A voz de 40 graus de febre
Que
homem seria capaz de encarar uma mulher com a voz de Iris Lettieri? Nenhum de
nós, mortais
Ruy
Castro/Folha de S. Paulo
Os obituários sobre a locutora Iris Lettieri, morta no dia 28 último
aos 84 anos, foram técnicos e profissionais. Informaram que ela morrera de
infarto em seu apartamento em Botafogo e que, em 1976, depois de breve carreira
como apresentadora de telejornais, fora contratada pela Infraero para anunciar
as chegadas e partidas dos aviões no Aeroporto Internacional do Rio. E que,
então, se tornara "a voz do Galeão".
É verdade. Mas é pouco. Duas gerações de usuários
do Galeão, nacionais e estrangeiros, se apaixonaram por Iris. Na verdade,
apaixonaram-se por sua voz, sem saber quem estava por trás dela. E talvez fosse
melhor não saber, porque era a voz de uma mulher deslumbrante, imperturbável,
inatingível, consciente de seu supremo poder de sedução. Uma voz de febre de 40
graus, como se saísse de um subterrâneo acetinado, em que até as pausas diziam
coisas. Que homem seria capaz de encarar essa mulher? Não nós, mortais.
Os sobreviventes dos anos 60 a conheciam dos jornais da TV Tupi e, de óculos, que
usava no dia-a-dia, nos anúncios das Óticas Fluminense. Mas poucos ligavam o
nome à figura —a mulher da TV não tinha a sua voz, e a voz do aeroporto não
tinha rosto nem nome. Nem precisava. Ao ouvir, no Galeão, "Varig... Vôo
276... Para Cuiabá... Embarque... Portão cinco...", queríamos embarcar com
ela, para Cuiabá ou para onde fosse.
Na vida real, Íris era bonita, mas nada que
lembrasse a voz do Galeão —mesmo porque, fora do microfone, não a usava. Falava
com suave entonação natural, algo mais aguda, e achava graça quando, ao sabê-la
de 1,60m, as pessoas não escondiam sua decepção. Parecia até se envaidecer com
isso. Era a prova de que, apenas com a voz, virava a cabeça dos homens.
Na única vez em que nos falamos, na loja Modern
Sound, explicou-me que sua locução era feita de palavras isoladas, depois
rearranjadas eletronicamente para se adaptar aos aeroportos de outras cidades
que agora a usavam. Iris não era mais apenas a voz do Galeão. Era a voz do
Brasil.
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Leia: A palavra e o gesto https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/06/minha-opiniao_14.html
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