundo a Etimologia, a “alienação” tem origem no latim alienare cujo sentido é de tornar alguém alheio a alguém. Algumas menções que se seguem, auxiliam bastante na melhora do entendimento.
Nos escritos de Platão encontra-se a alegoria da caverna, usada por ele para mostrar a existência de um mundo ilusório, das pessoas que vivem no interior de uma caverna iluminada por luz de fogueira, as quais conduzem sua existência apoiadas nos saberes do senso comum. A existência de um mundo verdadeiro, daqueles que vivem fora dela iluminados pela luz solar, orientadas por conhecimentos mais genuínos tais como o filosófico e o científico. Na Psicologia significa um estado de apartação do indivíduo de si mesmo, de outros ou da sociedade. No pensamento marxista diz respeito à desunião que os trabalhadores sentem em relação ao processo de trabalho, ao produto de seu trabalho e de sua própria essência por causa do sistema capitalista. Na Sociologia é entendida como a sensação de isolamento ou falta de pertencimento a um grupo ou comunidade. Embora s ejam exemplos singulares e divergentes, todos se aproximam em uma característica marcante, qual seja, uma desconexão que emerge em certos momentos no transcorrer do tempo. Desta forma, pode ser dito que uma pessoa alienada é alguém que traz dentro de si uma afincada predisposição ao estranhamento, ao distanciamento de si, de outrem, de situações e de coisas.
Os golpistas fardados podem ser vistos como sujeitos que no cotidiano usam predominantemente os limitados saberes empíricos, se apoiam nas noções vulgares, valorizam os parcos juízos partilhados nos grupos que integram, consomem notícias falsas, acolhem a desinformação, bem como inclinam-se para o lado da pós-verdade a qual minimiza o flanco objetivo da veridicidade e maximiza sua banda subjetiva com vistas a enunciá-la e a modelá-la de acordo com os seus interesses, pensamentos, desejos e intenções. Assim sendo, é possível dizer que eles são pessoas desconectadas e divorciadas dos conhecimentos considerados verídicos sobre diversos aspectos da realidade social em movimento, impedidores do surgimento de compreensões distorcidas, e que a ignorância alusiva a eles colaborou sobremaneira para os atos que externalizaram. Porém, se os retinham não c oncederam a eles a relevância merecida. Destarte, é possível encará-los então como indivíduos fortemente inclinados para o lado da alienação devido, provavelmente, carecerem ou deixarem de lado concepções atualizadas e fidedignas sobre as Forças Armadas, a democracia e o cenário internacional.
Em relação às Forças Armadas cabe dizer inicialmente que desde a década de oitenta do século passado, quando seus integrantes cederam às fortes pressões e encerraram o período ditatorial, até os dias que correm, sofreram um continuado processo de renovação, porque diversas gerações de pessoas adentraram em suas fileiras e os remanescentes da ditadura se encaminharam para a reserva. Consequentemente, novos modos de pensar, sentir e agir certamente emergiram e avançaram, particularmente na esfera política. É válido supor que os benfazejos influxos da democracia que se espargiram pelo país tenham atingido os fardados, contribuindo para o afastamento de concepções execráveis e incompatíveis ao regime democrático, tais como os atos revoltosos, o uso do poder moderador e a aplicação de golpes de Estado. A fa vor dessa suposição tem-se as sucessivas décadas de comportamento militar voltado para as tarefas previstas em lei, a qual começou a ser minada com a assunção de Bolsonaro ao cargo presidencial. É válido recordar que nesse lapso enfrentaram constrangimentos decorrentes da diminuição do prestígio social, da submissão a chefias civis no Ministério da Defesa, da atuação da Comissão Nacional da Verdade e da convivência com governantes petistas, que devem ter provocado sensações expiatórias influenciadoras de suas condutas.
Houve o ressuscitamento do falecido anticomunismo, encarado como algo semelhante a um arquétipo do inconsciente coletivo, mas ele não afetou os colegas da caserna conforme o desejado porque não possuía mais o poder mobilizador. O general Heleno, que gostava de utilizá-la disse nas redes sociais que os bolsonaristas estavam tentando evitar a volta do comunismo. A vitória de Petro na Colômbia levou o deputado Eduardo Bolsonaro alertar os eleitores brasileiros sob a expansão dos países cobertos com os símbolos da foice e do martelo. Em seguida, a deputada Zambelli mencionou o alerta de Eduardo para reforçar a lembrança.
Na campanha eleitoral, Jair Bolsonaro discursou várias vezes contra a presença e o avanço do comunismo. Sem dúvida, o uso dessas falas estava fadado a não mostrar eficiência alguma, porque a ameaça comunista foi uma ocorrência do passado inserida no contexto da Guerra Fria, que se encerrou na década de noventa e provocou a derrocada da União Soviética. Na atualidade, apenas alguns países pouco expressivos tentam seguir a cartilha comunista tais como Vietnã, Cuba e Coreia do Norte. A China possui o partido comunista, mas adota uma economia de mercado. Ademais, sabe-se que nunca existiu um país genuinamente comunista, isto é, fiel à doutrina elaborada por Marx e Lênin. O que realmente acontece, é que nos dias atuais vicejam movimentos progressistas defensores da justiça econômica, da equidade racial e da sustentabilidade ambiental; emergem manifesta ções favoráveis à economia solidária, que prioriza a cooperação e a autogestão; aparecem críticas aos excessos do capitalismo, especialmente a desigualdade crescente e a exploração do trabalho; partidos que se identificam como socialistas democráticos defendem a combinação de uma economia de mercado com políticas sociais robustas garantidoras da concretização de direitos.
Os uniformizados e os vanguardistas paisanos da insurreição, ambos certamente alienados, também devem ignorar ou não se importar com o poderoso e irrefreável processo de civilinização que acomete as Forças Armadas há muito tempo, o qual provoca a instauração de concepções civis e faz a aproximação entre os militares e civis. Esse acometimento apesar de estar trazendo contribuições positivas tem provocado outras interferências. Uma delas se refere à terceirização, que se encontra em estágio bastante avançado, pois as atividades em hospitais, ranchos, limpezas e reparação de equipamentos, dentre outras, estão sendo realizadas por empresas externas. Embora, tenha a capacidade de liberar os aquartelados para se dedicarem a funções essenciais e favorecer a obtenção de maior eficiência em operações, ela pode dificultar a integração entre os militares e os trabalhadores contratados e tornar possível a ocorrência de uma afetação no espírito de corpo.
Considerando que os contratados não possuem os mesmos níveis de treinamento e disciplina que os funcionários de uniforme podem emergir diferenças perceptíveis como divisões dentro da tropa. Por sua vez, a intelecção de que certas incumbências consideradas como relevantes estão sendo terceirizadas, tem a possibilidade de engendrar o sentimento de que certas capacidades caminham rumo à desvalorização e o entendimento de que se encontra manifestando uma falta de confiança em determinadas habilidades, ambos confrangedores do moral da tropa. Infere-se, portanto, que a terceirização tem o potencial de fragilizar a prontidão e a coesão nas fileiras que são imprescindíveis no momento da sua mobilização voltada para aplicação de um golpe de Estado.
Outra, se refere aos militares temporários cuja quantidade é elevada e continua crescendo. Com efeito, o número de cabos, sargentos e oficiais enquadrados nessa categoria já chega a mais da metade do contingente total. A contratação deles é atrativa porque atende aos requerimentos das organizações bélicas, possuem direitos reduzidos e são menos onerosos. No entanto, a conduta deles é diferente dos efetivos. Enquanto estes revelam um senso de lealdade mais forte e uma identificação mais profunda com a missão ou a finalidade constitucional das Forças Armadas, os temporários inclinam-se a focar em suas obrigações contratuais e na duração do seu serviço. Devido o preparo mais adequado, treinamento mais extenso e experiência armazenada, os efetivos exibem capacidade de liderança e reações congruentes frente a situações de pressão que são raras entre os temporários. Os efetivos podem estar motivados pelo senso de dever, carreira e benefícios de longo prazo, enquanto os temporários podem estar motivados por recompensa financeira ou ganho de experiência profissional. Efetivos encaminham-se rumo à formação de vínculos robustos com seus colegas ao longo do tempo, a qual beneficia a coesão grupal. Dependendo da duração do serviço os temporários podem apresentar dificuldades de integração e embaraços nessas relações. Isto posto, não fica difícil de perceber que os militares temporários apresentam um perfil singular, mais próximo da silhueta paisana e afastado da imagem convencional própria dos efetivos.
Portanto, é a formação alongada, a vivência acumulada, a atitude de comprometimento, a adoção efetiva de valores consuetudinários, a perenidade do comportamento uniforme e a duradoura submissão à hierarquia, próprias dos efetivos, auxiliam sobremaneira o ato de liderar a tropa, pois está frequentemente respondendo de forma imediata e conjunta ao brado do comandante. Embora essa conduta coletiva automática ainda seja válida para algumas operações militares, é possível, que isto, não venha a acontecer no momento da aplicação de um golpe de Estado por causa da sua ilegalidade, implicações e consequências. Apareceriam dissidências arruinadoras. Veja-se que na ditadura implantada em 1964, milhares de fardados ficaram na oposição e foram objeto de perseguições e punições. Obviamente, tal conduta, seria muito mais difícil de emergir no grupo prevalente dos temporários.
Uma terceira envolve a presença das mulheres militares que vem aumentando no decorrer do tempo e já constituem um grande grupo haja vista que somente na Força Aérea, nos últimos anos, mais de cinquenta por cento dos incorporados como temporários foram do sexo feminino, em diversas áreas tais como na administração, enfermagem, nutrição e radiologia. Atualmente, somam dez por cento do contingente das três armas. Vale observar que, o comportamento profissional das mulheres apresenta determinadas particularidades além das mencionadas anteriormente. Elas têm que enfrentar atitudes machistas e pelejas contra seus colegas masculinos, se esforçam em criar um ambiente de trabalho mais respeitoso e colaborativo, se mostram compromissadas com um exercício profissional sólido e com desempenhos vistosos, apesar de muitas terem que conciliá-lo com as obrigaçõ es familiares, e quando assumem posições de chefia tendem a valorizar a inclusão e a diversidade de expectativas na tomada de decisões. Portanto, são funcionárias totalmente focadas em seus afazeres diários e dedicadas às tarefas domésticas.
Esse perfil laboral não predispõe a atender chamamentos golpistas, pois envolver-se em uma aventura política contribui para a perturbação do cotidiano que é carregado de exigências. Aliás, vale supor que as mesmas, além de se negarem a participar, poderiam exibir condutas de antagonismo, porquanto em outros países isto já aconteceu. A título de ilustração mencione-se que no Camboja, em 1997, com o acirramento dos conflitos entre partidos políticos emergiu um golpe de Estado, e muitas fardadas não só o rejeitaram como manifestaram atos de resistência e apoio as forças democráticas. Do mesmo modo ocorreu no Egito em 2013, resultando na deposição do presidente Mohamed Morsi. Servidoras uniformizadas se opuseram a ele, enfrentaram a onda repressiva, criticaram as ações do governo castrense e se envolveram com movimentos s ociais.
A democracia brasileira é outra área a ser examinada, indica que o bando de insurgentes fardados a deixou de lado. De fato, parece que eles se encontram alijados de conhecimentos fidedignos sobre a consolidação do nosso regime democrático que começou em 1985 com a eleição de Tancredo Neves para a presidência da república. Logo a seguir, em 1988 foi promulgada uma nova Constituição que fixou direitos civis, políticos e sociais, a divisão de poderes com suas estruturas de freios e contrapesos, a criação de mecanismos de controle institucional como o Ministério Público independente e os Tribunais de Contas. Em 1989, ocorreu a primeira eleição direta com o envolvimento de partidos políticos assentados e atuantes. Três anos adiante aconteceu o impeachment de Collor, que demonstrou o vigor do Congresso Nacional e do Poder Judiciár io. Nas décadas seguintes, manifestou-se a alternância pacífica no poder por meio de eleições diretas e regulares bem como emergiram avanços significativos no combate à pobreza e à desigualdade social. Outro impeachment se concretizou em 2016, contra Dilma Rousseff, com a preservação de ordem constitucional, apesar da suposição de que se tratou de uma urdida manobra parlamentar.
Mencione-se que as atuações do poder judiciário, das instituições de controle, da imprensa e da sociedade civil ajudaram sobremaneira o processo de asseguramento da estabilidade democrática. Outrossim, deve ser ressaltado a relevante participação popular através da democracia direta em dois plebiscitos, um em 2011 sobre a divisão do Estado do Pará e outro em 2014 a respeito da criação de distritos no município de Campinas; em dois referendos, sendo um em 2005 pertinente a armas de fogo e outro em 2010 alusivo ao fuso horário vigente no Estado do Acre e em três projetos de iniciativa popular, isto é, o de crimes hediondos em 1994, o da ficha limpa em 2010 e o de combate à corrupção em 2016. Cite-se ainda a pujança dos inúmeros movimentos sociais que pipocaram pelo país, tais como o das diretas já, o da defesa do Siste ma Único de Saúde, o da luta pelo reconhecimento de terras indígenas, o da luta pelas prerrogativas da comunidade LGBTQIA+ e os protestos de junho, quando milhões de pessoas foram às ruas bramir contra o aumento das tarifas de transporte. E uma nova mobilização popular poderia ter surgido contra o golpe caso ele tivesse vingado, haja vista, que isto aconteceu em outros lugares tais como no Sudão em 2021 contrária à junta militar e na Turquia em 2016 que ajudou a frustrar os planos dos insurgentes. Complete-se com uma pesquisa recente de opinião a qual aponta que aproximadamente setenta por cento da população prefere o regime democrático a qualquer outra forma de governo.
Igualmente não atentaram para o fato de que a poderosa burguesia industrial do passado, tradicional aliada em golpes, perdeu a posição de liderança para a burguesia financeira que a qualquer momento pode retirar os ativos financeiros aplicados e enviá-los para outros países isentos de crises sociais e políticas. Ao seu lado predomina também o crescente setor de serviços. Além disso, o elevado grupo de operários do passado se contraiu bastante por causa da automação, seus sindicatos enfraqueceram muito e sua facção agitadora, outrora objeto de repressão, caminha rumo ao desaparecimento. O empreendedorismo cresce de forma rápida e os profissionais movidos por aplicativos aumentam a cada dia que passa.
Do mesmo modo que a democracia, o cenário internacional parece ser desconhecido ou rejeitado pela súcia dos revéis. Certamente dessabem que a globalização neoliberal está favorecendo a contenção do funcionamento dos Estados Nacionais. A autonomia e a soberania deles, se fragilizam na medida em que o tempo passa. Assim sendo, seu papel de agente do desenvolvimento econômico e sua função de garantir a coesão e a integração social e nacional também estão se fragilizando. Quase todas as nações do planeta encontram-se bastante atreladas entre si por força da assinatura de documentos internacionais. O nosso país constitui um caso típico, porquanto é signatário de muitas dezenas de acordos, tratados, convenções e protocolos bilaterais e multilaterais que condicionam ostensivamente sua conduta tanto no âmbito in terno, quanto no externo. Dentre a elevada quantidade de convênios podem ser citados o Acordo de Paris sobre mudança climática, o Pacto de São José relacionado a direitos humanos, o Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares, o Mercosul, o Acordo de Livre Comércio do Sul, o Acordo de Facilitação do Comércio da OMC e o Acordo de Cooperação Econômica com a União Africana.
Essa contínua proximidade age como um poderoso freio a qualquer iniciativa unilateral que possa vir a colocar em risco os compromissos assumidos por meio das resoluções, especialmente a aplicação de um golpe de Estado. Ademais muitos países comprometidos com o vigor e a perenidade do regime democrático costumam reagir incisivamente contra qualquer tentativa de supressão da democracia ou de desferimento de sérios danos a ela, inclusive com a aplicação de sanções como os casos de Cuba e Venezuela, vítimas de longevos escarmentos econômicos aplicados pelos Estados Unidos e nações europeias. No ano de 2009, no transcorrer do golpe em Honduras, a Organização dos Estados Americanos suspendeu a ajuda militar e econômica. No golpe acontecido na Guiné em 2021, a União Europeia proibiu viagens e bloqueou os ativos do país. Nesse ano, aconteceu em Myanmar e os Estados Unidos restringiram o acesso a bens e recursos financeiros. Quanto ao Brasil, ninguém levou em conta a fala do presidente Biden no mês de julho de 2022, em uma reunião entre os chefes da pasta de Defesa do Brasil e dos Estados Unidos, na qual sinalizou aos militares que eles não teriam o respaldo de Washington caso optassem por uma aventura golpista. E ressalte-se que, a corja dos beócios, planejava utilizar adidos militares alocados em diversos países para explicar e justificar o emprego do golpe com vistas a aplacar a ira da comunidade internacional, quiçá apoiada na tola crença de que daria certo.
Os ineptos insurgentes uniformizados já se encontram na órbita da justiça e certamente serão processados e punidos com muitos anos de prisão. Prevê-se que, no decorrer do tempo poderão obter amenização das penas, com base na lei de execução penal, por meio da participação em cursos. Tendo em vista essa possibilidade, a título de colaboração apresentamos uma proposta direcionada a esse abrandamento. Sugerimos que os futuros aprisionados realizem um extenso curso de atualização composto de três unidades, quais sejam, Filosofia da Ciência, com o estudo dos tópicos relativos a concepções de realidade, tipos de conhecimento, refutação de teorias e significado de verdade. Teoria Política, com a abordagem dos assuntos pertinentes a Estados Nacionais, globalização, formas de governo, ideologias, cid adania e democracia. Forças Armadas, com o exame dos temas concernentes à finalidade das instituições castrenses, relações entre civis e fardados, processo de civilinização e ética militar. Tão importante quanto a diminuição do tempo de prisão é a expectativa desse curso contribuir significativamente para a redução do atrofiamento das suas faculdades intelectivas, a atenuação da acentuada incultura e o desengate do estado de alienação que se revela muito prejudicial às suas vidas.
Antônio Carlos Will Ludwig é professor aposentado da Academia da Força Aérea, pós-doutorado em educação pela USP e autor de Democracia e Ensino Militar (Cortez) e A Reforma do Ensino Médio e a Formação Para a Cidadania (Pontes).
[Ilustração: Dia 8 de janeiro de 2023 tem como marca os golpistas invadiram a rampa de acesso ao Palácio do Planalto. Foto: Joedson Alves/Agencia Brasil]
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