A sedução da espoliação
Observações sobre a adesão popular às ideias neoliberais e de extrema direita
ERICK KAYSER*/A Terra é Redonda
1.
Mesmo não sendo fenômeno raro, pelo contrário, ocorre numa frequência perturbadora, não deixa de causar algum espanto testemunhar grupos subalternizados aderindo a posições da direita radical. Afinal, é um tanto contraintuitivo o apoio a políticas que, ao fim, prejudicam a eles próprios. Escapando a uma lógica racional pragmática, parece haver algo como uma “sedução da espoliação”, onde mais do que alienar sobre os mecanismos de exploração, os atrai para uma mobilização política voluntária e ativa que, invariavelmente, acaba por conduzi-los a serem vítimas de novas (e velhas) formas de espoliação.
A metáfora da “sedução da espoliação” busca sintetizar o paradoxo central da adesão de setores populares a projetos neoliberais e de extrema direita que aprofundam a precarização material desses mesmos grupos. A compreensão dos processos e condições sociais que possibilitam a ocorrência de táticas políticas exitosas para a cooptação de apoio popular a projetos antipopulares é de importância estratégica. Partindo de uma análise histórica atenta ao fato de que novas condições de dominação emergem em uma dialética onde formas pretéritas podem persistir e concorrer ou ser ressignificadas e incorporadas.
Assim, podemos perceber melhor em quais aspectos a sujeição se sustenta sob bases historicamente desenvolvidas para a legitimação do sistema capitalista e quais são particulares desta fase do capitalismo tardio sob hegemonia neoliberal.
A “adesão” ao capitalismo, de forma geral, sempre buscou sua legitimidade discursiva – aqui indiferente se manifesta no âmbito da política, religião, etc. – amparada naquilo que Karl Marx apontava como ideologia, entendida como uma forma de consciência social que reflete, de maneira distorcida, as relações materiais da sociedade.
A ideologia surge como uma representação invertida da realidade, apresentando as relações sociais historicamente determinadas como se fossem naturais, universais e imutáveis. Para além da dominação política objetiva dos capitalistas, os processos de reificação obscurecem a percepção, o que torna esta sujeição ainda mais plena e indispensável para o sistema. Como apontava Theodor Adorno, “quanto mais completo o mundo como aparência, mais impenetrável a aparência como ideologia” (2001, p. 28). Esta estrutura ideológica de dominação tem mantido seus padrões básicos de funcionamento, de forma relativamente estável, nestes últimos dois séculos e meio, pelo menos.
2.
As últimas quatro décadas foram marcadas pelo avanço e consolidação de uma hegemonia do neoliberalismo em boa parte do mundo. A ascensão do neoliberalismo não se deu pela persuasão democrática, mas pela exploração estratégica de crises, conforme Naomi Klein expõe em A doutrina do choque. Catástrofes naturais, conflitos bélicos ou instabilidades políticas são instrumentalizados para impor políticas de austeridade, privatizações e desregulamentação, sob o pretexto de “reconstrução” ou “modernização”.
Essas medidas, formuladas por ideólogos como Milton Friedman, aproveitam o estado de confusão e medo pós-traumático para implementar agendas que, em contextos estáveis, enfrentariam resistência popular massiva. O resultado é o “capitalismo de desastre”: um sistema que lucra com o caos, transferindo recursos públicos para corporações enquanto as populações vulneráveis, fragilizadas pela crise, veem direitos sociais e condições de vida serem drasticamente reduzidos.
Políticas como privatizações, desregulamentação laboral e cortes em direitos sociais transferem riqueza para elites econômicas, intensificando desigualdades. Essa espoliação é facilitada por crises (econômicas, políticas ou sanitárias), que desorientam as vítimas e neutralizam resistências.
A instabilidade das crises permanentes e variadas, turvam ou bloqueiam, para muitos, as possibilidades cognitivas de compreensão da sociedade que os cerca. Isso ajuda a explicar porque, mesmo ostentando resultados frágeis ou pífios quando implementadas, as ideias neoliberais ainda apresentam adesão. Isto ocorre, entre outros motivos, por operarem em um nível de sedução simbólica.
Para garantir adesão popular, o neoliberalismo alia-se a pautas da extrema direita que oferta compensações identitárias. A análise de Nancy Fraser sobre a tensão entre redistribuição e reconhecimento nos ajuda a elucidar este ponto. Em sua crítica ao “neoliberalismo progressista”, ela demonstra que setores populares são seduzidos por um “falso pacto”: enquanto minorias recebem um limitado “reconhecimento” identitário (como representação simbólica em discursos ou políticas superficiais de diversidade), a redistribuição de riqueza é sistematicamente negada.
A extrema direita, por sua vez, inverte essa lógica: oferece uma ilusão de restauração de status (via nacionalismo, moral religiosa ou supremacia racial) a grupos despossuídos pela globalização, sem questionar a concentração de capital. Nancy Fraser argumenta que ambas as estratégias fragmentam as lutas sociais: ao separar demandas por equidade econômica de pautas culturais, criam rivalidades entre vítimas do mesmo sistema – como trabalhadores brancos pobres e minorias racializadas –, desviando a atenção da verdadeira raiz da opressão.
Quando as vítimas desses modelos neoliberais passam a se reconhecer antes como “protetoras” de valores tradicionais do que como exploradas pelo sistema, abre-se uma cisão entre movimentos populares e seu próprio interesse material. Essa dinâmica fragmenta lutas sociais, convertendo o ressentimento em ódio contra bodes expiatórios (imigrantes, minorias, elites cosmopolitas, etc.) em vez do sistema econômico.
O resultado, como aponta Wendy Brown, é uma política do ressentimento nascida das “ruínas do neoliberalismo”: diante do fracasso do projeto neoliberal em garantir bem-estar, a extrema-direita oferece um passado mítico de ordem e segurança, que nada mais é que um simulacro de pertencimento que mascara a espoliação em curso.
3.
Um exemplo concreto dessa dinâmica pode ser observado no Brasil recente. No país, essa sedução operou pela combinação entre o autoritarismo moral de Jair Bolsonaro e uma agenda econômica ultraliberal, demonstrando como a metáfora da sedução da espoliação é uma maneira de decifrar as alianças perversas do capitalismo contemporâneo.
Ao buscar debater aqui sobre as formas gerais do processo social da adesão popular aos ideários neoliberais e da extrema-direita, não poderia deixar de mencionar o papel desempenhado pelas chamadas Big Techs no século XXI. Talvez aqui seja interessante recorrer mais uma vez a Theodor Adorno, que junto com Max Horkheimer, cunharam o conceito de “indústria cultural”, onde alertavam como a cultura, sob o capitalismo avançado, transforma-se em instrumento de dominação ideológica. Banalizando a violência política, auxiliando na normalização da lógica mercantil e apresentando o capitalismo como força natural e inevitável, para Theodor Adorno e Max Horkheimer, essa máquina não apenas distrai, mas modela subjetividades.
Herdeiras da indústria cultural, as Big Techs não são apenas empresas, mas agentes que transformam dados e atenção em capital, enquanto moldam subjetividades. Elas aprimoraram a sedução simbólica ao colonizar a subjetividade: filtros bolha, microtargeting e agora Inteligências artificiais criam realidades paralelas que naturalizam a barbárie neoliberal, fazendo com que vítimas da espoliação defendam, como “liberdade”, a própria lógica que as destrói.
Ao monetizar o ressentimento e a polarização, plataformas como as da Meta ou do Google, convertem a sedução simbólica em um modelo de negócios. Algoritmos promovem conteúdos extremistas que mantêm usuários cativos, transformando o caos social em capital para acionistas – um processo onde a espoliação digital e a alienação ideológica reforçam-se mutuamente.
As Big Techs operam como arquitetas da sedução simbólica: ao transformar identidades e conflitos sociais em dados rentáveis, elas alimentam algoritmos que amplificam narrativas tóxicas (como o ódio a minorias ou o negacionismo), fragmentam a consciência coletiva e convertem o descontentamento popular em engajamento lucrativo; tudo enquanto ocultam sua própria espoliação via vigilância digital e precarização do trabalho. Em outras palavras, as redes sociais de massa não são apenas o “meio” onde discursos neofacistas ganham ressonância, elas são, em si, ferramentas políticas.
A regulação democrática das Big Techs revela-se, assim, uma trincheira decisiva contra o avanço do neofascismo e da espoliação neoliberal. Sem controle público sobre algoritmos que monetizam o ódio e fragmentam o tecido social – convertendo demandas por justiça em verdadeiras commodities digitais –, a sedução simbólica seguirá operando como máquina de dominação em escala industrial. Regular as Big Techs é desarmar esta engrenagem e iniciar uma recuperação democrática do discurso público em novas bases, passo fundamental, mas não o único.
Como se buscou demonstrar, a adesão popular a projetos que a destroem não é irracional: é fruto de uma guerra ideológica que instrumentaliza traumas, medos e esperanças. Reverter essa adesão exige mais que denúncias: é preciso construir contranarrativas que reconectem as diferentes lutas, sejam elas identitárias ou econômicas, e que seja capaz, como sugere Nancy Fraser, de desvelar as “moradas escondidas” do capital.
Indispensável para isto é avançarmos a organização popular, de uma forma que seja capaz de traduzir indignação em projeto coletivo e, principalmente, anticapitalista.
*Erick Kayser é doutorando em história na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Imagem: Ilona Panych
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